sábado, 1 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2598: Estórias avulsas (2): O bom pastor (Luís Fonseca)

Texto de Luís Fonseca, ex-Fur Mil Trms, CCAV 3366/BCAV 3846 (Suzana Varela , 1971/73), enviado em 23 de Fevereiro último.

Caro Luis:
O texto que seguidamente escrevo era para ter tido guia de marcha por alturas do Natal. Tavez pudesse ter sido aceite como história do mesmo período. Mas nem sempre, cá como lá, no primeiro decénio do séc. XXI ou nos princípios dos anos setenta, os planos saiem tal qual as nossas expectativas.

Este episódio nada tem que ver com os indomáveis guerreiros felupes mas apenas com dois anos da nossa vida passados naquele chão.



Portugal> Panorâmica da Serra da Estrela, tão diferente da paisagem da Guiné-Bissau

Guiné> Bonito pôr-do-sol em Suzana

Fotos: © Luís Fonseca e Carlos Vinhal (2007) (Direitos reservados)


1. O bom pastor (1)
Por Luís Fonseca

O personagem chegou a Suzana já era passada, para os velhinhos, mais de metade da comissão de serviço.

De aspecto franzino, o homem era de poucas falas, sendo notório desde o primeiro dia o seu isolamento do convívio com os restantes camaradas.
Com a sua bazuca, acompanhada, raras vezes, por algo de sólido, quando aparece na sala do soldado, afasta-se o mais possível das conversas, parecendo escolher sempre a mesa mais afastada. Se nos primeiros dias se poderia dizer que estaria numa fase de ambientação, com o passar do tempo tal esperança desvaneceu-se.

No desempenho da sua especialidade, reabastecimento de combustíveis, pouco havia que fazer, não só pelo número de viaturas existentes, mas também porque desde o início o nosso Furriel Rodinhas, cognome dado pela população ao responsável pela Mecânica Auto, como acontecia aos restantes responsáveis pelas secções de serviços dependendo da sua especialidade, tinha distribuído aos seus rapazes essa tarefa.

"A" era mais um elemento para a Mecânica e, como os restantes, para todos os serviços que fossem necessários ao bom funcionamento da Unidade. Assim não era raro, quando preciso, vê-lo nos serviços de escolta, ida à água, psico, etc.

Em qualquer deles não deixava transparecer emotividade. Não era preciso pressioná-lo para o desempenho de qualquer das tarefas da estrutura militar. Limitava-se a cumprir e fazia-o exemplar e disciplinadamente.
Nem o campeonato de futebol entre os diversos Grupos de Combate, Formação e População o conseguiam tirar do seu alheamento. Talvez não apreciasse o chamado desporto-rei.

O Maior afirmou, por várias vezes, que tínhamos ganho um problema sério e que seria bom não o perder de vista.

A cada dia que passava a sua forma de agir mais se fechava. Ficava-se pelo sim ou não, como quem pretende não permitir intrusos dentro da concha em que se havia enclausurado. Em termos meramente comparativos dir-se-ia que vegetava.

De quando em vez aproveitava o seu tempo para dar longas caminhadas no perímetro do aquartelamento, sem nunca entrar na tabanca. Sempre só, sem corresponder sequer aos gracejos dialécticos das bajudas. Era vulgar encontrá-lo sentado no banco existente na casa da pista de aviação, onde permanecia até à hora da refeição do jantar.

Uma tarde um elemento da população de Ejatem fez uma entrada apressada no aquartelamento. Da sua expressão sobressaía um nervosismo bem visivel. Apontava na direcção da sua aldeia e apenas era possível entender a palavra soldado na, para nós complicada, linguagem felupe.
A primeira ideia que ocorreu foi a de que os páras senegaleses, com quem os felupes haviam tido alguns desentendimentos (2), tinham voltado a fazer das suas.
O elemento da população mostrava-se cada vez mais nervoso, esgrimindo as suas armas, arco e flechas. Com a chegada de um interprete ficou a saber-se o que, na verdade, se passava. Um militar das NT passeava-se em território senegalês.

Foi de imediato destacada uma Secção de um dos Grupos de Combate para que rapidamente se pudesse pôr cobro a uma situação, no mínimo, delicada. Chegados ao local, guiados e acompanhados por elementos da população de Ejatem, foi confirmada a presença de um militar português e mais, quem era o passeante.

Sentado em cima de um pequeno baga-baga "A", utilizando como arma um longo varapau, fitava, com o mesmo ar distante, um rebanho de gado vacum, pertença, mais que provável, de algum Fula.

Durante a viagem de regresso a Suzana, "A" apenas referia que se encontrava bem e que não percebia o aparato pois se tinha limitado a seguir umas vaquinhas sozinhas que havia encontrado durante uma das suas passeatas habituais (a distância que separa Suzana de Ejatem é de cerca de 5 km) e que tal facto o fizera reviver o seu rebanho de ovelhas na sua querida Serra da Estrela.

Acredito que foi, talvez, a mais longa conversa tida desde a sua chegada. E existia motivo para tal.
Os seus acompanhantes de ocasião, habituados a situações bem mais duras e também diferentes, trataram com o maior carinho o seu camarada. Afinal tratara-se de recolher alguém que havia decidido sonhar com os locais que lhe eram queridos e o melhor, já que tudo havia corrido sem problemas, era não o acordar do seu sonho.

Dias depois o nosso bom pastor seguia a caminho do HM 241 de Bissau, da mesma forma que havia chegado e vivido aqueles meses entre nós, praticamente em silêncio.

O stress pós-traumático de guerra (3), apenas foi reconhecido em Portugal, oficialmente, em 1992 e, pelo que se sabe, existem mais de 50.000 homens que passaram pelos três Ramos das Forças Armadas, a sofrerem, com maior ou menor notariedade, de tal síndroma.
A esse número pode e deve ser acrescentado um número indeterminado de apanhados pelo clima e outros que, exteriorizando ou não o que lhes ia na alma, foram actores, num pedaço de história do Império Mali, reino de Gabu, a que desde o séc. XVIII chamam de Guiné, a que, de alguma forma, ficámos ligados sentimentalmente.

Kasumai

Luis Fonseca
ex-Fur Mil Tms

Nota: Espero que a coluna para Guileje se faça sem problemas e que o restante programa decorra o melhor possível.


2. Comentário de C.V.

A propósito deste trabalho, enviado pelo Luís Fonseca, venho lembrar que os camaradas da Tertúlia e os nossos habituais leitores, que apresentam algum sintoma de stresse pós-traumático, devem procurar ajuda psicológica.

Nunca é tarde para encetar uma recuperação e proporcionar aos familiares algum sossego. Como se sabe, não são só os doentes que padecem, mas também quem os acompanha, especialmente as esposas e os filhos.

Podem começar por se dirigir a uma das Delegações da ADFA existentes, desde Bragança até ao Funchal e Ponta Delgada, onde poderão solicitar informações sobre os passos a dar.

O site da ADFA está em http://adfa-portugal.com/

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Notas dos editores:

(1) Título da responsabilidade do editor

(2) Vd. post do último trabalho do camarada Luís Fonseca de 23 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2474: Cusa di nos terra (14): Susana, Chão felupe - Parte IX: Os indomáveis guerreiros felupes (Luís Fonseca)

(3) Vd. Posts relacionados com stresse pós-traumático:

de 9 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2089: O stresse pós-traumático dos veteranos da guerra colonial

de 15 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1663: Recortes de imprensa (1): As nossas mulheres e o stresse pós-traumático de guerra (Zé Teixeira)

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