sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2572: As Nossas Madrinhas de Guerra (4): Madrinhas de Guerra (II) (José Teixeira)



José Teixeira
ex-1.º Cabo Enfermeiro
CCAÇ 2381
Buba, Quebo, Mampatá


1. O nosso camarada José Teixeira enviou-nos mais uma história, destinada à nova série As Nossas Madrinhas de Guerra, que como quase todas as suas intervenções, foca o aspecto mais humano e menos bélico da sua experiência como Enfermeiro na Guiné.

2. Madrinhas de Guerra (II)
Por José Teixeira

Pouco antes de partir para a aventura na Guiné, cruzei-me com uma amiga de alguns anos, a Arminda. Logo me pediu para ser minha madrinha de guerra e lá escrevi a sua morada na listagem de candidaturas, poucas, às quais nunca fiz a vontade.

Nos dois extensos anos que vivi no ambiente de guerra escrevi e ditei algumas cartas para madrinhas de guerra e ou namoradas, para pais de namoradas a pedir autorização de namoro, ou para no regresso da guerra, poder namorar à porta de casa, mas para os outros.
Eu, por opção pessoal não tive madrinha. No entanto, a Arminda foi-me muito útil no acompanhamento de um camarada que infelizmente viveu um terrível drama amoroso.

Quando após regressar, e me encontrei com ela identificando assim, o estranho amigo a quem o meu camarada, surripara a sua morada é que ela entendeu toda a trama.

Vamos a factos.

Já lá iam cerca de oito meses de comissão, quando o Esgalgado, alcunha de um camarada, cujo nome real nunca me deu para memorizar, começou a aparecer na caserna em Buba, pelas duas três horas da manhã, com umas cervejas a mais no estômago. Tinha uma voz grossa e incomodativa, uma língua comprida e afiada. Acordava meia caserna e eu sendo o seu companheiro do lado era o maior mártir.

Cansado de tanta perturbação, para quem dia sim dia não abalava às cinco da matina para montar a protecção à equipa de Engenharia que andava a construir a nova estrada de Buba para Quebo, dispus-me a pegar nele por um braço e trazê-lo para fora da caserna, com o objectivo de tentar saber o que se passava, a razão de tão grande mudança no seu comportamento, que nos estava a afectar a todos.

Caso bicudo. Casado, com um filho. A esposa queixava-se que não recebia correspondência, embora lhe escrevesse todas as semanas.

Por outro lado um tio viúvo, irmão de sua mãe, o qual, na sua partida para a Guiné, lhe propusera a cedência a título gratuito, de uma pequena casa de sua propriedade, mesmo ali ao lado da que habitava. Uma forma da esposa, (operária têxtil) e filhinho viveram, baixando assim os custos com o aluguer. Este, escrevia-lhe contado cenas de infidelidade da esposa, enquanto a mãe lhe escrevia a dizer que era tudo mentira o que o tio escrevia, pois a jovem esposa, passava muito tempo em sua casa e lhe era profundamente fiel.

Esta confusão gerou no Esgalgado uma perturbação psíquica, que o levou aos copos em excesso, ao isolamento e a uma irritabilidade permanente que ainda afastava mais os camaradas.

Amenizado o problema com o desabafo, que durou até ao amanhecer, encontradas formas de evitar o extravio da correspondência, enviando-a para a direcção de sua mãe, a calma voltou à caserna, dois ou três dias depois.

Veio de férias à Metrópole. Regressou e a vida foi continuando.

Tempos mais tarde, o seu comportamento alterou-se de novo. Embora não me afectasse directamente, senti que ele era de novo rejeitado e menosprezado pelos camaradas. Os conflitos pessoais sucediam-se, pelo que, numa alta madrugada em que o vi no exterior da caserna com a G3 na mão, provoquei novo encontro e fiquei apavorado com o que ouvi.

O cerne da questão agora estava no tio que sempre mantivera a versão de que a mulher lhe era infiel.
Este senhor, tinha convidado a sobrinha por afinidade a ir a Lisboa com ele, onde iria tratar de uns assuntos pessoais. Pagou-lhe a passagem de barco do Barreiro, onde moravam, para a capital, o almoço, o jantar e. . . também queria pagar-lhe a noite a dois.

Ela rejeitou, fugiu-lhe e foi para casa da sogra viver, desde então.

Naturalmente que o meu amigo ao saber, ficou profundamente perturbado e concluiu que afinal quem desviava a sua correspondência era o seu querido tio.


O sonho dele agora era regressar para matar o familiar a quem confiara a esposa.

Foram muitas horas de conversa, passei a ser o melhor amigo, o confidente.
Como complemento arranjei-lhe uma madrinha de guerra à altura. Dei-lhe a morada da Arminda e desafiei-o a escrever-lhe e convidá-la para madrinha de guerra, sem denunciar a pessoa que lhe indicara o seu nome para madrinha.

Estranhou que na resposta, ela logo quisesse saber o seu estado civil.

E agora! Quando souber que sou casado manda-me dar uma volta. Comentava ele, que possivelmente tinha pensado num namorico

Não. Diz-lhe a verdade, insisti eu.

Assim fez. Para seu espanto, ela pediu-lhe de imediato a morada da esposa. Mais um estranho pedido, que foi atendido com alguns custos, enquanto lhe ia contando um pouco do seu drama. Ela exigiu que ele escrevesse uma carta à esposa a dizer que tinha uma madrinha de guerra. Ficou perturbado, mas por pressão minha, anui.

Uns tempos depois elas, encontraram-se algures em Lisboa.

O restante tempo que passou na CCAÇ 2381, até regressar ao Barreiro, foi calmo. Recebia todas as semanas carta da esposa e da madrinha de guerra. Queria que eu as lesse, mas apenas aceitei as da minha amiga, que continuava intrigada, quanto à forma como ele tinha sacado a sua morada.

Tornou-se uma excelente confidente. As suas cartas ajudaram-no imenso a ultrapassar o seu problema. Mas, estava lá dentro do seu espírito o veneno, que não o deixava em paz: a atitude de seu tio. Nunca mais teve paz aquele jovem.

Numa das nossas conversas que se prolongavam, noite dentro, descobri que outrora um seu irmão tinha falecido em combate em Angola. Logo lhe propus uma carta para o Comandante Chefe a expor a sua situação e pedir o fim de comissão, pois segundo uma lei existente, quem tivesse irmãos mortos em combate, podiam se o requeressem furtar-se a ir para o então Ultramar.

Oito dias depois, tinha na mão Guia de Marcha para Lisboa, uns dois meses antes do fim da Comissão.

Consegui desenfiar-me para uma consulta no Hospital em Bissau e acompanhei-o ao barco na sua partida da Guiné.

Mais calmo e com toda a situação plenamente esclarecido, lá partiu, deixando três promessas a este amigo.

1 - Não faria qualquer mal ao tio.
2 - Iria esperar a sua Companhia ao Porto de Lisboa.
3 - Ia escrever-me a contar a evolução da situação.

Deixou-me estupefacto, mas feliz com uma confidência de última hora, no abraço de despedida em que ambos chorávamos de alegria e de medo de não nos tornarmos a encontrar: - Quando naquela noite em Empada, vieste ter de novo comigo e eu tinha a G3 na mão, salvaste-me a vida, pois tinha-a ido buscar para dar um tiro nos cornos!

Até hoje, nunca mais consegui notícias dele. Soube por camaradas comuns, que já faleceu. Paz à sua alma.

A Arminda, essa ficou de boca aberta, quando uns tempos depois, nos encontrámos e soube a outra parte da estória. Também ela perdera o contacto desde o tempo em que ele a informara que ia regressar. Ainda escreveu para a esposa, sem resultado.

Zé Teixeira
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Nota dos editores:

Vd. último post da série de 20 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2562: As Nossas Madrinhas de Guerra (3): Quem as não teve ? (Luís Graça / João Bonifácio / Paulo Salgado)

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