sábado, 23 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2574: Estórias de Guileje (9): O massacre de Sangonhá, pela Força Aérea, em 6 de Janeiro de 1969 (José Rocha)

Guiné >Região de Tombali > Gadamael - Porto > s/d> Aquartelamento, com o espaldão, em primeiro plano, da peça de artilharia 11,4. Ao fundo, a tabanca (reordenamento feito pelo exército).

Guiné > Região de Tombali > Gadamael - Porto > s/da > Tabanca, reordenada pelas NT.

Guiné > Região de Tombali > Sangonhá, a sul de Gadamael -Porto > s/d > Vista aérea do destacamento e da sua pista de aviação. Este destacamento deverá ter sido abandonado pelas NT em finais de 1968 (O destacamento de Mejo foi evacuado em 28 de Janeiro de 1969, na mesma data de Gandembel e de Balana; os aconteciementos referidos nesta estória do José Rocha ocorreram em 6 de Janeiro de 1969).


Fotos: Autores desconhecidos. Álbum fotográfico Guiledje Virtual. Gentileza de: © Pepito/ AD - Acção para o Desenvolvimento (Bissau) (2007). Direitos reservados (Editada por L.G.).



Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 2410, Os Dráculas (Junho de 1969 a Março de 1970) > O Alf Mil José Barros Rocha posando sobre a roda de uma peça de artilharia 11,4 .

Foto: © José Barros Rocha (2007). Direitos reservados.

1. Texto de José Rocha (1), enviado em 19 do corrente:

Assunto - Guileje, Gadamael e Mata do Cantanhez...

Amigo Luis:

Ontem na minha visita ao Blogue, li um relato do Zé Teixeira (2) acerca de um bombardeamento efectuado pela Força Aérea na zona de Gadamael em 1969, e tendo em vista precisar a data do mesmo, decidi - sem qualquer intenção de entrar em preciosismos - dar o meu contributo (3).

Aí vai: No dia 6 de Janeiro de 1969, cerca das 8 horas da manhã as forças do PAIGC, estacionadas na antiga pista do quartel abandonado de Sangonhá, iniciaram um ataque bastante cerrado com armas pesadas ao Destacamento de Ganturé, tendo caído algumas granadas no interior do mesmo.
O pessoal do destacamento [de Ganturé] respondeu com morteiro 81 e 60, mas o ataque continuava. Então pediram apoio a Gadamael, que reagiu com mesmo tipo de armamento e, se a memória não me falha, também com o obus 8,8 [, ou peça de artilharia 11,4 ?].

Mesmo assim a festa não parava e então pediu-se o apoio aéreo, que surgiu, composto por dois Fiat.



Guiné > Região de Tombali > Catió > Álbum fotográfico de Benito Neves, bancário, reformado, residente em Abrantes, ex-Fur Mil da CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67) > Foto 28: "Cufar, 1966 - Artilharia no quartel de Cufar, Obus 8,8 cm".

Foto e legenda: © Benito Neves (2007). Direitos reservados.



Pediram-nos a localização provável de onde estávamos a ser atacados, e que sinalizámos com granadas de fumo, disparadas pelo morteiro 81. Dirigiram-se para essa zona e de imediato começámos a ouvir rajadas - eram de anti-aérea - e nós perguntámos aos pilotos se eram eles que estavam a fazer fogo, tendo-nos respondido que não! Então numa conversa entre ambos os pilotos, ouvimos um deles dizer ao outro "senti qualquer coisa no meu aparelho"! E comunicaram-nos que iam regressar a Bissau.

Passado algum tempo regressaram 4 Fiat e mais tarde 2 T-6 e uma DO [- Dornier 27]. Entraram pelo lado de Cacine e de imediato iniciaram o lançamento de bombas, cuja explosão era perfeitamente audível e sentida através de fortes tremores do solo. (Estávamos a uma distância de cerca de 6/8 Kms em linha recta).

A operação terminou cerca das 13 horas. Na tentativa de sabermos exctamente o que tinha acontecido, eu e o Rodrigues (ex-Alferes Miliciano) reunimos um grupo razoável de voluntários, e pedimos ao Capitão para nos deslocarmos ao local, mas a nossa pretensão não teve acolhimento. Apanhámos um grande balde de água fria!

Somente no dia 9 [de Janeiro de 1969, três dias depois], com apoio aéreo, é que fomos ao local. No percurso encontrámos carretéis de fio telefónico com uma extensão de cerca de 4/5 kms, abrigos individuais ao lado da estrada, e, na antiga pista [ de Sangonhá], armas destruídas e pedaços de corpos de negros e brancos e 13 sepulturas. Uns dias depois tivemos a informação de 36 mortos confirmados e muitos feridos.

O aspecto do local era medonho! A terra, cuja cor natural é avermelhada, tinha a cor cinza! O intenso cheiro a putrefacção! Os abutres (jagudis) às dezenas! As árvores queimadas! Enfim...

Fico-me por aqui. Um abraço e até Bissau

José Rocha


Aeronaves DO-27, T-6 e Fiat 91 G (por ordem) > Fotos: gentileza de Victor Barata, membro da nossa tertúlia, criador e fundador do blogue Especialistas da Base Aérea 12, Guiné 65/74

2. Comentário de L.G.:

Até Bissau, camarada Rocha, grande Drácula de Guileje! ... Obrigado pelo teu testemunho em directo!... Que vale ouro ! Tu não relatas algo que tenhas ouvido falar (em Bissau, na esplanada da 5ª Rep, o Café Bento, ou à beira do Geba, a comer ostras e a beber cerveja)... Não, camarada, tu estiveste lá, em Sangonhá, três dias depois, em 9 de Jeneiro de 1969. E viste com os teus próprios olhos, que a terra há-de comer, a terra vermelha calcinada de Sangonhá e os corpos carbonizados, desmembrados, dos combatentes do PAIGC... Ali ao lado, em Chamarra, o Zé Teixeira só podia imaginar o chão juncado de mortos, os gritos dos feridos, o desespero dos vivos tentando escapar e arrastando os feridos para a protecção da mata...

Quando formos a Guileje (ou Guiledje), no dia 1 de Março de 2008, no próximo sábado, eu quero ouvir-te contar o resto da história de Sangonhá... Foste parco nas palavras, o que eu entendo... Ao que ocorreu em Sangonhá (de eu nunca tinha ouvido falar), chamei-lhe massacre... Não estou a exagerar, pois não ? Haverá ainda antigos guerrilheiros do PAIGC, sobreviventes deste terrível bombardeamento da nossa Força Aérea ?!... Se sim, gostaria de ouvir os seus depoimentos, para podermos finalmente juntar as peças do puzzle e fazer mais um pequeno luto do grande luto que foi esta grande tragédia, para a nossa sacrificada geração...

Se alguém passar por Sangonhá, deixe uma simples flor, silvestre, colhida no mato, e uma tosca cruz nas imediações da actual povoação, para lembrar aos jovens guineenses (e aos eventuais turistas distraídos que por lá passarem, por engano) que, naquela terra, houve bravos guineenses que foram massacrados pela FAP - Força Aérea Portuguesa, numa luta desigual, em 6 de Janeiro de 1969... Não estou a fazer nenhum juízo de valor sobre os nossos camaradas da Força Aérea que fizeram o seu dever, bombardeando as posições do PAIGC, tal como os combatentes do PAIGC faziam o seu dever, combatendo-nos e matando-nos... Estou só a constatar a brutalidade da guerra na Guiné...

Na altura o PAIGC ainda não tinha os Strella, apenas algumas velhas anti-aéreas (5)... Mas em Sangonhá, e por todo o Tombali, também morreram tugas, inúmeros camaradas e amigos nossos... Verguemo-nos à memória de todos esses bravos, de um lado e de outro, que a morte ceifou no auge da vida... Que o seu supremo sacrifício não tenha sido em vão!... Que todos nós e os nossos filhos e netos possam aprender com os erros (trágicos) do passado e com a brutalidade da guerra, de todas as guerras...

____________

Notas de L.G.:

(1) Vd. postes de:

6 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1568: Álbum das Glórias (8): Os Dráculas, CART 2410, Guileje (José Barros Rocha)

18 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1443: Contributo para a história da construção do aquartelamento de Guileje (José Barros Rocha, CART 2410, Os Dráculas, 1969/70)

(2) Vd. poste de 17 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2545: Blogoteria (41): Guileje, Gadamael, Mata do Cantanhez... e a memória das gentes (José Teixeira)

(...) "Chamarra, 16 de Janeiro de 1969:

"Gadamael foi teatro de uma das maiores lutas no Ultramar entre a Força Aérea e o IN.O resultado, pelo que dizem, demonstra bem o poder da aviação e sobretudo mostra que os homens se matam sem compaixão e mesmo neste caso em que as nossas forças lutam para manter a ordem, não há homem, creio eu, que não sinta o coração sangrando, quando vê o inimigo a sofrer, numa luta desigual.

"Quando os Fiat sobrevoaram o IN, foram metralhados por uma quádrupla anti-aérea. Deixaram 200 kg da sua carga mortífera e foram buscar mais. Os bombardeiros T6 apareceram também e durante duas horas foi um descarregar de bombas. Nós só víamos os aviões à distância e ouvíamos o estrondo dos rebentamentos, mas calculámos que tenha sido uma luta terrível, tal a quantidade de chocolate que estourou.


"Eu imagino o chão juncado de cadáveres, regado com o sangue dos mortos e feridos, imagino os gritos lancinantes dos feridos ao verem a vida a fugir-lhe. Parece-me que estou a ver os que ficaram ilesos carregar os mortos" (...).



(3) Vd. postes anteriores da série Estórias de Guileje:

18 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2552: Estórias de Guileje (8): Como feri, capturei e evacuei o comandante Malan Camará no Cantanhez (Manuel Rebocho, CCP 123 / BCP 12)

11 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2523: Estórias de Guileje (7): Um capitão, cacimbado, e um médico, periquito, aos tiros um ao outro... (Rui Ferreira)

31 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2493: Estórias de Guileje (6): Eurico de Deus Corvacho, meu capitão (Zé Neto † , CART 1613, 1966/68)

30 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2492: Estórias de Guileje (5): Os nossos irmãos artilheiros Araújo Gonçalves † e Dias Baptista † (Costa Matos / Belchior Vieira)

29 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2489: Estórias de Guileje (4): Com os páras, na minha primeira ida ao Corredor da Morte (Hugo Guerra)

27 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2483: Estórias de Guileje (3): Devo a vida a um milícia que me salvou no Rio Cacine, quando fugia de Gandembel (ex-Fur Mil Art Paiva)

23 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2473 - Estórias de Guileje (2): O Francesinho, morto pela Pátria (Zé Neto † )

14 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2437: Estórias de Guileje (1): Num teco-teco, com o marado do Tenente Aparício, voando sobre um ninho de cucos (João Tunes)

(4) Vd. poste de 13 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2535: PAIGC - Instrução, táctica e logística (9): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (IX Parte): Defesa anti-aérea (A. Marques Lopes)

6 comentários:

Anónimo disse...

Caro Luis Graça
As "classificações" que por vezes fazemos das coisas que acontecem, nem sempre são comparáveis, ou completamente justas.
Porque é que se chama "massacre" a um bombardameamento aéreo pela Força Aérea, para defesa de um aquartelamento que está a ser atacado, e não se chama "massacre" a uma emboscada, como por exemplo a do Quirafo, em que o PAIGC, sabe perfeitamente que aquela gente não ía fazer outra coisa que não fosse uma estrada?
Toda a guerra é um "massacre" e as flores devem ser colocadas em cada sitio onde tombou um homem, uma mulher ou uma criança.
A Força Aérea retaliou a um ataque para defesa das nossas tropas e sabemos bem que mais tarde alguns aviões foram abatidos.
Por "massacre" em guerra entendo algo que é perpetrado contra gente indefesa, população ou prisioneiros.
Este é o meu ponto de vista, o que não quer dizer que não me arrepie com aqueles que morreram e não honre a sua memória.

Abraço amigo do
joaquim mexia alves

Luís Graça disse...

Joaquim:

O teu conceito (técnico e jurídico) de massacre está correcto... Ou melhor: as palavras são tramadas, são polissémicas, têm muitas subtilezas...

A palavra português do francês do Séc. XII, "massacre": acto de causar a morte de muitas pessoas ou animais"...

Em português, hoje, quer significar "acto ou efeito de massacrar", ou seja, de "matar cruelmente" e, especialmente, "em grande número, em massa"...

Em termos éticos, jurídicos, militares e históricos, Sangonhá não pode ser classificado como um "massacre"... Estamos de acordo.

Mas p'ra mim, ao ler o testemunho do Zé Teixeira e sobretudo do José Rocha, Sangonhá foi um massacre, uma mortandade, uma carnificina... Mesmo que tenham só morrido 36, e a Força Aérea tenha actuado em "legítima defesa" das NT que estavam a ser atacadas em Ganturé.

Fiz questão de dizer que não estava em causa a nossa FA. Os aviões e os pilotos estavam lá, como nós, para isso mesmo...

Usando talvez a figura estilística da hipérbole, quis dizer (e o título é da minha responsabilidade, não do José Rocha, autor do texto),quis dizer ou acentuar que Sangonhá foi um massacre, tal como o Quirafo (onde morreram vinte e tal, entre militares e população civil, indefesa) ou a Ponta do Inglês (onde sofri seis mortos e nove feridos, numa terrível emboscada no decurso da Operação Abencerragem Candente, Xime, 26 de Novembro de 1970...).

A guerra - como tudo o mais - tem sempre duas faces, o verso e o reverso, eu e o meu inimigo, os dois ligados por um estranho e diabólico cordão umbilical...

Obrigado pelos teus sempre oportunos comentários... Um Alfa Bravo. Luís Graça

Luís Graça disse...

Sim, "naquela terra, houve bravos guineenses que foram massacrados pela FAP - Força Aérea Portuguesa, numa luta desigual, em 6 de Janeiro de 1969...",mas como escreveu o Mexia Alves a guerra da Guiné foi isso mesmo, não foi uma batalha de tomates, foi a tiro, à granada, com rockets, granadas de artª, bombas de dezenas de quilos. De um lado e do outro, indiscriminadamente. A FAP fez o que tinha de fazer, como o PAIGC fez, ao semear de minas trilhos e picadas de quase todo o território. Foi uma Guerra.

Luís Graça disse...

Esqueci-me de assinar o comentário anterior. As minhas desculpas ao Mexia Alves e ao Luís.
vb

Anónimo disse...

Isto nem tem discussão o que é natural...Nós os aassassinos massacrámos e os outros uns humanistas dfendiam a sua terra, incluindo os cubanos e outros que são uns humanistas desinteressados
pela luta dos povos.Viu-se na Guiné e Angola.

Anónimo disse...

Isto de só ver a face da moeda que se quer ver, tem que se lhe diga.Bombardear ambulâncias com feridos devidamente sinalizadas, ou abater um "mosca" em cabinda cuja única missão era evacuar feridos, isso sim é humano e não tem nada de massacre.E nem vos falo do tratamento dado à tripulação do mosca.Esses libertadores sim eram uns humanistas.
Mosca era um ALLIII.Pensem o que pensarem digam o que disserem, a ingratidão é apanágio deste cantinho miserável à beira-mar.