domingo, 27 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2483: Estórias de Guileje (3): Devo a vida a um milícia que me salvou no Rio Cacine, quando fugia de Gadamael (ex-Fur Mil Art Paiva)


Guiné > Região de Tombali > Gadamael > Junho de 1973 > Uma Lancha de Desembarque Média (LDM) com militares e populares no Rio Cacine.

Foto: © Delgadinho Rodrigues / Manuel Rebocho (2006). Direitos reservados.


1. Só sabemos que se chama Paiva, e foi furriel de artilharia, no pelotão de artilharia que estava em Guileje, quando esta unidade foi abandonada por decisão do comandante do COP 5, Major Coutinho e Lima... É um testemunho dramático, de um homem, de fuga em fuga, que atravessou a nada o Rio Cacine, já na fuga de Gadamael, e foi salvo por um milícia de que não se lembra o nome...

Peço ao Paiva que nos contacte de novo e nos dê as suas coordenadas (pelo menos o endereço de –email e eventualmente o número de telemóvel ou telefone), sobretudo para o ajudar a reencontrar os seus antigos camaradas de Guileje e de Gadamael (e a reorganizar as suas memórias, doridas, daquele tempo)... Seria uma pena que este pungente testemunho ficasse escondido sob a forma de comentário a um dos nossos postes (1)...



2. Estórias de Guileje (3) > Fiquei a dever a minha vida, no Rio Cacine, a um milícia de que nunca soube o nome

por ex-Fur Mil Art Paiva

Revisão e fixação de texto: L.G.:


(i) Artilheiro em Guileje, até ao dia do seu abandono: recordando os Furriéis Araújo (de Braga) e Queirós


Começo por pedir as minhas desculpas pelo facto de não utilizar sinais gráficos. Acontece que estou neste momento provisoriamente na Alemanha e o computador de que disponho tem teclado alemão, não reconhecendo assim parte dos referidos sinais.

Por obra do acaso, deparei hoje com alguns blogues sobre os acontecimentos ocorridos em Guileje e Gadamael no período de 1972 a 1974 (2). Porque na oportunidade desempenhava funções de furriel miliciano afecto à Unidade de Artilharia localizada inicialmente em Guileje, e posteriormente retirada para Gadamael (após o abandono do primeiro daqueles aquartelamentos), tomei parte nos referidos acontecimentos.

Embora a minha memória tenha hoje alguns hiatos que a passagem do tempo provocou, a documentação que li parece-me correcta na substância, embora com algumas imprecisões de pormenor.

Em Guileje, parece-me que o pelotão de artilharia era constituído por 3 secções, cada uma delas sob a chefia directa de um furriel (recordo o furriel Araújo, de Braga, e o furriel Queirós, meus contemporâneos, sendo que o Araújo foi posteriormente rendido, salvo erro pelo furriel Santos, de S. João da Madeira) e comandadas por um alferes, posteriormente substituído por outro. Tenho ainda na minha mente a foto mental de ambos, embora lamentavelmente me não recorde já dos seus nomes.


(ii) A retirada do meu Pelotão de Artilharia para Gadamael

Este pelotão de artilharia retirou na totalidade para Gadamael quando foi dada ordem de abandono do aquartelamento de Guileje. Para além dos graduados e oficial acima referidos, retiraram ainda os cabos e praças (estes últimos naturais da Guiné).

Em Gadamael, a artilharia passou efectivamente muito maus bocados mas não ficou totalmente inoperacional, tanto quanto me recordo. O seu alferes teve aliás um comportamento de bravura pois foi ferido e continuou a desempenhar as sua funções, embora numa situação bastante precária.

Também a Companhia que foi envolvida nestes dramáticos acontecimentos não foi a dos Gringos (açorianos); na verdade, esta Companhia tinha já terminado a respectiva comissão de serviço e tinha sido substituída por uma Companhia do Continente. Foi já pois no tempo desta que o teatro de guerra alastrou e se complicou e foi nesta altura que tivemos que abandonar o aquartelamento de Guileje, de conformidade com o relato que é feito e que coincide no essencial com o que se passou.


(íii) Pânico em Gadamael, entre militares e população, com várias mortes por afogamento na atravessia do Rio Cacine

Já agora poderia acrescentar que uma parte dos militares que se deslocaram para Gadamael, acabaram por abandonar também este aquartelamento, acompanhados de parte da população. Porém uma parte dos militares conseguiu aguentar este aquartelamento até à chegada de reforços que entretanto para ali foram enviados.

Alguns oficiais, sargentos e praças (acompanhados de parte da população) - nos quais me incluía eu -, iniciaram uma retirada para Cacine que foi efectuada debaixo de fogo e que se processou em botes dos fuzileiros. Já agora poderei acrescentar que a evacuação não foi totalmente conseguida nesse dia porque entretanto as operações de resgate foram suspensas por ter começado a anoitecer.

Curiosamente não ficou junto da população nenhum oficial, mas apenas dois furriéis, eu e outro camarada de armas, que, com a população, lográmos atravessar para o outro lado do rio (após a maré ter baixado) e ali tivemos, com muito custo, que conter a população em silêncio para não sermos detectados pelo PAIGC. Esta tarefa foi dramática já que connosco estavam muitas crianças que pela sua natureza são habitualmente ruidosas. Passámos ali a noite até conseguirmos ser evacuados no dia seguinte.

Essa experiência foi traumatizante porquanto assistimos a cenas dramáticas, com muita gente a precipitar-se para o rio e para o tentar atravessar a nado, antes que a maré permitisse o seu atravessamento quase total, a pé. Dessa precipitação resultaram mortes por afogamento, pois a corrente ainda forte arrastou alguns.


(iv) Na travessia do Rio Cacine perdi a G3 e ía perdendo a vida

Eu próprio iniciei a travessia antes de se ter completado o vazamento da maré e, porque não era um nadador exímio, e por outro lado com o peso das botas e da G3 e a força da corrente, tive que a meio da travessia me desembaraçar da minha arma (foi para o fundo do rio) para não morrer afogado. E fiquei a dever a minha vida a um milícia guineense que na outra margem do rio - e a partir do lodo onde se encontrava e para onde eu pretendia arrastar-me - me estendeu a coronha da sua arma a que eu, num esforço titânico, consegui agarrar-me. Fiquei a dever-lhe a minha vida e, no meio da confusão e do caos, sem saber a quem concretamente (ainda hoje...).


(v) Helicópteros ameaçando disparar sobre nós

Também poderei acrescentar que houve lamentavelmente algumas situações obscuras, como um helicóptero (recordo-me de um, pelo menos) que nos sobrevoou quando já estávamos a bordo de um bote, retirando para Cacine, e que ameaçou disparar sobre nós se não regressássemos de imediato ao aquartelamento de Gadamael.


(vi) A morte do meu amigo Furriel Faustino, que regressou a Gadamael

Quando chegámos a Gadamael, fui avisado pelo Faustino (Furriel de quem era amigo, pertencente à Companhia) de que o General Spínola se havia ali deslocado e ameaçado com Conselho de Guerra quem não regressasse de imediato a Gadamael. No dia seguinte quando acordei soube que o Faustino, pressionado pela ameaça, havia regressado. Morreu ao fim da tarde desse dia, vitimado por um estilhaço que lhe entrou pelas costas!


(vii) Em busca dos antigos camaradas

Já agora, e para terminar, gostaria de referir que as informações que circulavam era que a precisão de tiro do PAIGC quer para dentro do aquartelamento de Guileje quer para o de Gadamael devia a sua eficácia a uma suposta bateria de cubanos. Por a minha substituição (comummente designada por rendição) se ter processado em regime de rotação individual, não consegui localizar nunca antigos camaradas de armas (quer afectos ao pelotão de artilharia quer às Companhias - duas- com quem estive: à dos Gringos [ CCAÇ 3477, ] e à que se lhe seguiu [ CCAV 8350,] com a última das quais partilhei estes dramáticos acontecimentos que tantas vidas custaram.

Ao fim de alguns dias voltei a ser deslocado para Gadamael numa altura em que a situação continuava perigosa mas já mais controlada. O único que consegui contactar algumas vezes foi o furriel Queirós que entretanto ingressou na Lusalite, em Lisboa, onde o visitei ainda algumas vezes. Porém essa unidade encerrou e nunca mais o vi. Gostaria de reencontrar todos esses Camaradas.

Um abraço. Paiva,

________________

Notas de L.G.:

(1) Vd. poste de 20 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1860: Gadamael, 2 de Julho de 1973: Um ataque de mais de 4 horas do PAIGC, apenas travado pelo nossos Fiat G-91 (Jorge Canhão)

(2) Sobre a batalha de Guileje e Gadamael, e outros temas relacionados com as unidades que por lá passaram, vd. entre outros mais os seguintes postes:

27 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2137: Antologia (62): Guileje, 22 de Maio de 1973: Coutinho e Lima, herói ou traidor ? (Eduardo Dâmaso / Luís Graça).

5 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2083: Em busca de... (10): Coutinho e Lima, o comandante do COP5 que decidiu abandonar Guileje e foi acusado de deserção (Beja Santos)

22 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1869: Convívios (19): Os Gringos de Guileje, a açoriana CCAÇ 3477, encontram-se ao fim de 33 anos! (Amaro Samúdio).

18 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1856: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (5): Gadamael, Junho de 1973: 'Now we have peace'

24 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1784: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (4): Queridos pais, é difícil de acreditar, mas Guileje foi abandonada !!!

14 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1759: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (3): Miniférias em Cacine e tanques russos na fronteira

13 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1727: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (2): Abril de 1973: Sinais de isolamento

25 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1699: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (1): Abatido o primeiro Fiat G 9

25 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1625: José Casimiro Carvalho, dos Piratas de Guileje (CCAV 8350) aos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11)

31 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1478: Unidades de Guileje: Coutinho e Lima, ligado ao princípio e ao fim (Nuno Rubim)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1293: Guileje: do chimpanzé-bébé aos abrigos à prova do 122 mm (Amaro Munhoz Samúdio, CCAÇ 3477)

10 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1162: Guileje: CCAÇ 3477, os Gringos Açorianos (Amaro Munhoz Samúdio)

5 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1151: Resposta ao Manuel Rebocho: O papel do Orion na batalha de Guileje/Gadamael (Pedro Lauret)

4 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1150: Carta a Pedro Lauret: A actuação do NRP Orion na evacuação das NT e da população de Guileje, em 1973 (Manuel Rebocho)

15 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P878: Antologia (42): Os heróis desconhecidos de Gadamael (Parte I)

15 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P879: Antologia (43): Os heróis desconhecidos de Gadamael (II Parte)

1 comentário:

Luís Graça disse...

1. Mail enviado pelo Luís Paiva, em 24 de Outubro de 2009:


Caro Luís Graça:

Em "viagem meramente acidental" acabei por deparar com a publicação de uma parte da história da minha passagem entre 1972 e 1974 por terras da Guiné/Bissau, mais concretamente por Guileje, Cacine e Gadamael , no período que decorreu entre 1972 e 1973.
Embora o texto a que alude o link [abaixo], tenha já sido redigido há quase dois anos, a verdade é que nunca mais o revi nem sequer sabia que tinha sido publicado.

Há pelo menos uma imprecisão no referido texto que desejaria corrigir: no ponto "vi" onde está escrito "Quando chegámos a Gadamael," deveria ter sido escrito "Quando chegámos a Cacine".
Saudações cordiais.

Luís Paiva
Lamego
nop45376@sapo.pt


http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2008/01/guin-6374-p2483-estrias-de-guileje-3.html

2. Meu caro Luís:

Já está feita a correcção. Mas tu, continuas a não fazer parte da nossa Tabanca Grande. A tia história é uma daquelas que, talvez um dia, venha a ser publicada em livro de antolo0gia do nosso blogue. Preciso me mandes as duas fotos da praxe para eu te apresentar ao resto da malta (já somos quase um batalhão).

Vejo que vives em Lamego.Dá notícias. Obrigado pelo teu mail. Luís Graça