sábado, 10 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1581: O elogio dos pára-quedistas das CCP 121 e 122 (Nuno Mira Vaz / Vitor Junqueira)

Capa do livro de Nuno Mira Vaz Guiné, 1968 e 1973. Soldados uma vez, sempre soldados! Lisboa: Tribuna da História, 2003. 96 pp.

Foto: Livraria do Guarda-Mor (com a devida vénia...)


1. Mensagem de coronel paraquedista Nuno Vaz Mira, enviada em 6 de Março último ao Vitor Junqueira e reencaminhada para o editor do blogue:

Meu caro Vitor Junqueira:

Quem lhe escreve é o comandante da CCP 121 na altura em que estivémos juntos no COP 6. Eu estive com dois pelotões no Olossato e o Tenente Castro esteve com outros dois em Mansabá. Li hoje a sua crónica num blogue que acompanho com muito interesse e sentida emoção, e no qual só não colaboro por falta de vocação pessoal para me expor (1).

Quero agradecer-lhe do fundo do coração as suas palavras. Não só expressa uma admiração sincera pelas tropas pára-quedistas, como ainda por cima soube detectar algumas das virtudes não propriamente militares de que muito nos honramos. Bem haja.

Permita que o corrija: o Comandante do BCP 12 era na altura o Tenente-Coronel Horácio Oliveira e o Ricardo Durão nunca foi pára-quedista, mas sim o seu irmão Rafael, na altura coronel comandante do CAOP1 em Teixeira Pinto, e que era na verdade um militar de excepção.
Receba um abraço amigo do seu camarada de armas
Nuno Mira Vaz


2. Comentário do Vitor Junqueira:

Meu querido amigo,
Nuno Mira Vaz

Já passaram mais de três décadas sobre o tempo em que as nossas unidades se cruzavam nas matas da Guiné. Desse tempo, guardo na memória alguns dos momentos mais empolgantes da minha vida. Imagens e nomes que me foram familiares, perfilam-se com um estranho realismo no horizonte das minhas recordações. Entre esses nomes está o seu! De resto, nada do que eu possa dizer ou escrever, será suficiente para ilustrar todo o orgulho que a Nação portuguesa tem nos seus Páras, de ontem e de hoje. Para mim, é uma grande honra merecer da sua parte o tratamento de companheiro de armas. Muito obrigado.

Vou tomar a liberdade de reencaminhar o seu e-mail para o editor chefe, Luís Graça, para que proceda às imperativas correcções.

Aceite um abraço do
Vítor Junqueira
______________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 6 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1567: Operação Larga Agora, na região do Tancroal, com a CCAÇ 2753 (Vitor Junqueira)

(...) A respeito das tropas pára-quedistas, afigura-se-me da mais elementar justiça fazer o seguinte comentário:

"É minha convicção que na frente de combate, onde toda a vaidade se acaba, onde até o fraco faz força e mesmo o valente se caga, não há lugar para elitismos. Todos dão o seu melhor, quanto mais não seja para safar o próprio pêlo, o que é mais do que legítimo. Contudo, os pára-quedistas que conheci na Guiné, 121ª e 122ª Companhias, eram realmente diferentes entre iguais. Sei que eram duros com o Inimigo, bravos debaixo de fogo, eficientes na acção, por esta ou qualquer outra ordem! Os resultados obtidos, as condecorações justamente atribuídas, atestam-no.

"Mas aquilo que aos meus olhos os tornava a nossa melhor tropa de elite, sem desprimor para outros, eram a sua humildade, educação, respeito e cortesia para com os camaradas de outras forças. Chegava a ser embaraçoso quando, por ex., num alto para curto descanso no mato, à aproximação de um graduado (alferes) de outra força, todo um pelotão se punha de pé, incluindo o seu comandante! Pouco dados a fanfarronices, - nunca ouvi um pára gabar-se dos seus feitos individuais ou colectivos - , comandados por um militar de excepção, o coronel Rafael Durão, deixaram a todos nós o mais belo exemplo daquilo que deve ser o comportamento de tropas em campanha.

"Espero que os páras de hoje continuem a ser os dignos herdeiros dos feitos valorosos dos seus camaradas de há quarenta anos, e que em qualquer parte do mundo para onde os mandem, o nome e o prestígio de Portugal e das suas Forças Armadas estejam no centro das suas preocupações. Admiro-os a tal ponto que, na próxima encarnação, se ainda existir serviço militar, eu quero ser pára-quedista! " (...)

(2) Para saber mais sobre os nossos páras: vd. sítio não oficial sobre as tropas pára-quedistas portugueses: Boinas Verdes de Portugal, 1955-2006 >

Guiné 63/74 - P1580: Fanado ou Mutilação Genital Feminina: Mulher e direitos humanos: ontem e hoje (Luís Graça / Jorge Cabral)

Guiné > Raparigas fulas de Bissau > Postal ilustrado (pormenor) > Série de postais ilustrados do tempo da Guiné Portuguesa, s/d nem editor... Colecção do nosso amigo e camarada José Casimiro Carvalho (ex-fur mil op esp, CCAV 8350, Guileje e Gadamael, 1973/74). Calcula-se que, na Guiné-Bissau, quatro em cada cinco mulheres fulas e mandingas sejam excisadas (leia-se: vítimas da prática milenar da Mutilação Genital Feminina) (LG).


Foto: © José Casimiro Carvalho (2006). Direitos reservados.


Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > 1969 > A festa do fanado em Bambadinca. O Fanado, como rito de passagem, é comum aos diversos grupos étnico-linguísticos da Guiné-Bissau. No entanto, é sobretudo entre os islamizados que se pratica a MGF.

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.



Cartaz da Conferência sobre Mutilação Genital Feminina: Uma Abordagem Multidisciplinar. Lisboa, Centro de Formação do Hospital dos Capuchos, 17 de Maio de 2006.

Na mesa, os Dr Jorge Cabral, Alfredo Henriquez e Cristina Carvajal Isabel (assistente social colombiana, com vasta experiência em trabalho social na América Latina e Europa)


A apresentação de Mafalda Sofia Félix dos Santos (licenciada em Ciências da Comunicação pela Universidade Autónoma de Lisboa, com especiaidade em Jornalismo. Pós-graduação em Criminologia pela Universidade Lusófona. Especialista em Etnologia)

Dr Jorge Cabral, Dr Alfredo Henriquez e Prof Luís Graça (sociólogo da saúde e do trabalho, docente universitário, ex-combatente da guerra colonial na Guiné) que fez um comentário final sobre a Mutilação Genital Feminina e o relativismo cultural.


O Dr Jorge Cabral (docente da Universidade Lusófona, presidente do Instituto de Criminologia, especialista na área da Infância, direito penal, escritor, ex-combatente da guerra colonial na Guiné) e o Dr Alfredo Henriquez (presidente do Centro Português de Investigação em História e Trabalho Social), que presidiu à conferência.

Fotos: Fórum de Santo António dos Capuchos (2006) (com a devida vénia...) (2)


1. Comemorou-se, na passada 5ª feira, dia 8 de Março de 2007, mais um Dia Interncional da Mulher. Pensando num pequeno país como a Guiné-Bissau, nas suas crianças, adolescentes e mulheres, é de recear que este dia tivesse tido pouco ou nenhum impacto na melhoria da sua condição socioeconómica, e da sua emancipação. Por razões históricas, culturais, religiosas, sociais e económicas, a condição da mulher guineense - apesar da independência - está longe de ser aceitável.

Não é vocação nem propósito deste blogue reflectir, analisar e debater, por sistema, a actualidade sociopolítica da Guiné-Bissau. Há, no entanto, um problema que persiste, e que afecta uma parte significativa das guineenses: a Mutilação Genital Feminina, a nossa (mal) conhecida festa do fanado, uma prática que tem milhares de anos e que viola os direitos humanos das mulheres, adolescentes e crianças.

Não podemos ficar indiferentes ao Holocausto Silencioso das Mulheres a quem Continuam Extrair o Clitóris, (Sofia Branco, Público, 4/8/2002), na Guiné-Bissau ou noutros paíes de África e do Próximo Oriente. No nosso tempo, quando passámos por lá, convivemos superficialmente com este fenómeno. Por falta de sensibilidade cultural, de informação e de formação de nós, jovens tugas, e sobretudo por cinismo e hipocrisia das autoridades portuguesas, a MFG foi um problema que nos passou ao lado, até mesmo na cama (na tarimba que servia de cama para as nossas episódias conquistas...). Dificilmente falávamos sobre isto, com as bajudas e muito menos com as mulheres grandes, sobre as consequências do fanado para a saúde reprodutiva, sexual, psicólógica e mental da mulher guineense, em especial das que pertencia aos grupos islamizados (fulas, mandingas e outros).

Também não creio que o Amílcar Cabral e outros dirigentes do PAIGC alguma vez tenham tocado no problema. Calculo que fosse tabu durante a guerra de libertação. Hoje as coisas mudaram, felizmente. E há mulheres (homens, poucos) guineenses a lutarem pelos seus direitos... Sem defender o relativismo cultural, devo no entanto acrescentar que não podemos ver estes e outros complexos que têm ver com valores, de uma perspectiva etnocêntrica e eurocêntrica...

Segundo dados da OMS - Organização Mundial de Saúde, a taxa de prevalência da MGF na Guiné-Bissau seria da ordem dos 50%, atingindo maior percentagm entre as mulheres fulas e mandingas (70% a 80%). A modalidade MGF mais praticada é de tipo II - Excisão do clitóris com parcial ou total excisão dos lábios menores...


Há um ano atrás, dois membros da nossa tertúlia, Jorge Cabral e Luís Graça, participaram, comentadores, numa conferência sobre a MGF que se destinou sobretudo a apresentar e discutir a um trabvalho de invetsigação de Mafalda Sofia F. Santos e Paulo César L.B. Matos (Universidade Lusófona). A iniciativa foi do Fórum de Santo António dos Capuchos.Achei


Achei oportuno reproduzir aqui, hoje, como modesto contributo para a celebração do Dia Internacional da Mulher - 2007, a intervenção do nosso camarada Jorge Cabral em 17 de Maio de 2006.


2. Intervenção do Jorge Cabral:



O meu louvor aos Promotores desta iniciativa.

Que eu tenha conhecimento é a primeira vez que em Portugal de uma forma pública e organizada, se pode debater tão complexo quanto dramático problema.

Pedem-me um comentário, e duvido que o façam só tendo em conta a minha qualidade de jurista. Certamente sabem que estive na Guiné-Bissau, que sou curioso. Que procurei conhecer e aprender, porque também eu adoptei o lema Humani nihil alienum, isto é, nada do que é humano me pode ser estranho.

Estamos em 2006, e só desde 2002 o assunto mereceu entre nós alguma atenção, mercê dos notáveis artigos de Sofia Branco. E no entanto, como tão bem acentuou na altura o Prof. Luís Graça, durante décadas e décadas os Portugueses conviveram com essa realidade. Médicos, Professores, Padres, Agentes da chamada Acção Psico-Social, artífices da Política Spinolista da Guiné Melhor, conheceram a prática da Mutilação Genital Feminina. Uma Guiné Melhor na qual metade das meninas era e continuou a ser violentamente mutilada, com a complacência de todos os representantes do Poder Colonial.

Claro que na Guiné-Colónia vigorava o Código Penal Português, o qual sempre puniu as ofensas corporais, designadamente as que ocasionassem “cortamento, privação, aleijão ou inabilitação de algum membro ou órgão do corpo”, cominando uma pena de prisão de 2 a 8 anos. Obviamente que nunca ninguém foi julgado pela prática da excisão.

Respeito pela cultura, tradições ou costumes do Povo? Ou desprezo? A realidade colonial dividia-nos entre nós e eles, e o fanado era festa deles, que não nos incomodava enquanto ocupantes. Paradoxalmente porém, aplicávamos com rigor o Código Civil quanto ao registo das crianças, todas filhas ilegítimas, dado pai e mãe não serem casados segundo a Lei Portuguesa. Ia-se até mais longe obrigando as crianças fulas a possuírem um nome português, em geral o do Chefe do Posto, facto que eu descobri ao deparar numa aldeia com 32 Augustos (Augusto Idrissa Embaló, Augusto Demba Djaló, Augusto Mamadú Baldé… etc).

A Mutilação Genital Feminina praticava-se no meu tempo e pratica-se hoje na Guiné-Bissau e também, embora em reduzido número, em Portugal. Podemos, como a Mafalda fez, elencar as crenças ou razões que lhe são subjacentes, as quais servirão tão somente para mascarar o seu objectivo fundamental – o controlo da sexualidade feminina – um cinto de castidade sem chave e vitalício.

O problema deve pois ser enquadrado nos direitos da Mulher, direito ao Corpo, direito à Sexualidade, direito à Liberdade, direito à Dignidade. Porque o que está verdadeiramente em causa é o estatuto da Mulher. A mulher coisa, a mulher propriedade, a mulher comprada, a mulher serva.

Na guerra e na Guiné estive há muitos anos. Do que lá se passa hoje sobre Mutilação Genital Feminina, só disponho de algumas informações – as tentativas de criar um Fanado alternativo, que cumpra os ritos de iniciação sem mutilar, parece não ter dado o resultado esperado. Quanto às fanatecas, as mulheres que fazem profissão da excisão, bastantes entregaram as facas, acreditando que lhes seria atribuída uma pensão para sobreviverem, o que parece não ter acontecido.

Segundo creio a operação está a ocorrer em crianças cada vez mais novas, quase bebés, porque talvez a facilite, ou em virtude de as novas excisadoras não terem a perícia das de antigamente. Não creio que exista uma vontade política determinada em erradicar a Mutilação Genital Feminina, num país em que o equilíbrio étnico é garante de uma sempre difícil estabilidade. Decretar pura e simplesmente a proibição iria sem duvida desagradar aos Islamizados, que constituem o grupo religioso maioritário na Guiné.

Acredito que, quando muito, as preocupações sejam de saúde pública, como se pode depreender do Código Penal da Guiné-Bissau, cujo art. 117º, que tem como epígrafe “Ofensas Privilegiadas”, diz o seguinte: “Quem habilitado para o efeito e devidamente autorizado, efectuar a circuncisão ou excisão sem proceder com cuidados adequados para evitar que se produzam os efeitos previstos no nº 1 do art.115º ou a morte da vitima, e estas sobrevierem, é punido com pena de prisão até 3 anos e de 1 a 5 anos”.

A leitura do preceito é elucidativa – o que se pune é a negligência na operação e não a própria mutilação genital feminina. Estamos no domínio da Medicalização, de que a Mafalda falou. Atenuam-se os riscos. A complexa cerimónia de iniciação transforma-se numa intervenção cirúrgica sem outro objectivo ou razão, senão cumprir o costume.

Aliás, e como sabem, durante o séc. XIX e até aos anos 30 do séc. XX, tanto nos EUA como na Europa, a ablação do clítoris constituiu tratamento da histeria, da ninfomania e do lesbianismo. Terapêutica para bem delas, está bem de se ver…

Há mais de 20 anos, que nas minhas aulas falo da Mutilação Genital Feminina e sempre a propósito da falta de consciência da ilicitude. A punição de alguém por um acto cometido implica a interiorização do ilícito da conduta praticada, que a pessoa sinta que o que fez está errado. A não ser assim, a aplicação da norma penal torna-se absurda e ineficaz. Por isso todo o esforço para banir ou erradicar determinado comportamento deve ser efectuado prioritariamente através de outros meios, de uma Política Social, de educação, de saúde, de integração. O Direito Penal, não o esqueçamos, deve constituir uma ultima ratio.

Enraízada como crença, mito ou costume, será a Mutilação Genital Feminina um valor cultural a ser preservado? O respeito pela identidade cultural deve tolher-nos na luta, contra práticas desumanas, atentatória da vida e da liberdade das pessoas?

Cada cultura encerra em si valores e desvalores. Não devemos deixar morrer os valores, mas devemos procurar extinguir os desvalores. De outra forma toleraríamos que as viúvas na Índia fossem enterradas vivas com os falecidos maridos, ou que os pais violassem as filhas obedecendo a um velho costume.

Creio que o impacto dos artigos da Sofia Branco, publicados no Jornal Público em 2002, se deve principalmente à informação de que a Mutilação Genital Feminina ocorreria em Portugal. Também pela Europa as preocupações aumentaram com a possibilidade da prática ser cá efectuada, dada a corrente migratória. Julgo, porém, que toda a Mutilação Genital Feminina é igualmente grave, devendo ser denunciada e combatida, independentemente do lugar onde seja efectuada. A universalidade dos Direitos Humanos impõe-nos que sintamos toda a sua violação, como violação dos nossos direitos. A mutilação de uma menina no Sudão constitui uma ofensa à minha condição de homem livre, até porque a minha liberdade só pode ser assumida em plenitude, num Mundo de Homens e Mulheres Livres.

Em todos os nossos Códigos Penais, o de 1852, o de 1886, o de 1982 e o de 1995, a mutilação genital constitui o crime de ofensas à integridade física grave previsto e punível no actual art. 144º. No projecto em discussão, propõe-se ao artigo um acrescento, na alínea b). Assim onde agora se lê – “Tirar-lhe ou afectar-lhe, de maneira grave, a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais ou de procriação, ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem”, passará a surgir “de procriação ou de fruição sexual”.

A proposta suscita-me algumas dúvidas. A mutilação já estava incluída quer na alínea a) “privá-lo de um importante órgão ou membro” e até na própria b) “afectar-lhe a possibilidade de utilizar o corpo”. A questão é porém outra. Deve a mutilação feminina, ser incriminada autonomamente, tipificando a conduta?

Se a resposta for positiva então terá de ser enquadrado o novo tipo, nos crimes contra a Liberdade Sexual, definindo com rigor o comportamento. Para tanto, tornar-se-á necessário que os nossos legisladores conheçam o problema. Infelizmente, a nossa política criminal parece ditada pelos media. Se amanhã os jornais relatarem um caso de canibalismo, logo surgirá uma proposta de criminalização, como aconteceu com a venda de bebés, que evidentemente já estava integrada no crime de escravidão.

Desculpem toda esta desalinhada exposição. Penso que indiciei o que penso sobre a temática em debate: Atentado contra as crianças, coisificação da mulher, abominável violação da dignidade, deve ser encarado na óptica dos Direitos Humanos.

Estudado multidisciplinarmente, urge o seu combate no terreno, pelos diversos técnicos que conheçam e lidem com a situação. Técnicos de saúde, interventores sociais e todos os que trabalham com a Imigração, terão um papel fundamental pela persuasão, educação e aconselhamento.

A repressão só por si nada resolverá! Antes pelo contrário, aumentará o secretismo ou determinará as famílias a levarem as crianças à Guiné para sofrerem a Mutilação. Por outro lado, ao actuarmos aqui em Portugal, chamando a atenção para o criminoso da conduta, estaremos a colaborar na luta também lá, pois os imigrantes transmitirão a mensagem. Vai sendo tempo de terminar. Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar, como diz o Poema.

É legítima a nossa indignação. Não chega porem indignar-nos. Habitamos o mesmo mundo e pertencemos à mesma raça – a Raça Humana. Não somos nós e os outros, somos todos Nós!

Lutar contra esta prática, constitui dever de cada um de nós, porque é nossa obrigação contribuir para um Futuro mais livre, fraterno e solidário.

Muito Obrigado.
Jorge Cabral

______________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts sobre o fanado que, no caso das raparigas, implica a prática da Mutilação Genital Feminina:


4 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XII: O silêncio dos tugas face à MGF (Mutilação Genital Feminina)(Luís Graça)

14 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLVII: A festa do fanado ou a cruel Mutilação Genital Feminina (Jorge Cabral)

14 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLVI: Conferência sobre a Mutilação Genital Feminina (Luís Graça)

(2) O Fórum de Santo António dos Capuchos é uma iniciativa de profissionais de Serviço Social organizada pelo Centro Português de Investigação em História e Trabalho Social (CPIHTS), pelo Serviço Social dos Hospitais dos Capuchos, Desterro, Miguel Bombarda, Liga dos Amigos e Utentes do Hospital dos Capuchos (LAU) e do Instituto de Criminologia da Universidade Lusófona.

Guiné 63/74 - P1579: Buba: Graves incidentes entre camaradas, comandos e fuzileiros, em 19 de Abril de 1969 (Zé Teixeira)

Guiné > Região de Quínara > Buba > 1969 > O Zé Teixeira, em Buba, com um grupo de barbudos camaradas...


Foto: © José Teixeira (2006). Direitos reservados.

Mensagem do José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70):


Caríssimos:

Infelizmente não foi cena única naquela triste guerra (1). No meu diário escrevi (2):


Buba, 19 de Abril de 1969:


Pela primeira vez, num ano de guerra com diversos casos graves e mortais, vi camaradas meus serem varados por balas de armas manejadas por companheiros só porque já não se houve a voz da razão.

Um pequeno incidente de palavras entre um soldado da minha Companhia e um Comando Africano, quando tomavam banho originou uma luta entre Fuzileiros e Comandos com consequências graves. Parece está tudo louco.

Um Comando branco defendeu o Africano e alguns Fuzas intrometeram-se. A coisa azedou e surgiu uma cena de pancadaria de que resultaram algumas cabeças partidas e olhos negros. Aparece uma G3 a vomitar uma rajada e quatro meros espectadores ficam gravemente feridos. Uma perna desfeita, um braço cortado e o mais grave veio a falecer com uma bala na cabeça. Foi este o resultado de uma simples discussão.

Eu estava de saída para o mato e mal vi os feridos. Pela primeira vez na minha vida de guerra, chorei. Lágrimas de raiva ... e de sangue.

O que aconteceu na realidade: A minha companhia estava encarregue dos trabalhos de protecção na construção da estrada de Buba para Aldeia Formosa (Quebo). Os Comandos tinham chegado de um Patrulhamento. Os Fuzas também estavam a chegar de uma saída. Na altura Buba era um centro operacional em movimento constante. Toda a gente foi refrescar-se com um agradável duche fresquinho, pois água era coisa que não faltava. Água, minas e encontros desagradáveis com o IN era coisa que não faltava. Comida essa foi durante muito tempo feijão com chispe (amostras) ao almoço e arroz com chispe ao jantar.

Mesmo assim fazia-se fila para o duche, dada a quantidade de candidatos a colocarem a cabeça debaixo de água. No meu baptismo de fogo, nesta mesma terra, um ano antes, estavam cerca de três Companhias a tomar banho, no regresso de uma coluna, quando o IN atacou em pleno dia. Resultou que saltamos todos para a Vala, uns nus, outros ensaboados e outros molhados, tudo à molhada. Que espectáculo ! Coubemos todos e não houve feridos, pois o IN não acertou sequer com uma dentro do quartel, apesar de terem atacado de duas frentes distintas e ao mesmo tempo.

Voltando ao triste relato dos acontecimentos. Um camarada da minha Companhia estava no duche a cantarolar. Alguém do lado mandou-o cantarolar para a Puta que o pariu . Era um comando africano integrado na Companhia de comandos, com quem convíviamos há vários meses e a nossa relação era estupenda. Palavra puxa palavra e ao fim de algum tempo começa uma cena de batatada, pois há um fuza que se põe do lado do meu colega, que entretanto se afasta, bem como o outro contendor.

A luta centra-se entre Comandos e Fuzas. Não sei quem estava a ganhar, primeiro porque não gostava deste tipo de cenas, segundo porque estava a preparar-me para sair a fazer patrulhamento nocturo. De repente ouço uma rajada de G3. Naturalmente que após alguns segundos de expectativa, fui ver o que se passava, temendo o pior, e o pior tinha acontecido. Não me recordo quem foi, mas alguém, talvez cansado de levar tareia, afastou-se da contenda, foi à caserna e pegou na G3. A tragédia aconteceu.

Após a cura emotiva, resultante do tempo que já passou, penso hoje que cenas destas só eram possíveis devido ao estado de pressão emotiva que todos vivíamos. Não culpo ninguém, mas ainda sofro ao reviver esta e outras cenas entre camaradas e amigos, brancos e africanos, que de repente se exaltavam e passavam a vias de facto, tal era o estado de espírito em que nos encontrávamos. Abraços para todos e façam o favor de procurar ser felizes.

Zé Teixeira
Esquilo Sorridente

_________

Notas da L.G.:


(1) Vd. posts de:

10 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1512: Estórias de Bissau (11): Paras, Fuzos e...Parafuzos (Tino Neves)

11 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1515: Antologia (58): A batalha de Bissau em Janeiro de 1968: boinas verdes contra boinas negras... Saldo: 2 mortos (Carmo Vicente)


(2) Vd. post de 30 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXXVI: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (10): Abril/Maio de 1969, 'Senhora, nem Tu me salvaste!'

Guiné 63/74 - P1578: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (37): O horror do Hospital Militar 241 e o grande incêndio de Missirá

Guiné > Bissau > 1972 > O edifício do Hospital Militar, o HM 241... Os horrores da guerra (os mutilados, os politraumatizados, os feridos graves...) eram ali despejados todos os dias, de helicóptero... O 1º Cabo Radiologista Cardoso mandou-nos documentos fotográficos, inéditos, do fim da linha: restos (macabros) de corpos humanos, restos de camaradas nossos a quem foram amputados braços ou pernas...


O Carlos Américo Rosa Cardoso pertenceu aos Serviços de Saúde Militar, com o posto de 1º Cabo Radiologista (1)... Vive em Lisboa. Trabalhou em artes gráficas. Hoje está reformado. Estou à espera que ele ponha as competentes legendas nas fotos que me mandou (algumas impublicáveis, porque susceptiveis de ferir a sensibilidade de muitos de nós), sobre esse inferno de Bissau, que era o Hospital Militar 241, e que o nosso camarada Beja Santos aqui evoca e descreve, com profundo conhecimento de causa.



Guiné > Bissau > HM 241 > 1972 > O tristemente famoso heliporto...



Guiné > Bissau > HM 241 > 1972 > Impressionante foto do estado de um ferido grave, evacuado do mato (uma evacuação Ypsilon, os 20 minutos de heli mais dramáticos do mundo) (2)...

Fotos: © Carlos Américo Rosa Cardoso (2007). Direitos reservados

Continuação das memórias do Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (3). Texto enviado em 21 de Fevereiro de 2007.


Caro Luís, aqui vai mais um episódio. Quanto a ilustrações, renovo o meu pedido de te socorreres da fotografia do HM 241 e dos postais que a seu tempo te mandei sobre Bissau. Espero na sexta feira enviar-te novo episódio.


Um hospital militar na carpintaria da guerra

por Beja Santos


Comecei a fazer as análises e recebi ordem para em apresentar no Quartel de Adidos, onde em breve devo prestar serviço. Antes de mudar a trouxa que me acompanha, escrevo ao Casanova insistindo no plano das desmatações, sobretudo junto das portas que ligam Missirá a Cancumba e a Sansão. Tive a preocupação de previamente falar com o régulo Malã sabendo que os seus cajueiros, se bem que fossem uma boa fonte para os seus rendimentos, eram verdadeira dinamite para a segurança de Missirá. Ele ouviu-me com atenção e anuiu na desmatação sem contemplações dos seus cajueiros.


A sina do preto


Quem me puniu, desconhece que não dispomos de dinheiro, ao contrário das companhias aquarteladas, para pagar a assalariados para tais desmatações. Os soldados nativos e os milícias, é entendimento das CCS, não têm direito a um fundo de 12 mil escudos mensais para fazer este trabalho. É esta a sina do preto. Os militares vão a Mato de Cão, patrulham, emboscam à noite e de dia, reparam o aquartelamento, arrastam bidões de água desde da fonte, fazem reforço e desmatam. São militares e bandeirantes...

Pedi igualmente ao Reis, por aerograma, que deixasse os desenhos dos novos armadilhamentos que se propõe fazer e que me dão permanentemente calafrios. E depois de escrever cartas para Lisboa sigo para o centro de Bissau.


Reencontro de amigos


Os encontros dentro do grande teatro do mundo sucedem-se, inusitados e algumas vezes muito agradáveis. Vejo Braima Mané, aquele amigo de Finete que ficara estropiado e de braço paralisado quando se precipitou para a cubata em chamas numa tentativa inglória de salvar a sua família. Continua em tratamento e anuncia-me que vai casar.

Ele grita para o outro lado da estrada e aparece Cibo Indjai, a sua mulher Cumba e a filha Mariama. Cibo está de férias, vieram agora do hospital civil onde a mãe de Cumba teve gémeos mortos. É através de Cibo que sou informado que está a ocorrer uma operação no Corubal, com milhares de homens, a Lança Afiada (4).

Encontro, conforme combinado, o Cherno a quem anuncio que dentro de dois dias vou ser hospitalizado. Estamos junto do mercado de Bandim, um altifalante berra a canção I'll be there, dos Four Tops. Peço ao Cherno que não se esqueça que Missirá está muito desfalcada e que ele é um apontador de morteiro indispensável.

Almoço com a Maria Luísa e o Pedro Abranches e depois sigo para o Hospital Militar onde visito o Fodé. À saída um novo encontro, desta vez com o Cabo Raposo, que veio pôr placas dentárias, é um bem disposto contrabandista do Marvão que está de férias e me refere que corre o risco de sair de Missirá depois dos cinco dias de prisão que apliquei por ter adormecido no posto de vigilância (já antes apanhara-o a aliciar Serifo Candé com 20 escudos para lhe fazer o reforço). Acompanho-o aos serviços de pessoal e a situação fica regularizada: o Raposo não será afastado de Missirá.


Uma namorada em lágrimas, do outro lado do mundo, e um soldado agrilhoado em Bissau


Depois vou aos correios e encho-me de coragem e comunico à Cristina que os meus dois dias de prisão simples comprometeram as minhas férias em Lisboa, havendo que restabelecer novos planos, novos cenários para o nosso reencontro. A Cristina chora convulsivamente do outro lado do mar.

À saída, deslumbrado pelo sol quentíssimo, vou procurar serenar de novo no meu local preferido, o porto de Bissau, olhando o movimento dos pescadores e o carregamento dos batelões que seguem para o Geba, para o rio grande de Buba, para os Bijagós. Depois sento-me numa esplanada e mais tarde sigo para a Catedral de Bissau onde o coro dos meninos da missão me levantam ânimo nesta missa que me recorda a Missa Luba, cantada pelos trovadores do rei Balduíno, no antigo Congo Belga.

No dia seguinte apresento-me nos Adidos e vai seguir-se um dia infernal com os desacatos de um soldado, conhecido por Escola, que em Pirada disparara três tiros mortais num sargento e aproveitou o meu dia de serviço para agredir outros presos e desfazer a mobília. Tudo começara quando fora ao chuveiro, deu-lhe uma repentina, desmantelou portas, escavacou lavatórios e feriu-se com uma navalha. Vendia jornais ao pé do Cinema Condes, desconhecia quem eram os pais nunca percebeu para que foi mobilizado, nunca aceitou a disciplina e agora grita e chora -Tenho a vida toda fodida, não me interessa voltar para sair da guerra para a prisão.

Este dia nos Adidos lançou-me um olhar sobre uma outra dimensão das incompreensões para que nos arrastam estes teatros de guerra. Deram-lhe uma injecção e antes de adormecer disse-me:
-Ó meu alferes, não há maior desgraça do que a do Escola!.


Eu e o Cherno no HM 241

Pronto, hoje de manhã eu e o Cherno entramos no HM 241, todas as análises são feitas, espero calmamente que me chamem numa recepção que tem uma ampla vidraça de onde se avista o heliporto continuamente em movimento, abre-se a porta e saem feridos cambaleantes ou em macas, é um rodopio sem parança.

Nisto, uma trovoada de rotores anunciam uma série de chegadas aflitivas: o helicóptero desce, saem homens que gritam, que imprecam, que estendem os braços a pedir auxílio; o helicóptero parte e logo aterra outro, o espectáculo repete-se, e mais outro e mais outro. O serviço de atendimento enche-se de pessoal de saúde e é fácil ver o que aconteceu: uma companhia de fuzileiros foi atacada pelas abelhas, aqueles homens vêm inchados, deformados, deliram, choram convulsivamente.

Eu procuro explicar ao Cherno o que é um choque anafiláctico e até as suas consequências letais. Vejo pela frente um tenente médico de cabeça perdida que me grita de sopetão:
-Minha besta, aí sentado e a fazer comentários indiferente a toda esta tragédia, que falta de coração!.

O Cherno não percebia a censura do médico que se insurgia enquanto nós conversávamos, abria os olhos para o médico e perguntava-me:
-Alfero, o que é que ele quer, ele precisa de ajuda?.

Procurei acalmá-lo dizendo ao médico:
-Pensei que o senhor estivesse preparado para ver a dor e não perdesse a cabeça ofendendo quem nada pode fazer a não ser olhar o sofrimento dos outros.

A cena acabou, fui chamado, levado para um quarto e daí metido para uma maca que seguiu para o bloco operatório.


As visitas e a alta


Quando acordei, tinha o olhar vigilante do Fodé sobre mim e exclamou:
-Oh, acordaste, tens dores?.

E com este cuidado fraterno começou a minha convalescença. Uma enfermaria presta-se a visitas, beneficiei da vinda dos familiares do Fodé, tive que dissuadir o Cherno a não pedir para ficar na enfermaria de noite, até o brigadeiro Spínola se debruçou sobre a minha cama, partindo rapidamente quando foi informado pelo médico que era uma operação que não deixaria marcas. Mas uma enfermaria tem mutilados, é gente a viver em grande tormento. O jovem Manuel, por exemplo. Padeiro em Rio Maior, uma filhinha de 6 meses, uma mina posta poucas horas antes na carreira de tiro de Tite e perdeu a perna esquerda. Tinha chegado quatro dias antes à Guiné. Sofre em desassossego, não aceita o irremediável, comove-se, grita alto, pede ajudas impossíveis.

Dão-me alta, coxeio ligeiramente, tenho uma boa parte da perna entrapada. O Rui Gamito veio-me buscar, leva-me até Brá e àquele cenário de casarões em cimento, eu aliás só sonho com aquele cimento que pode alterar as nossas condições de vida [, em Missirá]..

Regresso ao QG para a convalescença. Compro livros de André Malraux e Claude Roy. Todos os dias procuro saber quando terei avião para Bafatá. Hoje, 20 de Março, cheio de promessas de que muito material de engenharia vai beneficiar Missirá e Finete, informado que os pontos podem vir a ser tirados em Bambadinca dentro de 5 dias, pelas seis da tarde, estou junto de um guichê onde vou receber um guia de marcha. Informam que o voo está cancelado que só posso seguir dentro de dois dias. Quando vou regressar ao jipe há um sargento que me chama com o rosto incendiado:
-É o alferes de Missirá? Leia esta mensagem.



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Cuor > Missirá > 1969 > A morança do comandante do Pel Caç Nat 52 , destruída por uma granada incendiária, por ocasião do grande ataque ao destacamento em 19 Março de 1969. O Beja Santos perdeu tudo o que tinha, incluindo os seus haveres mais preciosos: os livros, os discos, os escritos, as cartas... Valeu-lhe a solidariedade do pessoal do BCAÇ 2852.
Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.


Missirá em cinzas, no ataque de ontem

O que estou a ler queima-me os olhos, explode-me o crânio: Missirá fora ontem, [19 de Março de 1969,] atacada pelas 9 da noite e desaparecera praticamente num incêndio. Com o coração apertado, dirijo-me ao serviço de operações e peço mais dados pormenorizados. As informações que me disponibilizam é de que houve um ataque que durou mais de duas horas, há dois mortos, dois soldados feridos e seis civis também hospitalizados. A maior parte do quartel desapareceu no incêndio, de madrugada teve de se fazer um reabastecimento de urgência, as munições estavam praticamente esgotadas.

Enterrar os mortos e cuidar dos feridos


Não preciso ouvir mais, peço ao condutor que me leve de novo ao Hospital Militar. De novo numa enfermaria, oiço os relatos do régulo Malã, do bazuqueiro Adulai Djaló e do soldado Bacari Djassi. Malã insiste que todos os meus bens desapareceram, só ficaram os ferros da cama. Os rebeldes vieram com vários canhões sem recuo, aproveitaram uma noite quente, foram bem sucedidos com as balas incendiárias que devoraram os colmos das moranças e um vento assassino chegou subitamente para fazer o resto.

Pergunto quem morreu. Morreram Sadjo Baldé, pulverizado por uma granada de morteiro, à entrada do abrigo e Djau Seidi, um soldado milícia que procurava ajudar o municiamento do morteiro 81. Feridos, estão ali todos e são sete. O régulo insiste:
-Respondemos bem ao fogo, mas não temos canhões. E quando chegou o incêndio até podia ter acontecido pior pois eles podiam ver tudo o que fazíamos.

Abraço os meus amigos e vou de novo ao Quartel General, onde consigo ser recebido pelo ajudante de campo do Comandante Militar. Ele ouve as minhas súplicas e manda-me apresentar em Bissalanca pelas 7h da manhã:
- Ou um helicóptero o deixa em Missirá ou vai de DO ou de Dakota até Bafatá, qualquer solução será encontrada. Leva esta carta e apresente-a amanhã no aeroporto.

E, de facto, na manhã seguinte segui até Bafatá , daqui para Bambadinca e gente amiga da CCS trouxe-me ao princípio da tarde até junto das cinzas de Missirá. Sei perfeitamente que o peso das minhas memórias é muito superior ao que desapareceu dentro da minha cubata. Nessa noite, escrevo à Cristina:

"Já comecei os planos para a nova Missirá. O colmo tem que desaparecer e dar lugar a cimento e a chapa. Estou cheio de sonhos no meio deste dilúvio, e foi providencial o encontro com o Rui Gamito. Estou determinado a tirar Missirá dos escombros. Não há punição injusta que me abata”.

Reconstruir Missirá, com a Música ao longe, do Erico Veríssimo

Descobri uma nova faceta nesta tarefa que se avizinha, que é a de reconstruir um povoado, proteger a sua população, continuando a combater e a perseguir a gente de Madina. Os meses de Abril e Maio serão duríssimos, e vou mesmo abalar a minha saúde até à prostração e debilitação física. Em Abril, aparecerão tijolos de adobe e vão chegar materiais do Batalhão de Engenharia. Combateremos e reconstruiremos. Haverá promessas que nunca serão cumpridas.

Receberei imenso apoio do BCAÇ 2852. Quando chegarmos sem uniforme a Bambadinca, dentro de dias, tudo quanto é possível nos será oferecido, inclusive receberemos comovidos todos os fardamentos dos 17 militares falecidos da Companhia de Galomaro, vitimados pelo sinistro da jangada que se virou no rio Corubal. A solidariedade vai funcionar.

Em Bissau, como disse, comprei livros, li alguns que foram poupados às chamas. Desambientado, vivendo com mais 12 ou 15 em camarata, refugiei-me numa boa literatura mas sem grandes exigências. Comecei por Música ao longe, do Erico Veríssimo, um grande prosador brasileiro de que nunca entendi o silêncio que paira sobre o seu nome. Em adolescente, a minha Mãe oferecera-me Clarissa, uma obra posterior a esta que agora devoro e me empolga. Neste livro que leio em Bissau Clarissa é professora de crianças em Jacarecanga, terra de gaúchos onde os Albuquerques são nome da família mítica da região. É tudo prosa simples, elegante, cromático. Logo no início, pode ler-se:

“Clarissa risca com giz no quadro negro a paisagem que os alunos devem copiar. Uma casinha de porta e janela, em cima duma coxilha. Um coqueiro do lado (onde o nosso amor nasceu- pensa ela no momento em que risca o tronco longo e fino). Depois, uma estradinha recorre, ondulando como uma cobra e se perde longe no horizonte. Nuvens de giz do céu preto, um solo redondo e gordo, chispando raios, árvores, uma lagoa com marrecos nadando...

"Clarissa recua um pouco para olhar. Um zunzum das conversas abafadas aumenta e diminui, como a música de um órgão. Estrala um banco. Explode uma risadinha”.

Clarissa vive com a família de várias gerações de Albuquerques que caminham para a ruína económica. Os personagens são recortados com realismo e doçura, desde D. Zézé, sempre estável mas que já vive fora desta mundo, passando por Cleonice e Pio, noivos há doze anos, ele não quer dar o nó sem que chegue uma promoção.

Como diria Erico Veríssimo, neste romance germinam outros, haverá figuras que irão reaparecer em comovente literatura. O recurso em que assenta a estrutura deste romance é o diário de Clarissa: “A gente nunca escreve tudo o que pensa, tudo o que sente. Porque será que só somos sinceros pensando?”. Clarissa vai-se afeiçoando pelo seu primo Vasco, rapaz de aspecto selvagem e vincada personalidade. Através do diário temos as recordações da infância de Clarissa até ao seu afecto por vezes contraditório por Vasco.

Leio e releio sofregamente Música ao longe que me atrai pela sua simplicidade, pelos enredos plausíveis, pelo exótico de um mundo rural que eu desconheço. Abençoado o bem que Erico Veríssimo me faz. E daqui passo para O mistério do Bellona Club por Dorothy L. Sayers. Esta escritora britânica criou o detective Lord Peter Wimsey, um sofisticado que lê manuscritos de Justiniano, é requintado gastrófilo e tem um criado que é um verdadeiro pesquisador e angariador de informações.

Entre as duas guerras, o Bellona Club, ali para os lados de Picadilly, é uma instituição que será seriamente abalada pela morte, aparentemente natural, do sócio general Fentiman, um nonagenário herói da guerra da Crimeia. Lord Peter vai descobrir que houve crime e levará o criminoso ao desfecho honroso de se suicidar em pleno Bellona Club. Dorothy Sayers oferece-nos um vigoroso retrato do império britânico enfraquecido depois da 1º Guerra Mundial, com a sua aristocracia traumatizada, desvela a emancipação feminina e muita hipocrisia de costumes.

Eu trazia este livro da Dorothy Sayers comprado num alfarrabista na feira de S. Pedro de Sintra, teria aí os meus 18 anos. Aquela prodigiosa capa do Cândido da Costa Pinto sempre me intrigara, tinha chegado o momento de satisfazer a curiosidade com a trama da intriga policial.

Amanhã a minha vida vai mudar. Ainda com 23 anos, eu interrogo-me o que é que é possível ainda acontecer-me mais. Inocente e ingénuo, não sou capaz de desvendar esta corrida precipitada da qual já não sei sair. Por ora, sei que vou reconstruir um quartel numa atmosfera cheia de adversidades. Mas quantas adversidades não houve e não foram vencidas desde que aqui cheguei?

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 1 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1481: Hospital Militar de Bissau (1): Apresenta-se o ex-1º Cabo Radiologista Cardoso

(2) Na Guiné, as evacuações ditas Ypsilon (feridos muito graves) eram feitas de helicóptero, para o Hospital Militar de Bissau. As distâncias eram curtas, a Guiné é do tamanho do Alentejo. Os nossos helicópteros não estavam, no entanto, preparados para andar ao fim da tarde e, muito menos, à noite... No meu tempo (1969/71), e na zona leste, os helicópteros poisavam directamente numa clareira da mata, quando andávamos em operações; ou então a partir do heliporto do aquartelamento mais próximo, se o ferido não morresse até lá... No meu tempo, havia uma enfermeira-parquedista a bordo...Os nossos mortos nunca eram helitransportados, mas sim levados, penosamente, em macas improvisadas... O argumento (de peso) era que: (i) o helicóptero custava 15 contos à hora (o ordenado mensal de dois alferes, na altura, ou seja, em 1969...); (ii) o serviço de saúde só cuidava dos vivos, não dos mortos.

Como se sabe, na Guiné a nossa superioridade aérea acabou no dia em que foi utilizado, pelo PAIGC, o primeiro míssil terra-ar, no inícío do 2º trimestre de 1973... Aí acabou também a guerra da Guiné: o aquartelamento de Guileje é abandonada, em pânico, em Maio de 1973... Em Guidaje somos massacrados... O moral das NT tocou o fundo da bolanha... Os oficiais do quadro conspiram... A nova Repúblivca da Guiné-Bissau, proclamada em Madina do Boé, em Setembro de 1973, é reconhecida por dezenas de Estados independentes... Portugal está cada vez só, e cada vez com menos motivos de orgulho...


(3) Vd. último post desta série Operação Macaréu à Vista:

10 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1577: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (36): Bissau, um grande teatro de luz e sombras

(4) Sobre a Operação Lança Afiada (que mobilizou cerca de 1100 homens, entre combatentes e carregadores), vd. posts:

31 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)

15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli

14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal

Guiné 63/74 - P1577: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (36): Bissau, um grande teatro de luz e sombras


Guiné > Bissau > Vista aérea da capital da província > 1966 > Postal ilustrado da época. Ao centro, a Praça do Império e o Palácio do Governador. Ao fundo, o Ilhéu do Rei.

Fotografia do álbum do ex-furriel miliciano Mecânico Auto Adrião Mateus, pertencente à CART 1525 (Bissorã, 1966/67). Reproduzido com a devida vénia.

Fonte: © Companhia de Artilharia 1525 - Os Falcões (Bissorã, 1966/67). (1)





Guiné Portuguesa > Postal Ilustrado > Legenda > 14. Mercado da Guiné. Impresso em Portugal. Lisboa. Edição Foto Iris. Bissau. Postal ilustrado enviado, por avião, pelo Alf Mário Beja Santos a uma pessoa amiga... Data e local: Missirá, 12 de Julho [de 1969] (2).




36ª parte das memórias do Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (3). Texto enviado a 12 de Fevereiro de 2007.


Caro Luís, muita saúde para ti. Pela primeira vez na vida, fiz uma semana de férias em Paris, sem nenhuma ligação a obrigações profissionais. Fiz tudo o que é possível fazer em Paris com um céu de chumbo, alguma chuva e muito frio: fui ao teatro, ao bailado e à ópera; remexi em livros à volta dos cais do Sena; prestei homenagem ao Tintim no Centro George Pompidou e vi outras exposições inesquecíveis... e um pouco lembrado de Mato de Cão fiz dezenas de quilómetros a pé, entre o Ódeon e as Tulherias e a Estrela, entre o Bairro Latino, o Jardim do Luxemburgo e o Hotel de Ville.

Hoje volto ao trabalho, dando primazia às obrigações do blogue. Remexendo no correio enviado à Cristina, encontrei uma carta que o Bacari Soncó, o actual régulo do Cuor, me enviou no período em que o desgaste das obras de Missirá me levou a pedir uma colaboração mais intensa a Finete. Ele escreve:

Meu estimado irmão, muito contente fiquei com tão grande confiança que tens para comigo. Hoje fui a Missirá de lá recebi ordens para fazer patrulhas, de Finete a Malandim, Gambaná e Chicri, montar emboscadas junto a Mero até às duas da manhã. No entanto vou mandar para ti e em teu auxílio um dos meus sargentos com cinco ou seis homens, nao tenho mais. Muitos cumprimentos do Bacari.

Em podendo, colocarás esta carta junto do episódio em que falo do amor fraternal por Bacari e Fodé Dahaba. Trabalhei hoje de manhã com o Queta que me deu a notícia do falecimento do Basilo Soncó, o irmão do Malã que era ao tempo o Comandante da Milícia de Finete e que empurrou um seu irmão de nome Abdu para uma intriga infantil que rapidamente se desmontou, e já foi contada. Como te pedi, as ilustrações sugeridas para estes próximos episódios passam por bilhetes postais de Bissau e pela fotografia do HM 241. Tudo fica a cargo do teu engenho e arte, como sempre. Abraços, Mário.


Bissau, um grande teatro de luz e sombras
por Beja Santos

Hoje, 1 de Março [de 1969], transportado do aeroporto de Bissalanca para o QG, vejo a cidade com outros olhos, estabeleço diferenças nesta ausência de sete meses. Quando aqui cheguei, em finais de Julho passado, o que me fascinava era aquela serpentina de vapor que descia do éter e se colava aos corpos, o multicolorido dos mercados, a laterite dos caminhos onde se moviam em movimentos airosos pequenas multidões vestindo de branco imaculado ou os tons eléctricos do arco-íris.


A cidadezinha colonial

O Bissau Velho lembrava-me o casario de Tondela ou Penalva do Castelo. Excitavam-me as lojas onde encontrei na Taufik Saad, nas Casas Barbosa e Gouveia, bens incompreensíveis quer no luxo, quer no bom gosto, quer no exactamente oposto. Dessa Bissau recordava a frustração da visita ao museu onde encontrei escultura de valor ímpar praticamente amontoada e exposta sem legendas, sem hipótese de inteligibilidade cultural.

A Bissau que eu agora percorro, de novo a pé, é uma estranha cidade sitiada onde os militares falam a gritar, onde nas mesas dos cafés as vozes fazem explodir emboscadas e se transportam feridos numa narrativa arfante. Subo em direcção a Bandim, depois de ter falado com o Pedro Abranches a quem tinha pedido notícias do Fodé.

Como num bastidor iluminado, os personagens confrontam-se imprevistamente. Primeiro, encontro o Saiegh (4) que me confessa estar cheio de saudades de Missirá. Digo-lhe que vou ao Hospital Militar visitar o Fodé e marcar consulta para amanhã para a minha perna. Pede-me todos os detalhes sobre a ida a Madina, quer saber como e porquê falhou a Anda Cá. Diz-se perdido na vida civil, quer voltar à guerra. Marcamos encontro para mais tarde.




Amadora > RI 1 > 1968 > CCAÇ 2402, em formação > De pé, da esquerda para a direita: Aspirantes Francisco Silva e Raul Albino, e Capitão Vargas Cardoso (assinalado com um círculo a amarelo).
Foto: © Raul Albino (2006). Direitos reservados.


Mais adiante, noutra esquina, deparo com o Vargas Cardoso, meu antigo Comandante da CCAÇ 2402 (4). Faz-me descrições apocalípticas do que se está a passar em Có-Pelundo, fala-me inocentemente como se não tivesse pedido para me ser proibida a visita aos meus antigos soldados. O Sol aquece e Bissau parece-me o grande teatro do mundo. Só me interessa estar junto daquele Fodé que conheci risonho, bonacheirão e a comer bacalhau cozido acompanhado por Fanta. O Pedro Abranches informara-me que a sua vida continuava a perigar, perdera muito sangue desde o rio Malafo até chegar ao hospital. Depois o choque de se ver amputado derrubara-o.

Tracei um programa de visitas relacionadas com o assunto da justiça (o processo da granada incendiária que vitimou Fatu e dois filhos em Finete), uma ida ao batalhão de engenharia suplicar materiais e saber se há vaga para a Cristina no liceu de Bissau.


Um emocionante encontro co o Fodé

Mas agora o mais importante é abraçar o Fodé. Ele está nos serviços de reanimação onde procurei um tal Dr. Diaz que me conduziu aos serviços de ortopedia. Entro numa enfermaria enorme, um grande ecrã de ligaduras e corpos estropiados. Avanço com uma serenidade estudada, levo água, cola e cigarros para lhe oferecer. O Fodé estava rodeado de membros das famílias Soncó, Sanhá e Fati, expõe o seu coto e uma mão pensada onde eu sei que faltam 3 dedos.

Abraço-o com ternura e confundimos as nossas lágrimas. Obcecado, ele só quer falar do desastre. Primeiro, confirma a morte do soldado europeu, como se eu tivesse ilusões acerca do destino daquele tronco carbonizado que acompanhou toda aquela dolorosa discussão quando eu pretendia avançar sobre Madina e os capitães pretendiam recuar. Segundo, explica que aquela mina fora contornada por todos os militares de Missirá e que só a imprevidência do soldado europeu originara o desastre. Claro que eu não vou dizer ao Fodé que as granadas que ele trazia à cintura soltaram-se milagrosamente e não explodiram. Fodé excita-se com as explicações, procuramos serená-lo, o braço entrapado rodopia inquieto e aquele sorriso único que Deus lhe deu está feito numa chama. É então que em pergunta por todos os nossos amigos, quer saber como correu a operação de Mansambo e depois afunda-se de cansaço. Entabulo a conversa com o doente do lado, um furriel que escapou ao fragor de um sistema de minas antipessoais pisado por dois camaradas à sua frente, trazia o bornal cheio de latas de conserva, tem as costas marcadas por dezenas de estilhaços, faz esgares de dor mas confessa a sua alegria de estar inteiro.

Soube pelo Pedro Abranches que o Fodé irá passar uma semana em Bissau e depois será evacuado para Lisboa. Quando lhe falo que será acompanhado pela minha família em Lisboa, ele urra de desespero, limpa as suas lágrimas no lençol, não aguento mais a emoção e saio dizendo que regresso amanhã. Dou comigo a percorrer sonâmbulo os corredores dos hospitais e lá vou marcar consulta para amanhã de manhã ser visto pela equipa do tenente-coronel Biscaia da Silva.

Na enfermaria de ortopedia


Depois escapo-me para a estrada que me leva de novo a Bandim e daqui sigo para o quartel general. Paro numa livraria e olho assombrado para títulos de obras forçosamente proibidas em Portugal. Compro uma braçada de livros e tomo a decisão de ir aos correios procurar telefonar para Lisboa. Tenho sorte. Com a voz embargada, faço perguntas tontas e dou respostas inócuas a quem mais amo: não, não se preocupem, é uma operação simples, não estou ferido, logo que eu esteja a andar telefono.

Nos correios oiço o gargalhar do Zé Manel Paz que acaba de ser punido algures e vai para nenhures, onde também será punido. Numa sala de estar do QG muno-me de papel, volto-me para a parede e escrevo cartas. Depois janto e sigo para o meu quarto/dormitório onde se repetem as mesmas conversas de guerra com estoiros de granadas, mortes por acidente, afogamentos incompreensíveis, gente que enlouquece.

Na manhã do dia seguinte, o Dr. Biscaia promete pôr-me a perna sã lá para o princípio da semana seguinte com alta passados 8 dias. Vou marcar análises e de caminho dou com o furriel Ferreira que vem tratar dos dentes. Inevitavelmente voltámos a falar da guerra mas o Ferreira só sonha num embarque para breve e regressar à vida civil.

Subo até à enfermaria da ortopedia e agora o Fodé está um pouco mais calmo, fala mesmo em levar malaguetas e mancarra para a minha família. Confessou-me ter acabo de suceder à sua mão esquerda, aguentou a notícia com coragem, pois com as dores ele já previra as piores consequências.

Daqui sigo para almoçar com a Maria Luísa e Pedro Abranches e falou-se do ano lectivo e as possibilidades de a Cristina leccionar no Liceu de Bissau. Amanhã serei recebido por um professor que me falará das candidaturas. Dormi mal mas arrastei-me até ao porto de Bissau, mordido pela curiosidade de ver partir embarcações civis que durante estes meses a fio vi passar regularmente em Mato de Cão. Depois segui para o quarto/dormitório onde oiço embrutecido mais descrições da guerra, alguém veio de Guileje para a consulta de neuropsiquiatria, é alguém que dá saltos e sai da sombra clamando:
-Vocês não imaginam o que é não haver horas para comer, eles lançam canhoadas de tarde, à noitinha, toda a noite, logo de manhã, nem na latrina estamos descansados, não é possível cozinhar comida quente, há soldados que para fugir àquele inferno enfiam tiros nas pernas e nos pés. Vocês não imaginam o que é viver encurralado, não se pode tomar a iniciativa, aquilo é um buraco, ninguém lá sabe o que estamos a fazer.

Há um outro que a põe a mão em concha sobre o pavilhão do ouvido e grita:
-Calem-se, estou a ouvir rebentamentos! - Uma outra voz acalma-o:
-Eh pá, isto não tem importância, é talvez em Tite ou no Enxudé.

Depois caio num sono pesado até ao jantar, ainda a pensar no sofrimento do Fodé, nos telefonemas que quero fazer, as minhas preocupações com Missirá, o saber que tenho que explicar à Cristina que aqueles dois dias de prisão simples representam, pura e simplesmente, o fim do sonho de ter férias. Nessa noite escrevo à Cristina falando-lhe de um colega de curso que me antecedeu em Missirá, o Luís Zagalo Matos que agora trabalha na rua das janelas verdes.

Felizmente que nessa noite há cinema na piscina do QG, praticamente toda a gente foi ver, adormeci como uma pedra, vou acordar fresco e seguir em jejum para as análises.


Que seja tudo em desconto dos meus pecados e dos de Missirá


A 3 de Março, vou viver um dia inesquecível e não resisto a contar com os detalhes que guardei nos escaninhos da memória. Bem, não é só assim, fui confirmar dados com o Emílio Rosa, o meu padrinho de casamento, que irei conhecer em Brá, em Outubro de 69, depois do acidente da mina anticarro, em Canturé. Eu conheci o Capitão Rui Júdice Gamito a bordo do Uíge. Ele tinha-me dito seguir para a engenharia, ao que me recordava ligado a grandes projectos. Do Hospital Militar telefonei para Brá, passaram-me ao Gamito, expliquei-lhe que estava na vizinhança e perguntei se o podia visitar e ele deu-me luz verde. Para o Emílio Rosa, a versão não era exactamente assim e eu não estou em condições de confirmar, tal a névoa da memória.

Em Janeiro, o Gamito do regresso do Xitole onde estava acompanhar as obras da Ponte dos Fulas, vira no meio do mato, a bandeira portuguesa desfraldada e não resistira a pedir ao piloto para se fazer ali uma curta paragem. Reconheceu-me e escandalizado com a miséria envolvente não resistiu a oferecer os seus préstimos. Inconscientemente ou não, eu ia a Brá apresentar a factura.

Brá, entre Bissalanca e Bissau, era um conjunto de barracas Mague que, para quem não se recorda, se podia associar a estruturas metálicas com paredes de fibra e tectos de lusalite com uma sequência de carruagens. Aquele batalhão de engenharia (o BENG 447) construía estradas, quartéis e prestava apoio a quem construía através de frentes de estradas (por exemplo, a lendária K3 junto a Farim). O Gamito recebeu-me cheio de cordialidade, mostrou-se impressionado com a minha miséria absoluta e eu, sem qualquer pudor, avancei os meus pedidos de chapas de bidão, chapas zincadas, sem pestanejar, pedi centenas de sacos de cimento, motoserras, pás e picaretas.

Almocei com o Gamito, depois circulámos naquele espaço atravancado onde se perfilavam os Sintex, o arame farpado, os camiões basculantes e as retroescavadoras. Eu não era peco a pedir e, ao que parece, contava com o conhecimento que o Rui Gamito tinha da minha indigência. Ele tomava nota de tudo num bloco e só me travou quando de Missirá passei para as necessidades de Finete. De uma forma seca, observou:
-Cada coisa a seu tempo, este material que vê à sua volta tem todo para onde ir. Vou dar voltas à imaginação para que muita coisa chegue a Bambadinca.

Despeço-me cheio de comoção e vou numa ligeireza até ao centro de Bissau Velho sem antes ter passado pelo Centro de Estudos da Guiné Portuguesa (instância criada por então 2º Tenente Teixeira da Mota, ao tempo colaborador do Almirante Sarmento Rodrigues, ainda nos anos 40, onde voltei a comprar livros relacionados com os mandingas e as alfaias agrícolas da Guiné).

Enamorado, não me canso de olhar com os barcos que entram e que partem rio Geba acima. Tudo aquilo faz parte do grande teatro de Bissau, onde se entrelaçam um sol mordente e as múltiplas sombras ou vultos de gente que me reconhece e que me vai recordar que existe uma guerra fora deste palco da cidade sitiada, independentemente dos cafés, dos locais de prazer, na zona europeia e africana, dos restaurantes ruidosos, e até daquela ópera bufa que são os contigentes da polícia militar, gente empertigada à procura do delito. Volto ao QG, contente com as notícias e quase pronto para ser operado.


Ratos e homens, de Steinbeck

Trouxe para Bissau vários livros e não resisto a falar-vos de duas obras marcantes. Ratos e Homens, de John Steinbeck é uma leitura onde regresso regularmente. Numa Califórnia rural, em tempo indeterminado, George e Lennie, são dois trabalhadores errantes cheios de sonhos num quintinha que possam possuir, com coelhos, cereais, um quarto limpo, animais de tiro, um celeiro próspero. Lennie é um gigante tonto e desastrado que atrai as catástrofes. A errância deste par deve-se à brutalidade incontrolada de Lennie. Desta vez, a mulher do proprietário rural faz um avanço equívoco para Lennie e acaba com o pescoço torcido. George, no auge da caçada humana, dá um tiro em Lennie, como num final típico de tragédia grega onde a trama está desenhada desde o início.

O Leopoardo, de Lampedusa e de Visconti


Quanto a O Leopardo, de Tomas di Lampedusa, li esta obra prima da literatura italiana depois de ver no cinema o clássico de Visconti. A acção passa-se quando a Sicília dos Bourbons é conquistada por Garibaldi. O Príncipe de Salina, D. Fabricio, sabe que alguma coisa tem de mudar para que tudo fique na mesma. Cede o seu sobrinho em casamento com a filha de um rico burguês arrivista. Sela com este casamento a concessão que os velhos tempos prestam ao liberalismo emergente. Numa baile memorável, o Príncipe revisita a história dessa ilha onde se cruzaram todas as civilizações do Mediterrâneo, dança com a noiva que garante a continuidade da velha nova ordem, sai do baile, olha o mundo à volta e segue altivo, para o palácio onde ele foi, é e será um senhor de poder inquestionável. Só quando ele morre é que morre esse mundo de sedução e será desbaratada a fortuna como só anos mais tarde é que os bombardeiros americanos irão reduzir a cinzas o seu belo palácio. Obra fascinante que eu terei que reler décadas mais tarde para perceber em definitivo que as astúcias do leopardo continuam a ser o segredo dos políticos hábeis.

Agora vou ser operado e conhecer a vida de enfermaria. Mas antes, na companhia de Cherno, vou assistir à chegada dramática de uma companhia de fuzileiros que foram atacados pelas abelhas lá para os lados da ilha do Como (5). Ora oiçam.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 9 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1263: Os Falcões de Bissorã, festejando os 39 anos de regresso a casa (Rogério Freire, CART 1525)

(2) Vd. post de 10 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1264: Postais Ilustrados (10): Bissau, melhor do que diz o fotógrafo (Beja Santos / Mário Dias)




(3) Vd. últimos posts desta série Operação Macaréu à Vista:

4 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1561: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (35): O Fado Hilário, em Mansambo, antes do internamento no Hospital Militar de Bissau

23 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1542: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (34): Uma desastrada e desastrosa operação a Madina/Belel

16 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1531: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (33): O Sintex: A Marinha Mercante chega até Missirá

8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1504: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (32): Aruma Sambu, o prisioneiro de Quebá Jilã

2 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1486: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (31): Abelhas africanas assassinas

25 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1461: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (30): Spínola, o Homem Grande de Bissau, em Missirá

18 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1442: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (29): Finete contra Missirá mais as vacas e o bombolom dos balantas

10 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1418: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (28): Sol e sangue em Gambiel

3 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1399: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (27): Sinopse: os meus primeiros 150 dias


(5) Diversos camaradas já escreveram sobre Bissau, que é o proncipal tema deste blogue.. Aqui ficam algumas sugestões de leitura. Vd. posts de:







sexta-feira, 9 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1576: Fotobiografia da CAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (2): os heróis também têm medo

Guiné > Região de Tombali > Março de 1968 > CCAÇ 2317 (1968/69) > Após o Treino Operacional (1), a Companhia segue rumo ao Sul da Província. Poucos dias em Guileje, para então nos coagirem a ir para as cercanias do "corredor da morte", a fim de se construir de raiz, um posto militar fixo, em Gandembel e Ponte Balana A primeira etapa foi por via fluvial e até Cacine, a bordo de uma LDG.


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 2317 (1968/69) > Durante a permanência em Guileje, foi-se recolhendo algum material para a construção de Gandembel/Ponte Balana. É o caso do aproveitamento de palmeiras, de cujos espiques se extraíam os cibes Na foto, um aspecto do abate das palmeiras.

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 2317 (1968/69) > Na fase de carregamento dos cibes.

Foto: © Idálio Reis (2007). Direitos reservados.

II Parte da história da CCAÇ 2317, contada pelo ex-Alf Mil Idálio Reis (ex-alf mil da CCAÇ 2317, BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69) (1). Texto enviado em 5 de Fevereiro de 2007. Subtítulos do editor do blogue.

Meu caro Luís:

Porque já estás na posse das fotos, e das suas legendas, ficam ao teu critério para emoldurar os textos. Envio-te um novo capítulo, que se refere à nossa passagem por Guileje. Pode ser que para a semana, comece os capítulos sobre Gandembel.

Até lá, um afectivo abraço do Idálio Reis.


Assunto: Em Guileje, a guerra não se fez esperar, e dolosamente começou a insinuar as suas facetas mais pérfidas, com as ocultas ciladas montadas na vastidão dos nossos olhares e a espreitarem o horror a todo o instante.


Caros companheiros Luís e demais Tertulianos.

A 19 de Março [de 1968], arribávamos a Cacine, após uma viagem feita de noite, com uma paralisação forçada da LDG nas águas do Geba, devido ao acentuado efeito cíclico e oscilante das marés.


De Cacine a Guileje

Mal despontou o dia seguinte, já com os nossos haveres arrumados na véspera, foi determinado que cada grupo de combate tomasse as suas posições nas viaturas postadas à nossa espera. Não havia que perder tempo, pois que a distância a percorrer era relativamente longa, e ter-se-ia que partir do princípio que a picada estaria livre dos riscos próprios que as colunas de reabastecimento em geral induzem, tanto mais que tinha sido sujeita a uma vigilância nocturna das NT.

Esta ligação de Cacine a Guileje, com um traçado quase paralelo e muito próximo da fronteira da Guiné-Conacri, poderia ser perspectivada em dois troços, com um ponto intermédio junto a Ganturé, nas imediações do entroncamento para Gadamael-Porto.

O primeiro deles, o mais longo, muito raramente era utilizado, visto que a grande generalidade dos reabastecimentos eram transportados rio Cacine acima, por lanchas de desembarque de menor capacidade, até a esse aquartelamento. Apesar de tudo, a tropa periquita foi convenientemente alertada para os perigos que supitamente poderiam ocorrer, a provirem da mata densa em que se embrenhava a picada (em pleno maciço florestal de Cantanhez, de uma encantadora beleza paisagística).

E assim, nessa única vez que utilizámos este troço, tudo decorreu na maior das normalidades. Em contraste, no que se refere ao tramo final, já a coluna perdeu francamente o seu ritmo, pois que a precaução a tomar obrigava a um apuro mais atento, onde a floresta perdia alguma densidade, e a agressiva presença local do PAIGC impunha a um outro procedimento de maior cautela.

Recomendava-se pois que o seu trajecto se fizesse de forma apeada. Com o avançar do dia, o tórrido calor tornava-se sufocante, e o cansaço ia-se apoderando, com as fardas novas a empaparem-se de suores que se vertiam em contínuo gotejo, apesar de a falta de água não ser sentida, pois que uma cisterna-atrelado nos acompanhava (para que efeito?).


Em Guileje, com a CART 1613, do capitão Corvacho e do sargento Neto


Já vencida quase toda a distância, havia um outro entroncamento — o cruzamento de Guileje —, que nos fazia rodar à esquerda e andados um pouco mais de 3 quilómetros, uma grande coluna de viaturas, entrava ao princípio da tarde adentro do arame farpado do aquartelamento, sede de uma CART já com algum tempo de comissão, comandada pelo Capitão Eurico Corvacho (2).

Guileje oferecia sofríveis condições de alojamento, o bastante para os lassos corpos serenarem e para se saciar a fome acompanhada de uma bebida afrescada no frigorífico, para logo a fadiga da jornada rogar descanso.

No outro dia, o Comandante da [nossa] Companhia transmitia secamente aos seus 4 alferes, as suas directrizes:

(i) Que a permanência por Guileje seria de poucos dias, o suficiente para dar azo a trazer de Gadamael algumas infraestruturas e materiais de construção, a fim de serem transportados para um local próximo do corredor de Guileje, onde se iria fazer um quartel de raiz.

(ii) Que tal implantação, correspondia a uma resolução que se revestia de enorme transcendência no xadrez da estratégia militar da Província, tanto mais que assentava no objectivo de impedir o inimigo de utilizar uma das suas mais importantes fontes de reabastecimento com proveniência da Guiné-Conacri.

(iii) Que estava em planeamento uma grande operação militar, para onde e durante algum tempo, iriam ser canalizados grandes contingentes de tropa, tendentes à obtenção de um sucesso rápido, para nos libertar para os trabalhos de carácter imediato.

(iv) Que durante a curta estadia de Guileje, far-se-iam colunas de reabastecimento a Gadamael com uma grande frequência, com os grupos em rotação, quer em integração, ou em missão de segurança, a que se juntavam a CART 1613 e a CCAÇ 2316.

(v) Que dada a existência de haver logo à saída para o Mejo, de grandes quantidades de palmeiras que formavam óptimos cibes, se tornava importante fazer o seu máximo aproveitamento.

O contexto desta reunião era o de emitir uma ordem, e inscientes das tramóias que nos iam urdindo, estávamos prontos para o seu cumprimento. E assim, durante esta breve temporada, a Companhia viu-se envolvida numa grande azáfama.


Manter aberto corredor de Guileje


Por suposto, era de fácil dedução, para o forte núcleo guerrilheiro do PAIGC, que esta movimentação desusada das NT não lhe era a mais conveniente, dado que num intervalo de apenas 3 dias, uma outra Companhia do Batalhão — a CCAÇ 2316 —, se veio a sedear no aquartelamento do Mejo. Hoje, torna-se fácil reconhecer que, desde logo, houve um recrudescimento imediato do seu poderio bélico na zona, já quase sob o seu controlo territorial, e que, ante a situação que ora se lhe deparava, obviamente não convir-lhe-ia de todo menosprezá-la.

O raio de acção das NT já era restrito, procurando a todo o transe garantir os acessos a Gadamael-Porto, Guileje e Mejo. As ligações de Guileje para Aldeia Formosa já estavam interditas, assim como do Mejo para Bedanda (desde quando?), o que claramente denunciava uma situação de grande isolação e fragilidade para as tropas aqui acantonadas.

No decorrer desta permanência por Guileje, as colunas a Gadamael-Porto eram realizadas correntemente. Para além da estrada ser bastante perigosa, que obrigava à sua picagem na ida, e que amiúde era atravessada por traiçoeiras abatises, havia que fazer o carregamento das viaturas, na base de materiais em geral pesados e colocados à custa de um esforçado trabalho braçal, e de modo a que o regresso se fizesse com a maior rapidez possível. Não cabiam espaços para tempos perdidos.

Quanto à protecção na volta da coluna, 1 ou 2 grupos de combate saíam apeados do aquartelamento, a fim de montarem emboscadas nas imediações do cruzamento de Guileje até à passagem da coluna.

Um encontro fatal, o nosso baptismo de fogo


No fatídico dia 28 [de Março de 1968], coube ao meu grupo ir manter protecção a uma dessas colunas. Ao princípio da tarde, após uma manhã no corte de algumas palmeiras, deslocámo-nos até ao cruzamento, onde após dispor os meus homens emboscados ao longo do traçado da curva, vim a tomar lugar junto à secção da bazuca.

Ainda que não fosse audível o ruído dos motores, alguns dos homens que formavam o U aberto da curva, foram alertados pelo bulício de gente a andar, o que os fez pressupor que seriam alguns militares que vinham em missão de avanço relativamente à coluna.

A visão da estrada era plena. Contudo, começou-se a notar que havia alguém a entrar na mata, mas eram homens de tez não negra que apareciam à cabeça da fila. Já estes se encontravam a uma distância de pouco mais de uma dezena de metros dos homens em posição mais avançada, postados ao vértice da curva e onde se encontrava a secção da metralhadora, quando a visão de alguns autóctones e a diferenciação cromática da vestimenta, veio a comprovar que se estava ante um grupo inimigo. Numa aproximação frontal, só quase a secção da metralhadora é testemunha deste facto.

De uma forma brutal, desencadeia-se um fogo muito intenso, que durará um interminável período, não mais de 10 minutos, mas que se finda de forma repentina. O tiroteio como que seca abruptamente, dando a parecer, que num ápice todas as munições se tinham esgotado.

Passada uma curta fracção de tempo, noto as figuras de alguns soldados a recuarem de forma aflitiva e desordenada, a denotarem fortes reacções de embaraço, agitando-se convulsivamente. E, num relance, um número infindo de vespas (abelhas bravias) iam-se espalhando, zunindo ao nosso encontro, ferrando impiedosamente alguns de nós.

O IN tinha debandado, dado que se confrontou com uma improvisada situação que não esperava de todo, de os lugares onde desejavam posicionar-se, já estarem ocupados. A utilização destes insectos, transportados em cunhetes de granadas de rockets, causava em qualquer contingente, um franco risco de uma integral debilidade bélica, pelo que para eventuais fugas, era uma arma de arremesso de enorme impacto. É que em geral determinava ao desconserto, pois que malevolamente rompia todos os comportamentos que um combatente em frente de guerra deverá sempre demonstrar, como: presença, personalidade, compenetração, frieza, segurança, audácia, solidariedade, etc.

Sofreram-se vivências de autêntico terror, medonhas, pois parece que inopinadamente surgia um desencontro sem controlo, e da intensidade que este baptismo de fogo envolveu e da perda da ordem provocada, cheguei a pensar que o nosso fim estava iminente. Inesquecíveis momentos de pavor e amargura.

Mas as armas inimigas pareciam ter-se calado em definitivo, e o grupo ordeiramente foi-se reorganizando, pela conduta dos comandos de secção.

O apontador da metralhadora veio dizer-me que o seu municiador tinha sido fortemente baleado, e estava morto. Eu próprio, também testemunhara o horror da morte do municiador da bazuca, no seu derradeiro suspiro; este, para se esquivar dos impactes de uma rajada de metralhadora, ter-se-á acolhido para o lado do apontador no preciso momento em que disparou. Fatal, com a parte anterior do tórax transformado em cinza.
Os outros, alguns deles com várias picadas, estavam todos bem. E seria necessário sair dali, o mais rapidamente possível.

Contudo, o municiador da metralhadora jazia alguns metros à frente, e o seu corpo já não estava visível. Era necessário proceder à sua recuperação, apesar de se antever que devia estar sob um manto de vespas.

Os heróis têm medo, mas há homens que em determinadas circunstâncias perdem a noção de todo o risco, e afrontam qualquer situação de ameaça sem nada temerem. A consciência do perigo é vivida no teatro da guerra, de forma diferente em cada um de nós, na imprecisão das reacções. Para o verdadeiro amigo, são infinitos os limites da tolerância, dado que um conjunto de emoções se nublam, sume-se a racionalidade e num sopro silente, uma irreal inconsciência freme, e nenhum escolho deixa de ser enfrentado.


A acção heróica do 1º cabo Carmo, de alcunha o Lamego

Com o casaco do camuflado a cobrir a cabeça, há um que sem dizer palavra dirige-se ao local onde o companheiro jazia, levanta-o sobre o ombro esquerdo e junta-se ao grupo que abandona o local. E, antes da coluna de reabastecimentos entrar, um grupo de combate da tropa periquita assome a Guileje em desespero, silenciadas as palavras, com os olhos marejados de lágrimas de pranto e de dor a libertarem-se em fios copiosos sobre o rosto abaixo, com 2 camaradas mortos.

Acabávamos de perder os primeiros dois elementos de um dilatado rol: o Domingos Costa, da freguesia de Olival em Vila Nova de Gaia e o Manuel Meireles Ferreira, de Pópulo, em Alijó.

Deste dramático embate, como testemunha de maior responsabilidade, desejaria salientar os seguintes aspectos:

(i) A aproximação frontal de poucos metros, como resultado de à frente do IN virem 3 ou 4 militares não indígenas, porventura de origem cubana, ludibria os homens que estavam emboscados, que tiveram de travar uma luta frente a frente, quase de corpo a corpo.

Se se pode reconhecer alguma inexperiência, ao não se discernir na aproximação o tipo de combatente, seja pelo cromatismo das fardas, seja pelo armamento empunhado, o que poderia ter acontecido? Da combinação de tantas situações, há uma que não me suscita grandes dúvidas: que o efectivo do grupo do PAIGC seria numeroso, e dada a forma precipitada como se retirou, o resultado da renhida refrega provocou-lhe também pesadas baixas.

Um comunicado veiculado pelo PAIGC, contudo, não deixa transparecer este último aspecto, porquanto refere: «No dia 28 de Março [de 1968], um contingente colonialista que tentava fazer um reconhecimento na estrada Ganturé-Guileje, é violentamente atacado pelas NF. Pondo-se em debandada, o IN abandonou no terreno 8 cadáveres e uma importante quantidade de munições».

(ii) Havia um determinado tipo de armamento que equipava cada grupo de combate, inteiramente desajustado para situações ofensivas, como o caso do famigerado lança granadas foguete 8,9. A deslocação das NT, que se fazia mormente em zonas florestadas, poucas hipóteses ofertava na utilização desta arma, pouco ou nada maleável, com granadas de grande peso e a requerer alguma perícia no carregamento, e com um insatisfatório grau de eficácia.

O abandono da maldita bazuca 8,9 em acções ofensivas

A morte do municiador blevou a que a abandonasse em definitivo, guardando-a somente para situações de ordem defensiva. Em sua substituição, foi-me entregue um lança granadas de muito menor porte (julgo que o calibre era de 3,7, que a gíria intitulava de lança-rockets), arma bastante ligeira, e em que uma série de granadas podiam ser levadas numa bolsa-carregadora transportada sobre o dorso. E também fazia uso do dilagrama, que talvez tivesse sido a melhor invenção que tivesse ocorrido em Portugal, em termos de armamento militar, ainda que obrigasse a uma redobrada atenção no seu manuseamento, o que me fazia escolher 1 ou 2 soldados destinados unicamente para esta arma.

(iii) O homem que procedeu à façanha de ir buscar o companheiro morto, jamais o revi: O cabo Carmo. Era conhecido pela sua alcunha — o Lamego. Retenho dele, numa estatura meã, um ser simples, rude, duro, em permanente busca de afectos, donde emanava uma amizade sã e leal, que comprazia equitativamente por cada companheiro. E apesar de todas as contrariedades, denotava ser um homem feliz, e das peripécias de um itinerário em frente de guerra quase constante, parecia esquecer por inteiro as que mais nos ensombravam.

Um certo dia, já a mais de meio tempo de Gandembel, saiu legislação com efeitos de retroactividade, que determinava que uma família com um filho morto em combate, nenhum outro seria mobilizado, ou seja, o nosso Lamego, com um irmão falecido em Angola, poderia regressar ao Continente, pois a sua comissão, por força da lei, considerava-se terminada.

O que foram fazer a este homem! Talvez o pior, pois que de modo algum queria regressar. Neste momento, está à minha frente, em choro convulsivo, rogando-me para não o deixar ir embora. Hoje, recordo com uma enternecida emoção, o que foi a sua sentida despedida da Companhia, mas muito principalmente do seu Grupo, com que ele costumava brincar, por tudo e por nada, talvez porque em criança não tivesse tido tempo nem gente bastantes para o fazer. Um serrano beirão de gema, como poucos, e quanta falta nos fizeste, sabes?

Este primeiro infortúnio, que nos roubou 2 companheiros, foi um choque de uma carga emotiva extremamente pesada, transparecendo nos mais fracos e sensíveis, o alquebro das situações transidas, mas que a brutalidade da guerra recomendava a que fossem superadas por um persuasivo e sereno efeito moderador.

O dia seguinte era só amanhã, e tinha de revelar em pleno a sua presença. E assim correspondemos a esse apelo, fazendo tombar mais uma série de palmeiras. E os vivos continuaram a teimar nesta odisseia, ao livre arbítrio do destino.

A continuação pelo Tombali ainda continuou por mais alguns dias, onde recordo ao cerrar de uma noite, um ataque ao aquartelamento com alguma intensidade. Pareceu-me contudo, que o sistema defensivo de Guileje era eficaz, pronto na resposta e os abrigos ofereciam bastante segurança.

E o dia 8 de Abril [de 1968] chegava. Iniciava-se uma grande (incandescente!) operação militar de nome Bola de Fogo (3), que nos havia de conduzir algures à região do Forreá, mais especificamente a um fatídico sítio, que se veio a apelidar de Gandembel/Ponte Balana.


E até mais logo.

Um cordial abraço do Idálio Reis.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 16 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1530: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (1): Aclimatização: Bissau, Olossato e Mansabá

(2) CART 1613 (Guileje, 1967/68). Vd. memórias do nosso camarada Zé Neto > post de 25 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXXV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (Fim): o descanso em Buba

(3) Vd. post de 16 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXLIV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (9): a Operação Bola de Fogo

quinta-feira, 8 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1575: A TSF no Cantanhez, com uma equipa de cientistas portugueses, em busca do Dari, o chimpanzé (Luís Graça / José Martins)





Guiné-Bissau > Bissau > Abril de 2006 > Viagem Porto-Bissau > Nas três primeiras fotos, um dari, em cativeiro (na primeira foto, vê-se a Inês, a filha do Xico Allen); as duas últimas fotos são de um babuíno, macaco-cão (sancu, macaco, em crioulo).

De um modo geral, as populações da Guiné-Bissau, não islamizadas, perseguem, caçam e comem o sancu. Sobretudo depois de 1980, a caça (ilegal) ao macaco-cão aumentou. Quanto ao dari, o chimpanzé da mata do Cantanhez, há uma maior respeito pelas suas semelhanças com o ser humano. No entanto, o seu habitat está condicionado pelas actividades humanas (expansaão das áreas de cultivo). Há cerca de 7 milhões de anos, havia um antepassado ancestral. Há cinco anos que uma equipa de investigadores portugueses monitoriza a população de daris no sul da Guiné.

Fotos: © Hugo Costa / Albano Costa (2006). Direitos reservados



1. Reportagem TSF > Dari, Primata como Nós > 2 de Março de 2007 .

No sul da Guiné-Bissau, o chimpanzé tem nome de gente. Na pista de Dari, uma equipa de cientistas portugueses estuda, há cinco anos, os chimpanzés das matas de Cantanhez com o objectivo de ajudar a salvar uma espécie ameaçada, sobretudo pela redução do seu habitat e pela dificil coexistência com as populações humanas do sul da Guiné-Bissau (e do norte da Guiné-Conacri).

A par do chimpanzé (em tempos, um homem, ferreiro, que Deus transformou, por castigo, em alimária, segundo as lendas locais), há outros primatas e outros mamíferos como o búfalo e até o elefante na mata do Cantanhez.

O dari (chimpanzé) é mais difícil de encontrar que o macaco-cão ou babuíno, o quel por sua vez, e infelizmente, começou a ser mais procurado, como peça de caça e como iguaria, a partir dos anos 80, devido à maior raridade de outros animais, como os cervídeos (2). No tempo da guerra colonial, não era frequente o consumo de carne de macaco, pelo menos na zona leste habitada sobretudo por populações islamizadas (fulas e mandingas), muito embora o macaco-cão fosse muitas vezes baleado quando invadia os campos de mancarra (amendoím). Contudo, de entre os nossos camaradas houve quem tivesse comido macaco por cabrito (3)...

Um conhecido jornalista da TSF, Carlos Vaz Marques, passou 15 dias com o grupo de investigadores, coordenado pelas primatólogas portuguesas Catarina Casanova (37 anos, Universidade Técnica de Lisboa) e Cláudia Sousa (31 anos, Universidade Nova de Lisboa), e que inclui alunos de mestrado e doutoramento. A partir de Jemberem (vd. carta de Cacine), a companhou o quotidiano das caminhadas pelo mato, da recolha de vestígios, das conversas com os habitantes das tabancas e testemunhou o encontro com um grupo de chimpanzés, guardando o registo sonoro desse momento raro e seguramente emocionante.

Dari, Primata como Nós é uma grande (e belíssima) reportagem de Carlos Vaz Marques com montagem e sonorização de Alexandrina Guerreiro.

A reportagem inclui também excertos de conversas com os guias e com os cientistas, incluindo parte de um entrevista, a uma rádio local, dada pela Catarina, a qual fez questão de sublinhar a importância que a protecção do dari (e de outras espécies animais) tem para o desenvolvimento do ecoturismo e para a subsistência das populações do Cantanhez. Este é também um objectivo prosseguido pelo projecto Guiledje, da AD - Acção para o Desenvolvimento, liderada pelo nosso amigo e tertuliano Pepito.

Aqui fica o link para o registo áudio (cerca de 43 minutos), no sítio da TSF, que aconselho vivamente a ouvirem.

2. Entretanto, o nosso camarada José Martins, acaba de me mandar uma mensagem relacionada com a notícia, dada acima.

Caro Luís

Votos de boa saúde e boa disposição.

Silêncio quebrado para informar que, amanhã, sexta-feira, dia 9 de Março, vai para o ar, nas ondas da TSF, depois das notícias das 19 horas, uma reportagem sobre a Guiné. Título: Guerra do Patacão...

Disseram o tema especifico, passando alguns excertos, mas não consegui reter, nem confirmar com a rádio.

Se achares por bem, divulga.

Um abraço

José Martins

Comentário de L.G.:

Zé, confirmei na TSF. Deve ser a continuação da reportagem do Carlos Vaz Marques, que acaba de regressar da Guiné-Bissau, segundo me informaram da estação. Convidamos os nossos amigos e camaradas da Guiné a sintonizar a TSF, amanhã, às 19h. A emissão da TSF pode ser ouvida On Line, enquanto os nossos tertulianos vêem as últimas do nosso blogue.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. outra notícia da TSF relacionada com Catarina Casanova: TSF on line > 1 de Setembro de 2005 > Chimpazés e homens têm mapa genético semelhante

(2) Provérbios em crioulo da Guiné, relacionados com o sancu (macaco) (alguns, com variantes):
I sancu di dus matu (= é macaco de dois matos)

Kal dia ku sancu fala jugude manteña si ka pa rispitu di kacur; (i) Kal dia ku sancu fala Sakala manteña si i ka na disgustu di kacur (= quando é que o macaco cumprimenta o abutre a não ser no velório do cachorro)

Kon kuma lebsimenti na rosta ki sta; (i) Kon kuma lepsimentu i na uju; (ii) Kon kuma lebsimentu na uju ki sta nel (= o macaco-cão diz que a ofensa está no rosto)

Rabu di sancu i kunpridu, ma si bu rikitil i ta sinti dur; (i) Rabu di sancu i kunpridu, ma si bu na rikitil i ta sinti (= o rabo do macaco é comprido, mas se você o beliscar ele sentirá)

Sancu beju, gelgelidora ka ta manda i kuspi manpatas ki ieki (= o macaco velho, o coceguento não manda cuspir no mampatás que enche a boca)

Sancu ka ta fala kuma si fiju fiu; (i) Tudu fiu ki fiu, nunka bu ka ta fala kuma bu fiju fiu; (ii) Tudu fiu ku bu fiu, bu ka ta fala kuma bu fiju fiu (= o macaco nunca diz que seu filho é feio)

Sancu ka ta jukta i fika si rabu; (i) Sancu ka ta jukuta pa i fika si rabu (= o macaco não pula sem levar o rabo consigo)

Sancu kunsi po ki ta fural uju; (i) Kon kuma i ka kunsi po ku ta matal, ma i kunsi kil ku ta fural uju (= o macaco conhece o pau que lhe furou o olho)

Sancu nega papia pa ka paga dasa (= o macaco não fala para não pagar imposto)

Si bu oja sancu ba fonti, sibi kuma i ka leba kalma (= se você vir o macaco indo à fonte, saiba que não leva cabaça)

Uju di sancu dalgadu, ma ningen ka ta pui la dedu (= o olho do macaco é pequeno, mas ninguém põe o dedo nele)

Fonte: Instituto de Letras da Universidade de Brasília > Provérbios crioulo-guineenses

(3) Vd. post de 11 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): Cabrito pé de rocha, manga di sabe (Vitor Junqueira)