quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2593: Pami Na Dondo, a Guerrilheira , de Mário Vicente (11) - Parte X: O preço da liberdade (Fim)

Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66) > Uma enfermeira (*) pára-quedista no meio dos Lassas...

Foto: © Mário Fitas (2008). Direitos reservados.


Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66) > A bela Miriam, a lavadeira, de etnia fula, que, no romance, gostava de fazer converso giro com o Furriel Rafael...

Foto: Mário Vicente, Putos, Gandulos e Guerra. Ed. de autor (Cucujães, 2000).


Guiné-Bissau > PAIGC > Novembro de 1970 > A liberdade: um caminho difícil, com um preço alto para muitos homens e mulheres que combateram na guerrilha. É o que sugere esta imagem do fotógrafo norueguês Knut Andreasson.

Fonte: Nordic Africa Institute (NAI) / Foto: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a autorização do NAI)

PAMI NA DONDO, A GUERRILHEIRA (1)
Autor: Mário Vicente
Prefácio: Carlos da Costa Campos, Cor
Capa: Filipa Barradas
Edição de autor
Impressão: Cercica, Estoril, 2005
Patrocínio da Junta de Freguesia do Estoril
Nº de páginas: 112

Advertência: Trata-se de uma obra de ficção, embora inspirada em factos reais, em especial na actuação da CCAÇ 763, os Lassas, que estiveram e viveram em Cufar, no sul da Guiné, nos anos de 1965 e 1966.

Edição no blogue, devidamente autorizada pelo autor, Mário Vicente Fitas Ralhete (ex Fur Mil Inf Op Esp, CCAÇ 726, Cufar, 1965/66). Revisão do texto, resumo e subtítulos: Luís Graça.

Parte X (Final) > A professora do PAIGC é libertada no mato, grávida de um Lassa que morre em combate(pp. 97-111)

Vd. resumo dos episódios anteriores (2)

(i) Disfarçada de mulher de limpeza, Pami ouve os furriéis Gama, Taveira e Rafael a debaterem, dilacerados, o sentido da guerra e o seu sacrifício pela Pátria


Miriam, para além da roupa de Rafael, agora também tratava da limpeza e arrumação do quarto dos três furriéis. Pami, prisioneira em liberdade condicionada, acompanhava por vezes a lavadeira fula, dando uma ajuda a esta nas suas tarefas. Numa dessas deslocações à messe de sargentos, os três ocupantes encontravam-se no quarto comum. Sobre as camas, os mesmos falavam sobre a guerra e os seus problemas envolventes. Sem darem qualquer importância, aliás ignorando completamente a permanência das negras, movimentando-se nos seus trabalhos de limpeza.

Perspicaz e atenta, Pami registava as dissertações dos militares. Gama, sentado na cama recostado sobre a cabeceira da mesma dizia:
-Foda-se!... Martírio... para mim não há pior que a sede. Quando a boca se me seca, quase que sufoco!

Pami paralisou, confuso o seu cérebro tentou, sem o conseguir, saber qual a espécie de sede a que o militar se referia. Não era ele que os colegas diziam, transformar-se completamente perante uma acção de fogo? Não diziam até que, rastejando, ia à zona de morte buscar os camaradas feridos, quando eram emboscados? Dúvidas racionais sobre qual a sede sofrimento do militar.

Taveira, tronco nu, envergando apenas uns calções de cáqui, completamente estendido sobre a cama dissertava:
-É pá! Eu penso muitas vezes que um dia em que por hipótese tenha um filho... Que poderei eu dizer-lhe, sobre esta merda?... Que seu pai subiu aos cumes do bem, e que chafurdou, descendo aos abismos do mal?

Rafael de bruços, pés sobre os ferros da cama, lançando nuvens de fumo dos cigarros que sofregamente aspirava, atalhou:
- Filho!? Se o tiver... espero ter a coragem de confessar-lhe que seu pai se encontrou perdido e dividido entre esses dois pólos. Poderei até confirmar-lhe que espezinhei a condição humana e a própria Pedra de Moisés.

A prisioneira, na ânsia de ouvir os militares, ia fazendo render o tempo, ajudando vagarosamente na limpeza do aposento. Ignorando completamente a presença das duas mulheres, Rafael continuou:
- É certo que cada guerra é criadora das suas próprias normas e leis, não revogando as leis humanas. De livre vontade, sob coacção ou de qualquer outra forma não há dúvidas que as aceitamos e respeitamos... Quem terá ética e razão, para nos condenar pelo que fazemos? ... Também é lógico e racional questionar que, em termos teológicos, nos estamos cada vez mais afastando da libertação! O fosso que nos separa da casa e da família é cada vez mais profundo. A vida que foi. A ligação a essa forma de vivência torna-se cada vez mais esfumada. Estamos cada vez mais próximos do inentendível da razão, e da destruição da nossa identidade global.

Enquanto falava, lançava argolas de fumo do seu terceiro ou quarto cigarro, cujas pontas ia lançando na lata de conserva, improvisado cinzeiro. Gama abandonou a posição sentada e esparramou-se na cama sobre o lado direito, pronunciando:
- É fado de saudade, a comunhão que fazemos, no partilhar do pão, farinha amassada de tristeza e alegria, com os companheiros, envoltos nestes uniformes camuflados de guerra.

Taveira contorceu-se como que acossado por carreiro de formiga cadáver. Embora a sua propensão extrovertida de interpretar as situações, fleumático atirou:
- A unidade e a solidariedade são a procura incessante da estrutura humana no mundo. Há algo que é muito importante escalpelizarmos: A terrível confissão de que não temos nomes, e aquilo que apenas possuímos é a transformação desses mesmos nomes, em comunicados de guerra. Muito simplesmente a nossa condição humana é única e exclusivamente medida em litros de suor sangue e lágrimas, derramados em prol da Pátria. Todos somos espectros de outras guerras. Isso é o que nos une e permanecerá entre nós.

Gama interrompeu:
- É verdade! Somos uma geração que está a ser sacrificada e devorada, para o bem futuro e salvação das gerações vindouras.
- Mentira! - exclamou, peremptório, Rafael, dando uma volta e sentando-se na cama. De dedo em riste para o seu camarada afirmou:
- Repito! Em princípio isso é uma mentira imposta! Não nos sacrificamos a nós ou aos turras, mas a ambos. Os que já se foram e aqueles que ainda virão, são a súmula de todo este disparate!... O Taveira tem absolutíssima razão, quando diz que todos somos espectros de outros conflitos. Pergunto: Porquê nos foi destinada esta vida? Porquê nascer para este estado de sofrimento? Como compreender tudo isto?... Também é verdade, que qualquer resposta me é inútil, porque me encontro com vertigens, vomitando sobre o abismo que se abre à minha frente. Quando matamos, já não somos nós! Porque nós próprios já estamos mortos. Conheci poucas pessoas que quisessem vir para aqui, e muitos menos que não tivessem medo da guerra, e receio de não regressarem a casa. Muitos, mas muitos de nós tenho a certeza, dentro de si ficarão, com os buracos que abrimos para os abrigos, as crateras abertas pelas granadas de morteiros e as noites das matas sem luar cheirando a morte! Alguém já compreendeu, que se toma impossível regressar de uma guerra?...Ela será nossa companheira até nos extinguirmos. Findará apenas quando o som cavo, das pás de terra se ouvir, caindo sobre as tábuas, que envolverão a nossa matéria.
-Será!?... Que só sabemos criar através da destruição?

Pami não entendia agora muitas das coisas que os militares diziam. Mas ficou com a certeza de que era aquela a fotografia do seu interior, e que não tinha nada a ver com a que se apresentavam exteriormente perante o mundo.

Rafael continuou:
-Gostaria de perguntar a estas gentes que nos transformam em voluntários forçados e nos incutem a ter saudade dos maternos mamilos, sugando-os até fazer sangue. O porquê? E para quê?... À minha ditosa Pátria - busto, figura, mulher libertada - gostaria de perguntar que mais sacrifícios nos requer?... Às mulheres, mães, irmãs, esposas e amantes, gostaria de questionar porquê não invertem a razão dos valores, e gritem bem alto em uníssono: Parem!... Basta!... Por favor! Ou será que o absurdo leva as mães ao masoquismo de terem orgulho chorando sobre a campa dos seus filhos? Falsos heróis, fabricados por um louvor em Ordem de Serviço!

Gama inquieto, a adrenalina subindo. Exclamou:
- Pára , não voltemos a Camões. Lembra-te que o desgraçado, para poder divulgar a sua Obra, teve de dar manteiga aos padres.

Rapidamente Rafael ripostou:
- Camões é inquestionável. Sabes porquê? Porque a Língua é parte integrante da nossa identidade. Quem melhor a cantou como Ele? Mas também podemos reflectir - indicando na direcção das mulheres no seu trabalho - Que língua falam estas desgraçadas negras? Se Ela revela o que construímos e aquilo que somos. Também te dá os exemplos contrários. O que não somos, e o que não construímos ou antes destruímos.

Os militares, em íntimos pensamentos interrogativos concerteza, calaram-se por breves minutos. Um silêncio claustraniano invadiu a mansão militar. Mas Taveira remexeu o refugado.
- Sim!... Podemos questionar que outros tormentos e desalento, deseja a Pátria ver no rosto dos seus filhos, para se sentir feliz. Quem será o último a morrer, em seu nome e da sua glória?

Rafael voltou filosofando:
-O meu pai mostrou-me uma noite, o poço da Ribeira Velha. Era tão profundo, que apenas reflectia uma estrela. Um ano a seca foi tão grande que o fundo do poço se transformou em lama, fazendo desaparecer a estrela. Penso que o desaparecimento de uma estrela , no fundo de um poço, nos destroça mais do que uma emboscada na estrada de Cabolol. A sede que martiriza o Gama talvez seja esta. Por ventura, um de vós que me sobreviva, irá falar com o meu pai. O meu pai chorará, e aquele que lhe falar, ficará diante dele cabisbaixo, envergonhado, mordendo os lábios. Sentir-se-à culpado por não ter sido morto também. E reflectirá sobre a própria sobrevivência. A cara de meu pai reflectirá na distorção da sua dor e paixão a minha própria cara. Nessa hora concerteza pensareis: Porquê ele e não eu?
- Amanhã!... Será a vez de outro amigo e companheiro olhar nos olhos de outros pais ou mães. Não tenhais dúvidas! Este será o drama que nos acompanhará! Somos, sem dúvida, uma geração que não existiu para viver e amar, mas sim para se extinguir sob o síndroma dos efeitos da guerra. Como será o futuro? Quais os efeitos para todas as partes deste enorme disparate?

Como que acordando de longo sono, olhou para Míriam e rispidamente interpelou-a:
- Como é, saco de carvão? Esta merda nunca mais fica limpa? Gosse! Fora daqui!

Pami sentiu enregelar-se e, rapidamente, seguiu a sua companheira, que saía adivinhando borrasca. Os militares continuaram de certeza a sua conversa. Mas para a prisioneira o que ouvira era suficiente, para ficar completamente baralhada. O mundo apareceu-lhe, como imenso labirinto, bem definido entre dois pólos invisíveis: O Princípio e o Fim.

Não era a primeira vez que a conversa dos militares a fizeram raciocinar sobre este tema da guerra. Nas conversas habituais do varandim, tinha assistido a um aceso debate sobre a política portuguesa para as colónias Portuguesas em África, e ouvira perfeitamente falar sobre Amílcar Cabral.

Recordava na altura ter Rafael referido que um seu amigo tinha estudado engenharia com o líder do PAIGC, e que se referia a ele como sendo dos melhores alunos do seu curso de agronomia. Pena era ter-se ligado aos comunistas de Leste. Sobre este tema, não recordava quem tinha levantado o problema de não ter o PAIGC simpatias só nos países de Leste. Tinha até sido levantado o problema da Língua na Guiné, e a influência que os países de língua francófona, dada a sua proximidade, poderiam daí retirar algum partido, resultante do laxismo português. Ouviu muito mais sobre a questão colonial (províncias de Portugal). Inclusive, o Gonçalo, falar da estupidez de não ter sido tomada em conta a posição de Norton de Matos, sobre Angola. Sobre este caso, Pami por desconhecimento absoluto não pôde retirar conclusões.


(ii) Pami, com sintomas de gravidez, vai com o Furriel Rafael... em português


Aproximava-se a época das chuvas. Pami começou a sentir-se um pouco estranha, tinha vómitos pela manhã, o ciclo menstrual desapareceu-lhe e os seus pequenos seios começaram a crescer. Preocupada a prisioneira, pelos indícios verificou que estava grávida. Entrou em pânico, quando compreendeu que transportava no ventre, um filho ou filha, do militar branco.

Como seria? Que fazer perante esta situação?... Não poderia dizer a ninguém. Mas como esconder tal situação? Falar com Míriam e contar toda a verdade? De certeza esta ficaria com ciúmes, e a amizade terminaria. E mais grave o furriel Rafael ficaria logo a saber. E se contasse ao furriel ou ao alferes? Qual seria a reacção? Rafael era amigo do Gonçalo! Incerteza como reagiria! Agora, sim, sentia-se num dilema, turbilhão de ideias. Como poderia ser compreendida pela guerrilha? Certo era que não poderia viver assim sem comunicar com alguém.

Passada que foi uma noite sem fechar os olhos, e com uma agitação incontrolável na sua mente, teve uma resolução, chamou Míriam, e solicitou-lhe, para interceder junto do furriel Rafael, pois queria falar com ele. Aquela riu perdidamente, e perguntou:
- Sanhá, tu não sabe fala potuguês! Como fala tu com furiel? Quê qui tu quere fala cum ele?- perguntou com desconfiança.

A prisioneira informou de que não aguentava mais a situação, e queria que o furriel a interrogasse, para depois a matar, ou mandar embora.

Míriam falou com o furriel, e este informou que ia falar com o alferes Telmo. Para resolver o assunto. Pela tarde, apareceu um milícia, que mandou a prisioneira acompanhá-lo, e seguiram para a casa dos interrogatórios. O milícia mandou sentar Pami, ele também se sentou no chão. Passado um bom bocado, apareceu o furriel só, sem arma, vestindo roupa civil. Calça cinzenta e camisa branca. Deixara crescer a barba novamente, mas agora estava um pouco mais gordo. Retirou um maço de cigarros do bolso da camisa, e ofereceu um ao milícia e retirando outro para ele, acendeu com o isqueiro, primeiro o dele, e depois o do milícia. Olhou para a prisioneira, e comunicou ao milícia:
- Diz-lhe lá que já não me lembrava dela como prisioneira! Mas que está mais gorda e mais bonita! Pergunta-lhe se está satisfeita com os soldados de Cufar!

Antes do milícia fazer a tradução, a prisioneira retorquiu em crioulo perfeito:
- A mim fala só cum furriel!

Este ficou um pouco desorientado, ao ouvir a prisioneira, e demoradamente reteve o olhar no coto da mulher. Olhou para a cara da mesma e ordenou ao milícia:
- Vai embora! Eu falo então com ela!

O milícia saiu, o furriel sentou-se no único banco existente na casa. Começou a fazer argolas com o fumo do cigarro, com o olhar e pensamento concerteza distante. Voltou a olhar para a prisioneira que, angustiante, aguardava a oportunidade da autorização para falar. De repente disparou:
- Quê qui bó miste?

Pami olhou para o furriel, duas gotas caíram-lhe dos olhos e pronunciou:
- Eu peço perdão, eu falo português!

O furriel rápido como um felino, deu um salto deixando cair o banco. Instintivamente, levou a mão direita à anca, como se procurasse a pistola. Notava-se que tinha ficado desorientado. Olhando constantemente para a prisioneira, deu uns passos na sala - como que fera a preparar o salto sobre a presa - sempre fumando. Até que parando levantou o banco, voltando a sentar-se, e calmamente interpelou:
- Não estou a compreender, vamos com calma! Repete lá o que disseste?
- É verdade!... Falo português, e possuo a quarta classe de escolaridade, tirada na escola missionária de Catió. Peço perdão por ter escondido, mas tinha medo que me matassem. O meu nome verdadeiro é Pami Na Dondo. Sanhá Na Cunhema era minha mãe que faleceu em Cadique há um ano e pouco. O meu pai é Pan Na Ufna e meu marido Malan Cassamá, se ainda for vivo.

Estupefacto, o furriel mandou a prisioneira falar e contar tudo. Enquanto Pami ponto por ponto narrava a sua vida, o militar em silêncio fumava, acendendo cigarros uns nos outros. Incrédulo, ouvia, parecendo o pensamento estar muito longe. A narrativa da destruição da escola de Flaque Injã fê-lo olhar para a prisioneira, que agora falava e chorava. Pami ia começar a narrar alguns episódios da sua estadia como prisioneira no aquartelamento. Mas foi interrompida pelo furriel.
- Ficaste contente quando o Gonçalo morreu, na noite que te levou para a cama?

Pami ficou sem saber que responder e admirada pelo militar saber que o amigo a tinha violado. Escondendo o estado de gravidez em que se encontrava, num rasgo de audácia, perguntou:
- Como sabe?
- Sei tudo o que se passou nessa noite, há soldados que viram e a Míriam contou-me tudo. Estás ou não contente por ele ter morrido?
- Fiquei contente nesse dia, sim! Não o nego. Mas hoje não sei! Estou muito confusa! Furriel, por favor, eu quero terminar agora!... Mate-me! Eu já não sirvo para nada. Nem para os militares, nem para o PAIGC. Quero mesmo acabar. Mate-me ou mande matarem-me! A partir deste momento, só o meu pai me poderá compreender, Malan meu marido dificilmente o fará.

Rafael deitou fora a ponta do último cigarro restante do maço e apagou-a com a ponta da bota de lona. Olhou fixamente a prisioneira, e disse-lhe:
- Malan Cassamá já não existe! Foi abatido em Flaque Injã quando ao servir de guia tentou fugir.

Pami retorquiu:
- Tentou a fuga ou mandaram-no fugir?
- Sinceramente não sei dizer! Mas daria no mesmo. Após tudo isto tenho a certeza que não és assim tão ingénua e ignoras a situação em que nos encontramos. Sabes perfeitamente que estamos na opção zero! Quem não mata, morre! Que alternativas existem?

A prisioneira, sentindo o coração apertado, com aquela verdade tão dura respondeu:
- Sim! Só que nós morremos por uma causa nobre e justa, queremos ser livres e donos da nossa Terra!
- Tens razão! Só que nós não queremos morrer e, para isso acontecer, a única lógica concerteza é matar. Quem achas que sofre mais? A mãe de Malan Cassamá ou a mãe do Gonçalo? Há possibilidades de medir a dor e o sofrimento de qualquer mãe pela morte de um filho?... Pode um homem ser a maior peste do mundo, mas para a sua mãe ele será sempre o seu filho. Aqui há coisas concretas, não podemos brincar. Mesmo que queiramos não podemos fugir à realidade.


(iii) Rafael, armado de G3, leva Pami para o mato, sozinha com ele. Pami, grávida em resultado da violação, implora ao Lassa para que mate


Pami não respondeu, chorava copiosamente. O furriel levantou-se e disse-lhe, saindo:
- Esperas aqui que eu volto já.

Saiu, e a professora guerrilheira continuou chorando, completamente destroçada. Totalmente em farrapos, o seu cérebro ia tentando recompor algumas coisas. Malan morto! E seu pai, ainda seria vivo? Apenas existia uma indecisão. Era a corrente que se transmitia do seu ventre ao pensamento.

Teria ela também o direito de decidir qual o caminho do ser que transportava? Reconhecera já raiva com ela própria, ao tontamente sorrir, acariciando o ventre. Sentia momentos de incerteza, sobre o gosto do que transportava.

Passados alguns minutos o furriel regressou. Tinha envergado uma camisa camuflada, por cima da camisa branca. No ombro em bandoleiro de cano para baixo, trazia uma espingarda G3. Abriu a porta, e sem olhar, disse:
- Vamos! Segue-me!

Abandonaram o quarto de interrogatório, e o furriel dirigiu-se para a porta de armas seguido da professora de Flaque Injã. À saída da porta de armas, o soldado de sentinela olhou e falou:
- Vai comê-la, ou entregá-la ao papá do céu? Veja lá, meu furriel, mas é se ela lhe rouba a arma, enquanto está matando a fome!.
- Vai-te foder! Porco de merda! - foi a resposta do furriel.

Seguiram junto ao arame farpado e depois divergiram para o carreiro que dava acesso à lagoa, entrando na picada que a circundava. Pami sentia o corpo todo em demente tremura, e os seus passos seguindo os do militar eram já inseguros e incertos. Recordante, ouviu o padre Francelino narrando os passos de Cristo, coroado de espinhos arrastando a Cruz, a caminho do Gólgata. Tentou rezar o Pai-nosso em sinal de perdão. O furriel andou uns cento e cinquenta metros, e parou debaixo de uma árvore, carregada de ninhos de tecelões que, com o aparecimento dos intrusos, voaram, num grande chilrear.

O sol caía sobre o fundo da pista. Brevemente a noite africana apareceria com os seus sons e mistérios. Época de chuvas, o bonito luar de África, não apareceria mas sim as trevas e algum tornado. O furriel puxou a culatra da G3, e introduziu uma bala na câmara, rodando a patilha de segurança para tiro de rajada. Mandou sentar a prisioneira no chão, ao que esta obedeceu. Rafael olhou para a cara da rapariga, e sentiu qualquer coisa diferente de quando a interrogara pela primeira vez. Verificou em pormenor que a prisioneira apresentava a cara mais cheia, os seios agora bem visíveis pelo afastamento do pano, pareciam que tinham dobrado de tamanho, o olhar tornara-se meigo e brilhante de uma doçura estranha.

O militar procurou os olhos da prisioneira e fixando-os tentou penetrar no seu intimo, questionando-a!
- Que posso fazer por ti?
- Mata-me! - respondeu, firme, a prisioneira.
- Sabes que cometeste uma grande falta e erraste ao mentires nos interrogatórios. Podias ter colaborado e assim não morrerias. Os militares não te trataram bem?

A rapariga acenou que sim com a cabeça. Mas o militar pressentiu qualquer coisa na prisioneira, e, julgando que era a hora certa, insistiu:
- Fala! Há qualquer coisa estranha, que parece quereres dizer-me algo mais!?

Pami mudou de posição, e pôs-se de joelhos, como que em oração, olhos no chão, saíram-lhe estas palavras:
- Já não tenho solução, aqui ou na guerrilha, a minha vida já não vale nada, pelo que o melhor é morrer!

Uma torrente de lágrimas caía pela cara da pseudo-guerrilheira. O furriel já não olhava para a mulher, mas sim para o cair do sol por sob o ilhéu de Infanda, e ela continuava:
- Mata-me! É melhor assim, para mim e para ele, que o Deus do padre Francelino me perdoe.
- Não! Há alguma coisa errada no meio disto tudo. Conta! Conta toda a verdade!

Massacrava o furriel com perguntas. Agora já num choro em soluços, Pami de joelhos continuava: - É nula a solução, eu sei tudo sobre vós, já contei tudo, mas aparecer assim na guerrilha não vão acreditar. Vai ser o maior desgosto para o meu pai!
- Mas aparecer como? - ripostou o militar.
Completamente destroçada, Pami confessou:
- Eu fiquei grávida na noite em que morreu o Gonçalo! Nas minhas entranhas existe um ser, filho dele!

(iv) Rafael liberta finalmente Pami, que irá ter um filho de tuga, norto em combate. A mãe pôs-lhe o nome de Umberto Cassamá.


Uma rajada soou por sobre a lagoa de Cufar, e o seu eco redobrou na margem oposta. As aves que se alimentavam, nas águas calmas, levantaram voo em gritos de aflição.

Pami pareceu sentir o seu corpo trespassado por milhares de projécteis, e o seu cérebro apenas definiu o fim. Passaram uns segundos eternidade. A mulher levantou os olhos, e olhou para Rafael. Este continuava a olhar o pôr-do-sol, e sobre a rala e negra barba, apareciam agora gotas de orvalho caídas da fonte de seus olhos. A arma mantinha-se fumegante, virada para os céus.

Pami jamais sonhara ver aquele homem duro comovido. O militar baixou-se, pegou na guerrilheira pelos braços, e ergueu-a. Voz embargada, falou para Pami mulher criança:
- Se quiseres ficar connosco, podes ficar! Ninguém te tratará mal. Se achares melhor ires ter com o teu pai, vai! Perdoa ao Gonçalo, e se for um rapaz não te esqueças de lhe por o nome de Humberto! Aqui em Cufar todos te julgarão morta! Nunca te arrependas de ser uma mulher livre! O teu pai saberá compreender-te! Vai!...

Completamente atónita, Pami Na Dondo, guerrilheira e professora de Flaque Injã, não queria acreditar no que ouvia do militar. Começou a caminhar no sentido do fundo da pista, de regresso ao desconhecido. Cinquenta metros à frente, sentiu na coluna um arrepio de frio e a sensação que iria receber uma rajada pelas costas, - o furriel não iria cometer uma traição - e virou-se para ao menos morrer de frente. Ajuizou mal. Apenas viu o militar de costas, caminhando em direcção ao aquartelamento.

Míriam tinha razão, Rafael nunca seria capaz de matar mulher. Só em combate ele poderia matar alguém. Teve vontade de voltar atrás correndo e pedir perdão ao militar.

Ao entrar na porta de armas, a sentinela brincou com o furriel:
- Aquela, já vai dormir com os anjinhos hoje!? Amanhã vai dar um belo pequeno-almoço aos jagudis!

O furriel, sem olhar repostou:
-Sim, aquela voltou a ser uma mulher livre!

No fundo do carreiro, Pami contornou a pista e dirigiu-se para a mata de Cufar Novo. Fez-se noite....

Época de chuvas, completamente encharcada, Pami na Dondo, vagueou perdida pelas matas de Cufar Nalu, Camaiupa Cachaque e Cabolol. Passados dois dias, num carreiro junto ao rio Quaianquebam, próximo onde Gonçalo fora abatido, um grupo de guerrilheiros, encontrou-a caída completamente exausta.

26 de Novembro de 1966, algures na mata do Cantanhez no Sul da Guiné, nascia Umberto Cassamá, filho de Pami na Dondo, e neto de Pan Na Ufna. No mesmo dia, os Lassas desembarcavam do navio Niassa no Cais de Alcântara em Lisboa.

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. postes anteriores desta série >

21 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2293: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (1): Os bastidores de um romance (Luís Graça / Mário Fitas)

23 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2298: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (2) - Parte I: O balanta Pan Na Ufna e a sua filha (Mário Fitas)

28 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2307: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (3) - Parte II: A formação político-militar (Mário Fitas)

5 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2328: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (4) - Parte III: O amor em tempo de guerrilha (Mário Fitas)

10 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2340: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (5) - Parte IV: Pami e Malan são feitos prisioneiros (Mário Fitas)

18 de Dezembro de 2007 > Guine 63/74 - P2363: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (6): Parte V: O primeiro interrogatório da prisioneira (Mário Fitas)

30 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2391: Pami Na Dondo, a Guerrilheira , de Mário Vicente (7) - Parte VI: Malan é entregue à PIDE de Catió (Mário Fitas)

16 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2443: Pami Na Dono, a Guerrilheira, de Mário Vicente (8) - Parte VII: O prisioneiro Malan é usado como guia (Mário Fitas)

5 de Fevereiro de 2008 >Guiné 63/74 - P2506: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (9): Parte VIII: Os demónios étnicos (Mário Fitas)

20 de Fevereiro de 2008> Guiné 63/74 - P2560: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (10) - Parte IX: A prisioneira é violada...


(2) Resumos dos postes anteriores:


(i) A acção decorrer no sul da Guiné, entre os anos de 1963 e 1966, coincidindo em grande parte com a colocação da CCAÇ 763, como unidade de quadrícula, em Cufar (Março de 1965/Novembro de 1966)…

No início da guerra, em 1963 Pan Na Ufna, de etnia, balanta, trabalha na Casa Brandoa, que pertence à empresa União Fabricante [leia-se: Casa Gouveia, pertencente à CUF]. A produção de arroz, na região de Tombali, é comprada pela Casa Brandoa. Luís Ramos, caboverdiano, é o encarregado. Paga melhor do que a concorrência. Vamos ficar a saber que é um militante do PAIGC e que é através da sua influência que Pan Na Ufna saiu de Catió para se juntar à guerrilha, levando com ele a sua filha Pami Na Dono, uma jovem de 14 anos, educada das missão católica do Padre Francelino, italiano.

O missionário quer mandar Pami para um colégio de freiras em Itália mas, entretanto, é expulso pelas autoridades portugueses, por suspeita de ligações ao PAIGC (deduz-se do contexto). Luís Ramos, por sua vez, regressa a Bissau, perturbado com a notícia de que seu filho, a estudar em Lisboa, fora chamado para fazer a tropa.

É neste contexto que Pan Na Una decide passar à clandestinidade, refugiando-se no Cantanhês, região considerada já então libertada.

(ii) De etnia balanta, educada na missão católica, Pami Na Dondo, aos catorze anos, torna-se guerrilheira do PAIGC. Fugiu de Catió, com a família, que se instala no Cantanhês, em Cafal Balanta. O pai, Pan Na Ufna entra na instrução da Milícia Popular. Pami parte, com um grupo de jovens, para a vizinha República da Guiné-Conacri para receber formação político-militar, na base de Sambise. O pai, agora guerrilheiro, na região sul (que é comandada por João Bernardo Vieira 'Nino') , encontra-se muito esporadicamente com a filha. Num desses encontros, o pai informa a filha de que a mãe está gravemente doente. Pami fica muito preocupada e quer levá-la clandestinamente a Catió, enquanto sonha com o dia em que se tornará companheira do pai na Guerrilha Popular.

Entretanto, o destino prega-lhe uma partida cruel: na instrução, na carreira de tiro, tem um grave acidente, a sua mão esquerda fica decepada. No hospital, conhece Malan Cassamá, companheiro de guerrilha de seu pai, que recupera de um estilhaço de morteiro, que o atingiu na perna, no decurso da Batalha do Como, em Janeiro de 1964 (Op Tridente, Janeiro-Março de 1964, levada a cabo pelas NT) . Malan fala a Pami da coragem e bravura com quem seu pai se bateu contra os tugas.

Pami é destacada para dar aulas ao pessoal do Exército Popular e da Milícia Popular, em Flaque Injã, Cantanhez. No dia da despedida, canta, emocionada, o hino do Partido, 'Esta é a Nossa Pátria Amada', escrito e composto por Amílcar Cabral. Segue para Flaque Injã, com o coração em alvoroço, apaixonda por Malan Cassamá. De regresso à guerrilha, a Cansalá, Malan fala com o pai da jovem, e de acordo com os costumes gentílicos, Pami torna-se sua mulher.

(iii) Na actual região de Tombali (Catió), no sul da Guiné, o PAIGC, logo no início da guerra, ganha terreno e populações (nomeadamente, de etnia balanat). A resposta das autoridades portuguesas não se fez esperar, com uma grande contra-ofensiva para reconquista a Ilha do Como (Op Tridente, Janeiro-Março de 1964).

Entretanto, começam a chegar a Catió chegam reforços significativos. O Cantanhês, zona libertada, assusta o governo Português. Em contrapartida, no PAIGC, Nino, o mítico comandante da Região Sul, manda reforçar os acampamentos instalados nas matas de Cufar Nalu e Cabolol.

Em finais de 1964, Sanhá, a mãe de Pami, morre de doença na sua morança na tabanca de Cadique Iála. O guerrilheiro Pan Na Ufna, acompanhado da sua filha, faz o respectivo choro, de acordo com a tradição dos balantas.

Em Março de 1965, os homens da CCAÇ 763 - conhecidos pela guerrilha como os Lassas (abelhas) - reconquistam ao PAIGC a antiga fábrica de descasque de arroz, na Quinta de Cufar, e respectiva pista de aterragem em terra batida. Nino está preocupado com a actuação dos Lassas, agora instalados em Cufar, juntamente com o pelotão de milícias de João Bacar Jaló, antigo cipaio, agora alferes de 2ª linha.

Entretanto, Pami e Malan continuam a viver a sua bela estória de anor, em tempo de guerra, de sacrifício e de heroísmo. Ela, instalada em Flaque Injá, onde é professora. Ele, guerrilheiro, visita-a sempre que pode.A 15 de Maio de 1965, os Lassas destroem o acampamento do PAIGC na mata de Cufar Nalu. A guerrilha sofre baixas mas, durante a noite, consegue escapar com o equipamento para Cabolol. Na semana seguinte, os militares de Cufar tentam romper a estrada para Cobumba. Embrenham-se na mata de Cabolol, destroiem várias tabancas na zona.

Em princípios de Junho de 1965, os Lassas (abelhas) vão mais longe, destruindo o acampamento de Cabolol. Em Cafal, o comando político-militar do PAIGC está cada vez mais preocupado. Em Julho, Pami chora de dor, raiva e revolta ao ver a sua escola destruída, em Flaque Injã. Grande quantidade de material desaparece ou fica queimado. As casas de Flaque Injã ficam reduzidas a cinzas.

Mas a luta continua... Psiquicamente recuperada, a população começa a reconstrução de Flaque Injã e Caboxanque. A guerrilha recebe mais reforços e armamento novo. Pami entra voluntariamente numa coluna de reabastecimento que a leva à República da Guiné. Segue o corredor de Guilege, e sobe de Mejo para Salancaur, daqui para o Xuguê [Chuguè, segundo a carta de Bedanda,] terra de seus avós paternos. Desce até Cansalá, onde se encontra com seu marido. Não encontra seu pai, pois este fora transferido para o Cafal, e ali integrado numa companhia do Exército Popular.

Em meados de Agosto de 1965, Pami Na Dondo desce com Malan Cassamá até Cobumba. Malan e o seu grupo levam a cabo várias acções contra a tropa e o quartel de Bedanda. O grupo regressa a Cansalá. Uma delegação da OUA visita as zonas libertadas, a convite do PAIGC.

(iv) Madrugada de 24 de Agosto de 1965, Pami e Malan dormiam nos braços um do outro quando a tabanca, Cobumba, sofre um golpe de mão do exército português, que tem a assinatura dos Lassas.

No grupo de prisioneiros que são levados para Cufar, estão Malan e Pami que terão destinos diferentes. Pami estão integrada num grupo de cinco mulheres e procura nunca denunciar a sua condição de professora. Em caso algum falará recusará falar em português ou em crioulo. Mas os seus olhos de águia vão observado tudo, no caminho até ao quartel dos Lassas. No rio Cadique o grupo embarca em lanchas da Marinha. O Alferes Telmo não deixa que ninguém toque nas mulheres. Fala em psico, uma palavra que Pami desconhece. O grupo é entregue à guarda ao Furriel Mamadu.

Pami mal reconhece a antiga fábrica de descasque de arroz, a Quinta de Cufar, onse se instalaram os Lassas. Os prisioneiros são recebidos por militar dos óculos que, mais tarde Pami vem a saber tratar-se de Carlos, O Leão de Cufar, comandante do aquartelamento. Homens e mulheres são instalados em sítuios diefrentes. Malan e Pami entrecuzram o olhar, sem se denunciaram. Sabem que dizem ali adeus para sempre. Lágrimas nos olhos, Pami sente a dor da separação. Pami e as prisioneiros ficam à guarda da milícia de João Bacar Jaló [ou Djaló]. Recusa-se a comer, bebe só água. No dia seguinte, a vida no aquartelamento retoma o seu ritmo. Pami pode agora ouvir e até ver perfeitamente, por entre as frestas das paredes de capim ao alto entrançado com lianas, tudo o que acontece por fora da palhota onde tinha passado a noite.

(v) Começam os interrogatórios dos prisioneiros, em Cufar. Um soldado milícia, da tropa de João Bacar Jaló, vem buscar Pami. Pelo caminho, Pami vai-se preparando mentalmente para mentir aos seus captores e sobretudo para não comprometer Malan. Entretanto, com os seus olhos de águia, vai observando e registando todos os pormenores da vida no aquartelamento dos Lassas.

Um milícia serve de intérprete. O interrogatório é conduzido pelo Alferes Telmo, acompanhado pelo Furriel Rafael (de alcunha, Mamadu), um e outros reconhecidos de imediato pela Pami. Respondendo apenas em balanta, diz chamar-se Sanhá Na Cunhema (nome da mãe) e ter nascido na Ilha do Como. Os militares decidem mudar de táctica. Rafael encosta-lhe o cano da pistola ao seu ouvido, e pergunta-lhe, através do intérprete, o que aconteceu à sua mão esquerda... Um pouco trémula, diz que, quando era criança, fora mordida por uma cobre, tendo o pai sido obrigado a cortar-lhe a mão para a salvar...

Pami parece não convencer os seus interlocutores. Os dois Lassas entram em provocações de teor sexual, pensando tratar-se de uma eventual prostituta ao serviço da guerrilha... O interrogatório irá continuar nos dias seguintes. Pami regressa, exausta, para junto das suas companheiras de infortúnio. Mas, ao mesmo tempo, sente-se orgulhosa por. neste primeiro round, não ter traído os ideais de seu pai, Pan Na Ufna e de seu marido, Malan, valentes guerrilheiros do PAIGC.

(vi) Pami está exausta e confusa, depois do primeiro interrogatório com os rangers Telmo e Rafael (ou Mamadu). Próximo da hora de almoço do dia seguinte, Pami foi levada novamente para ser interrogada. Só que para surpresa sua, o interrogatório não era com os mesmos do dia anterior. Sente que tem de ter muito cuidado. Não pode cair em contradição, ou ceder qualquer pista, pois não sabe nada sobre o que está a acontecer ao seu marido Malan Cassamá, e agora tinha muitas mais razões para a sua inquietação, resultante das revelações feitas pelos seus inquiridores. Sim, ficou a saber que Telmo e Rafael pertenciam a tropas especiais. Porquê a sua inclusão numa companhia normal do exército colonialista, interroga-se ela?

Entretanto Malan é denunciado como guerrilheiro do Exército Popular e é entregue à PIDE de Catió. A professora apercebe-se que os seus companheiros, homens, estão a ser interrogados com a ajuda de cães para aterrorizar mais. Entre as mulheres prisioneiras, já teria havido confissões. Uma, pelo menos, foi alvo de abusos sexuais. As que colaboram com os Lassas são soltas.

Entretanto, a balanta Pami torna-se confidente de fula Miriam e sente um ódio profundo pelo Furriel Rafael (Mamadu, segundo o seu nome de guerra). Os Lassas, por sua vez, voltaram a ir ao outro lado do Rio Cumbijã. Meta, casada com um milícia e amiga da Miriam, contou que tinham andado por Cadique Iála, e que tinham morto muita gente, e queimado as casas todas. E não tinham tido nem mortos nem feridos.

Pami apercebeu-se que de facto as coisas deveriam ter corrido bem, porque houve grande festa no Comando. Mas também poderia ser festa de anos do furriel Rafael, como afirmara Miriam. Era certo que quando algum furriel ou alferes fazia anos, havia sempre grandes festas. Era uma forma de criar corpo de unidade, delineado pelo macaco velho do Leão de Cufar, o chefe dos Lassas.

(viii) Em novo interrogatório, o Furriel Rafael ameaça matar a professora de Flaque Injã, quando esta, já esquecida dos interrogatórios, é levada de novo, em princípios de Setembro de 1965, à presença do temível triunvirato: Queba, o intérprete, o alferes Telmo (com o seu caderno), e o furriel Rafael (com a sua pistola).

Embora aterrorizado com as ameaças do Furriel Rafael (que parece fazer bluff...). Pami teme sobretudo que os Lassas façam de novo uma operação do outro lado do Rio Cumbijã, utilizando o seu marido, Malan, como guia...

Voltando de novo à sua morança-prisão, Pami apercebe-se de que nem todos os Lassas estão ali, na guerra, de livre vontade... Os seus piores receios, entretanto, materializam-se, ao reconhecer o seu Malan na silhueta do negro, de corda atada ao pescoço de um negro, conduzido por um Lassa, a caminho da porta de armas, possivelmente para srevir como guia numa operação... Pelo burburinho que perpassa pelo aquartelamento, Pami toma conhecimento de que os Lassas estão em operações lá para os lados de Caboxanque... Um avião T-6 é atingido, mas o seu o piloto consegue fazer uma aterragem de emergência em Cufar...

No regresso dos Lassas ao quartel, Pami sabe, pelas conversas que ouve junto dos milícias, eles ter-se-iam esquivado a uma emboscada, junto ao cais de Caboxanque. Detectando a segurança à retaguarda, os Lassas mataram esses elementos e, saindo do caminho que vai dar ao cais, divergiram para a bolanha para não entrarem na emboscada, que deveria ter muita gente do PAIGC. Mas sobre Malan não consegue saber mais nada de concerto.

Uns dias mais tarde, Míriam contou a Pami tudo o que tinha acontecido, conforme lhe descrevera o furriel Mamadu. O pessoal do PAIGC mais uma vez tinha sido humilhado, pelos Lassas. Tinha sofrido grandes baixas, vários mortos e muitos feridos. A professora de Flaque Injã chorou e pela primeira vez o desânimo entrou no seu pensamento. Seria que o sonho de uma Pátria era irrealista?


(viii) Caminhamos para os finais de 1965. Pami têm agora duas novas amigas, com quem conversa mais amiuadamente, as lavadeiras Miriam e Meta, esta última mulher de um velho milícia. Os Lassas já se habituaram à presença de Pami que continua a observar e registar mentalmente tudo o que se passa à sua volta. Dá conta da existência de um furriel de nome Gonçalo, que passa a vida a falar com o seu cão cufar. No final do ano, aparecem aviões a lançar toneladas de bombas sobre o Cantanhez. Os Lassas saem para uma operação em Darsalame. O Furriel Rafael é ferido e evacuado para o Hospital de Bissau. Miriam está chorosa e apreensiva. Leva Pami ao quarto do Furriel a quem lava a roupa e a quem faz favores sexuais. Pami fica intrigada com as fotografias que vasculha. As duas mulheres falam sobre as bajudas brancas do Furriel.

Agora já ninguém liga à prisioneira nem a importuna. Mas Pami fica triste certo dia, quando ouviu um soldado a ler, a outro, uma carta dos pais... A professora interroga-se sobre a condição humana e a estupidez da guerra. Com mais liberdade de movimentos e beneficiando da amizade de Miriam, Pami vai conhecendo melhor o quotidiano dos Lassas, as suas misérias e grandezas. Mas o que mais espicaçou a sua curiosidade intelectual foi uma longa conversa sobre os povos da Guiné, travada num círculo à volta do Leão de Cufar e dos seus colaboradores mais próximos. No final, fica a saber que Rafael tinha voltado do hospital…


(ix) A profesora do PAIGC esforça-se por consolidar a sua amizade a lavadeira, a jovem fula, Míriam, que está muito triste porque ninguém lhe dás notícias do seu furriel, enquanto ao mesmo tempo acalenta a ideia de o levar no Homem Grande, "para bala não entrar no corpo dele"... Entretanto, Rafael regressa do hospital. Miriam faz uma festa. A vida em Cufar continua, com a sua rotina de guerra... Um belo dia, Pami entra no quarto dos furriéis, a convite de Miriam, vê fotografias de bajudas brancas e lê uma carta da mãe de Rafael... Inevitavelmente sente saudades da sua mãe, que morreu no mato...

Entretanto o Leão de Cufar, o comandante dos Lassas, vai para Bissau, para outra missão, sendo subtituído por um "capitão gordinho, com ar assustado"... Esta mudança de liderança vai fazer mal aos Lassas, e à sua prontidão para a guerra...

Na véspera de sair para mais uma operação, os Lassas estão tensos, agressivos, violentos. O Furriel Gonçalo acaba por forçar Pami a ter relações sexuais com ele, no seu quarto, com a cumplicidade de Miriam. A resistència de Pami é inútil...

No dia seguinte, Gonçalo morre em combate.... Os Lassas estão destroçados. Como retaliação pelos seus desaires, bombardeia o Cantanhez com a sua artilharia pesada. Pami volta a temer as represálias dos Lassas. Teme pela sua vida, enquanto assiste a cenas tristes, em que os Lassas exibem comportamentos estranhos, regressivos, e continuam a morrer ou a ir para o hospital em Bissau...

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Nota: Dirigida ao Mário Fitas

Ao ler o blog P2593 do Luís Graça, sobre a guerra da Guiné, encontrei uma foto que é sua e está identificada como " uma enfermeira". O nome dessa enfermeira é Ivone, se pretender pôr lá o nome pode fazê-lo. (...)

Jorge Félix
ex-Alf Pil Aviador

2 comentários:

Anónimo disse...

Só hoje me foi possível, começar a ler e precisamente pelo fim, da "Pami Na Dondo, a Guerrilheira", de Mário Vicente. Prometo ler os outros capítulos mas hoje já tenho o coração a bater um pouco mais e vou ter de parar.
Conheci bem Cufar e estive lá umas três vezes pelo menos, durante a presença dessa companhia. Fiquei muito sensibilizada, com o espírito de humanidade, demonstrado pelo furriel, que não aceitou abater a Pami tal como ela pedia e, pelo contrário, devolveu-a à liberdade, para junto da sua família!..
A guerra,trouxe ao nosso conhecimento, o melhor e o pior do que o ser humano é capaz, perante muita adversidade!..
Por este texto, agradeço ao autor a sua narrativa e dou-lhe os meus parabéns.
As suas netas vão ficar orgulhosas do seu avô e saber dos sacrifícios passados naquela terra, que uniu muitos dos seus companheiros, para toda a vida. Vivências que ficaram gravadas, nos seus "corações" e que marcaram uma geração, que não deve nem pode ser esquecida!.. Daí a relevância, destas publicações.
Aproveito para corrigir o nome da enfermeira paraquedista. Não é a Ivone, mas sim a Amália,(já falecida). Estávamos ambas nesse tempo, na Guiné.
Mª Arminda.

Anónimo disse...

Obrigado pelas suas palavras Maria Arminda.

Desejo as suas melhoras.

Um abraço

Mário Fitas.