sábado, 19 de abril de 2008

Guiné 63/74 - P2779: Estórias do Juvenal Amado (8): O último Natal em Galomaro (Juvenal Amado)

1. Em 17 de Abril último, o co-editor VB tinha mandado ao Juvenal Amado a seguinte mensagem:

Caro Juvenal,

Esta história, que tu tão bem contas, não foi única. Aconteceu várias vezes ao longo do tempo que a guerra durou. A maioria a tiro (entre outros, o caso do Cap Romero, em Jumbembem, já aqui relatado) (1), um ou outro à granada, um ou dois enforcados, todos nós ouvimos falar ou mesmo presenciámos alguns destes casos. Assiste-te o direito de pôr reservas em divulgar este infeliz acontecimento, neste caso com um final feliz.


Publicar tal como está? Publicar com os nomes em iniciais? Ou não publicar?
O que decides?
Um abraço,
vb


2. Resposta de imedaito do Juvenal:

Tenho hesitado, por diversas vezes, em publicar esta história uma vez que envolve um drama pessoal. Por outro lado, penso que a nossa situação e o que se lá passou só pode ser retratado se não omitirmos as nossas tragédias pessoais. Só uma situação de dor extrema pode provocar tal agressão a nós próprios.

Dirão, quem não passou por lá, que este episódio nada tem a ver com a guerra. Mas nós sabemos o que levou a actos como estes.

Juvenal Amado
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3. UM SORRISO TÍMIDO

Juvenal Amado (2)

Ex-1.º Cabo Condutor

CCS/BCAÇ 3872

Galomaro

1972/74


Estávamos verdadeiramente enfastiados naquela noite. O calor dentro do abrigo era sufocante. Todo o dia à chapa do sol transforma-o num autêntico forno à noite.


O Aljustrel senta-se na cama com os pés pendurados e diz:
-Tenho ali uma garrafa de whisky que me está a estragar a mala toda.
- Não és homem nem és nada se não a fores buscar já - disse pouco convencido que o desafio resultasse.


Estávamos em Janeiro de 1974 e muitos dos meus camaradas já tinham feito a mala, convictos que a partida estava para breve. Tínhamos acabado de passar o terceiro Natal, facto que estava a mexer com a malta.

À luz dos petromaxes (em muitos locais), de camuflados, pratos e travessas de aluminio, assim se passavam os Natais em Galomaro e em quase todos os locais onde houvesse um aquartelamento. Os Comandos dos Batalhões e Companhias faziam questão em que a data fosse comemorada com bacalhau, batatas e rabanadas que nem sempre estavam em todas as mesas de todos os destacamentos, mas cerveja, vinhos e uísque raramente faltavam.

Nesta mesa de Natal o único sorridente era o alferes (um piriquito que, em rendição individual, tinha substituido o alferes Mota, morto pelo paludismo).

Natal em Galomaro. Rostos espantados para a máquina.

Fotos: © Juvenal Amado (2008). Direitos reservados.

O Aljustrel, acto contínuo, puxa a mala para cima da cama, abre-a, tira de lá uma Old Parr e diz:
- Vamos ter com o Ivo e bebemos lá a garrafa.

E assim só em calções, atravessámos o quartel, tendo cuidado de passar por de trás da messe, pois o comandante podia ver-nos e chatear-nos por irmos meios nus. Seriam perto das 21 horas, já era de noite há muito tempo. Entrámos no abrigo do Pel Rec e lá estava o Ivo.

Bebemos a garrafa. Aliás, coisa que não era nada difícil naquele tempo. Já meios atordoados, regressámos ao nosso abrigo pelo caminho mais curto, que era entre os abrigos e os edifícios que compunham os alojamentos dos oficiais e sargentos. Esse caminho embora mais curto, era cruzado por valas de escape, que davam acesso às valas de defesa, o que tornava o percurso cheio de armadilhas.

Lá chegámos ao nosso abrigo, seriam perto das 23 horas. Deitei-me meio zonzo. Ainda ouvi o pelotão de patrulha nocturna, no regresso ao quartel, proceder ao desarme da G3, tirando as balas das câmaras.

O alferes Lameiras comandava esse pelotão que regressava.O alferes entrou no quarto onde estava o tenente Matos e o alferes Orlando, que há já algum tempo não podia ficar sozinho. Encostou a G3 à parede, retirou o cinturão com os carregadores de munições bem como os porta-granadas e, como era costume, pendurou-o na própria espingarda.

O tenente, como estava pré estabelecido entre os oficiais, assim que chegou companhia para vigiar o camarada, saiu e recolheu ao seu quarto. O alferes Lameiras, pegou na toalha e dirigiu-se aos balneários para tomar banho.

O Alferes Orlando assim que ficou sozinho, levanta-se da cama, vai aos porta-granadas, retira uma defensiva, tira-lhe a cavilha, deita-se e lança a granada para debaixo da própria cama.

Mal tinha pegado no sono e um enorme estrondo ecoou. Saltei para a vala, mas como mais nada aconteceu, vi que não era ataque. Para os lados dos quartos dos graduados, é que havia algum reboliço e não foi difícil adivinhar, que algo de grave se estava a passar.

Estava um dos quartos totalmente esventrado, quase sem telhado, janelas e vários pequenos incêndios. No chão todo negro, quase irreconhecível no meio dos escombros, estava um corpo. Estava vivo.

O médico, mais enfermeiros, prestavam os primeiros socorros. Lascas de madeira, tinham-lhe dilacerado o corpo em especial as costas. Essas lascas eram da prancha de madeira, que era hábito pôr entre o colchão de arame e o de espuma, o que lhe acabou por salvar a vida.
Fomos como é bom de ver afastados dali, também nada podíamos fazer a não ser estorvar.

A evacuação só se viria a processar já de dia, uma vez que os helis não operavam durante a noite. A evacuação veio às primeiras horas da manhã.

Viemos a saber que em Bissau, foi internado no hospital militar, para tratamento das feridas do corpo e da mente. Por milagre não corria perigo de vida, felizmente.

No dia do embarque do batalhão, lá estava ele ainda convalescente no cais, a despedir-se, com aquele sorriso de menino tímido, que sempre lhe conheci. Ficou no cais a ver o barco fazer-se ao mar. Só virá a regressar mais tarde.

Muitos anos depois, soube que estava bem, que tinha ultrapassado aquele dia em que pensou resolver os seus problemas, através daquela granada.

Juvenal Amado

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Nota de Juvenal Amado:

Os nomes dos intervenientes são forjados. Tive algum pudor em pôr os nomes verdadeiros, assim a estória poderá ser publicada como nosso direito de denunciar o mal que nos foi feito.
Para este camarada foi possivelmente demais o terceiro Natal .

Todos nós quando embarcávamos para a Guiné sabiamos que a comissão não deveria ultrapassar os 18 meses. Facto que nunca se cumpriu e que, no nosso caso, se juntarmos o tempo de viagem foram 27 meses. É pois para publicar se tiver valor para isso.

Juvenal Amado
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Edição de vb.

(1) Vd. texto de 8 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2335: A trágica morte do Cap Rui Romero: 10 de Julho de 1966, dia de correio (Artur Conceição)

(2) Vd. última história do Juvenal: 30 de Março de 2008 >
Guiné 63/74 - P2702: Estórias do Juvenal Amado (7): A Caminho de Buruntuma (Juvenal Amado)

2 comentários:

Anónimo disse...

Fui eu que fiz a evacuacao do alferes X. ao Hospital Militar de Bissau no dia seguinte a tentativa de suicidio. Nao tinha ferimentos graves,o problema era psiquico. Foi a evacuacao mais dificil que fiz. Demorei quase duas horas de Galomaro a Bissalancapois o piloto e o mecanico da avioneta nao queriam regressar nesse dia a Nova Lamego o que so aconteceria se chegassem antes das duas da tarde. Entao andaram cerca de hora e meia a sobrevoar Bafata, so quando os ameacei, porque era responsavel por alguem que se tinha tentado suicidar e que la fomos em direcao a Bissalanca e por sua influencia ao chegar tinhamos uma ambulancia a nossa espera. Deixei-o entregue ao medico que o dr. Pereira Coelho me tinha indicado e fui como de costume para Bissau comer e beber para recuperar forcas. Nunca mais vi este camarada. Augusto Catroga

Anónimo disse...

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