sábado, 27 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1466: Mário Bravo, médico de Guileje (Amaro Munhoz Samúdio)

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3477 (Novembro de 1971/ Dezembro de 1972) > O Alf Mil Médico Mário Bavo (1)- ao meio, na foto - esteve na CCAÇ 6 em Bedanda, mas também ia regularmente a Guileje, no tempo do Samúdio (1º cabo enfermeiro, o primeiro à esquerda).

Foto: © Amaro Samúdio (2006). Direitos reservados


Caro Luís Graça:

O Mário Bravo era o médico que ia regularmente a Guileje.

Um abraço

Amaro Munhoz Samúdio (2)

__________

Notas de L.G.

(1) Vd. post de 23 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1457: Tertúlia: Apresenta-se o Alf Mil Médico Mário Bravo, CCAÇ 6, Bedanda (1971/72)

(2) Vd. post de 10 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1162: Guileje: CCAÇ 3477, os Gringos Açorianos (Amaro Munhoz Samúdio)

Guiné 63/74 - P1465: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (4): Os majores foram temerários e corajosos (João Tunes)


Portugal > Presidência da República > Antigos Presidentes > António de Spínola (1910-1996). Ocupou a Presidência da República de 15 de Maio a 30 de Setembro de 1974, data em que renunciou ao cargo, sendo substituído pelo general Costa Gomes. De 1968 a 1973, foi Governador-Geral e Comandante-Chefe da Guiné.

Fonte: Presidência da República Portuguesa (2007) (com a devida vénia...)

"Oficial oriundo da arma de cavalaria, começou a construir a imagem de chefe militar que vai onde os seus homens vão desde que, como tenente-coronel, se ofereceu para comandar um batalhão em Angola.

"Nomeado em 1968 por Salazar para governador e comandante-chefe da Guiné, no primeiro estudo da situação, apresentado por Marcelo Caetano, afirmava ter a guerra a finalidade de resistir para permanecer; ligava entre si a sorte de cada território, de modo a evitar as tentações do regime se libertar da ovelha negra que era a Guiné; e caracterizava o PAIGC como o movimento de libertação mais consequente de quantos se opunham ao colonialismo português, classificado por Amílcar Cabral como líder merecedor do maior respeito.

"A sua acção na Guiné cobre toda a panóplia de manobras politícas e militares, subordinando sempre esta àquelas e tendo por finalidade a conquista das populações. Promove coversações ao mais alto nìvel com Leopoldo Senghor; tentando chegar a Amílcar Cabral, procura cindir o PAIGC, num episódio de que resulta a morte de três majores da sua confiança; lança uma operação contra Conacri para derrubar Sekou Touré, mas realiza também congressos do povo, liberta presos políticos, cria uma força africana. Nunca um governador de provincía ultramarina, e muito menos um general, ousara ir tão longe.

"Em 1973, quando Marcelo Caetano proíbe a continuação dos contactos com o inimigo, Spínola compreende que deixou de ter lugar no regime e prepara a publicação de Portugal e o Futuro, bomba-relógio que iniciará a sua destruição".

Fonte: Extractos de: Centro de Documentação 25 de Abril, Universidade de Coimbra



Mensagens trocadas entre o Afonso M.F. Sousa e o João Tunes, durante a elaboração do dossiê O Massacre do Chão Manjaco (1):

1. Mensagem do Afonso M. F. Sousa > 21 de Novembro de 20006

Caro João Tunes:

Tudo muito claro. Obrigado pelo pormenor do testemunho. A famíla do Tenente-Coronel Joaquim Pereira da Silva [ um dos três majores assassinados,]parece estar mal informada quanto a:

(i) Não foi Ramalho Eanes que comandou a tropa que procedeu ao levantamento dos corpos, mas sim o Capitão Neves (comandante da CCAÇ 2586) (2)

(ii) Pereira da Silva não foi morto com uma catanada no estômago, quando muito foi com uma faca de mato. O Cap João Godinho (há altura, 1º Sargento da CCAÇ 2586) disse-me que um dos majores ainda tinha uma faca de mato espetada na zona do coração. Não se recorda em qual deles.

(iii) Spínola não estava na Metrópole (a pedido de Caetano), no dia do massacre (mas sim na Guiné).

De estranhar que, tendo a PIDE detectado a tempo que o desfecho da acção seria trágico, tenha permitido a sua execução sem sugerir uma segurança próxima e a necessidade dos oficiais levarem armas consigo.

Parece que ainda fica alguma obscuridade (mistério) sobre todo o envolvimento e o desfecho desta acção. Fica a dúvida se os majores tiverem todo o apoio necessário ou terão sido deixados entregues a si próprios nos últimos instantes. Mas para chorar os mortos, Spínola estava lá !...

Um abraço

Afonso M.F. Sousa

2. Resposta do João Tunes > 22 de Novembro de 2006


Caro Afonso Sousa,

(i) A versão que tenho como confirmada é que as mortes foram provocadas primeiro por rajadas de tiros e depois acabadas com facas. Mas não sei se as facas eram facas de mato, talvez fossem as facas-baioneta usadas com as kalash. Quem sabe mais pormenores sobre tudo isto é o Leopoldo Amado. Ele foi contactado?

(ii) Não sei se interessará muito, por uma questão de sensibilidade, escarafunchar junto da família do TC Pereira da Silva os pormenores. Por exemplo, esclarecê-los que ele foi morto com faca e não com catana. Tu saberás dar a volta ao eventual melindre.

(iii) Só sei que o Silva Cardoso, então responsável pelas Informações no QG, é dado como tendo convencido Spínola a não ir ao encontro (Spínola já tinha estado com os majores num 1º encontro com o PAIGC). A referência que fiz à PIDE é uma mera dedução, pelo papel que ela desempenhava no serviço de informações às FA. Aliás, como confirmei presencialmente, o Major Pereira da Silva trabalhava em íntima colaboração com o inspector da PIDE, em Teixeira Pinto, que tinha um papel primordial na obtenção de informações, na infiltração de informadores, etc. Entretanto, a direcção da PIDE em Bissau tinha as suas infiltrações junto e dentro da direcção do PAIGC. Pode ter ocorrido uma diferente avaliação da PIDE em Bissau e em Teixeira Pinto. E é natural que em Bissau (no QG e na PIDE) houvesse avaliações mais frias e mais realistas dos riscos que quem estava no terreno envolvido na probabilidade de um grande ronco e, nesse entusiasmo a quente, os riscos fossem menos medidos quanto a cenários pessimistas.

De qualquer modo, havendo contradições dentro do PAIGC, é natural que neste se desenvolvessem vários canais de acção - um mais virado para a traição (os mais receptivos à infiltração pela PIDE), outro (com ultra segurança e sob comando directo de Cabral) para fazer ronco contra o Spínola (tanto mais que eles deviam admitir como possível e provável que iam deitar a mão ao Caco e, quem sabe?, a selvajaria do comportamento deles não foi acicatado por terem visto que o Spínola não ia na delegação).

Entretanto, é natural que as precauções com a segurança de um general sejam superiores que para com majores e um alferes, como é superior de majores para furriéis e de furriéis para cabos. Assim, julgo que nada fundamenta dizer-se que os chacinados "não tiverem todo o apoio necessário ou terão sido deixados entregues a si próprios nos últimos instantes". Numa guerra, nada é 100% seguro. E eles tiveram, sem dúvida, foi um grande galo. Como tantos milhares de outros nossos camaradas que por lá cairam.

(iv) O Ramalho Eanes estava até os acontecimentos no QG em Bissau (conheci-o aí de vista ligeira quando fui lá colocado em serviço durante duas horas e por engano!). Foi para Teixeira Pinto depois da morte dos majores e para substituir um deles (Passos Ramos).

(v) Quanto à temeridade de os oficiais terem ido sem segurança e desarmados, há que ter em conta: aquele era o culminar de vários encontros e negociações anteriores em que tudo tinha corrido às mil maravilhas, havendo conquista total de confiança de parte a parte. E com escolta e armas não havia encontro (das vezes anteriores, também os do PAIGC apareciam desarmados).

Está fora de dúvidas que a traição do PAIGC no chão manjaco era um facto e ali, os dali, eles não faziam jogo duplo, trabalhando à revelia da direcção do PAIGC (provavelmente, já era um dos fios das rivalidades infra-PAIGC entre guineenses e caboverdianos). O que houve foi uma reacção enérgica da direcção máxima do PAIGC quando soube e ou faziam o que fizeram ou eram limpos sem apelo nem agravo pela justiça interna do PAIGC. Foi sob essa pressão que, no último momento, deram a volta. E o PAIGC também contava que, depois da chacina, as FA iam reagir com brutalidade e tornar irrecuperável a paz no chão manjaco e estragando todo o trabalho acumulado (como se confirmou posteriormente).

A direcção do PAIGC, in extremis, conseguiu vários roncos: recuperar a guerrilha local para a lealdade absoluta ao PAIGC (depois de matarem os majores, foi-se qualquer margem de futura traição); incrementar a combatividade desses guerrilheiros locais (para se limparem da nódoa do jogo de traição em que antes tinham estado metidos); perturbar a relação das FA com as populações pelo incremento da conflitualidade militar na zona; limparam 3 oficiais que eram a nata da oficialidade de Spínola (além do alferes). Só falharam no ronco maior de deitarem a mão ou matarem o próprio Spínola.

Num panorama destes, julgo que os majores foram corajosos e temerários, mas não inconscientes nem imprevidentes (o cenário era para aí de 95% de probabilidade de sucesso e grande ronco). Saíu-lhes a fava, acontecendo-lhes o que a qualquer um de nós podia ter acontecido em cada um dos dias que ali passámos - com um tiro, uma mina, uma emboscada, uma morteirada, um desastre de unimog. E obviamente que o que mais impressiona nisto é a forma bárbara como acabaram com eles mas os factores de efeito psicológico não são as traves mestras da guerrilha e da contra-guerrilha?

Abraços a todos.

João Tunes

3. Comentário do Afonso M.F. Sousa > 23 de Novembro de 2006


Obrigado João Tunes. Fala quem sabe !

Afinal as interrogações eram pertinentes.

A história da Guiné ainda é, aqui e ali, uma pequena manta de retalhos em que os diversos bocados por vezes não combinam. Um exemplo: a família do Major Joaquim Pereira da Silva encaixou que:

(i) foi Ramalho Eanes que esteve no local a proceder ao levantamento dos corpos;

(ii) Após serem surpreendidos pelas primeiras rajadas de metralhadora, envolveram-se em disputa física, tendo o Pereira da Silva Sido aniquilado com uma catanada no estômago;

(iii) Spínola estava na Metrópole, chamado para uma reunião com Marcelo Caetano.

Conclui-se, do cruzamento dos testemunhos (de quem esteve na zona), que isso não foi bem assim. Era aí que eu queria chegar. Não que esse apuramento dê à família algum estado de conforto, mas porque nos cabe, enquanto contemporâneos do acontecimento, ser agentes, tanto quanto possível, para a realidade histórica do nosso tempo..

A história leva o seu tempo a chegar à verdade. E quantas vezes, num primeiro momento, a realidade é adulterada. Quantas vezes alguma subjectividade impera, algum interesse obscuro se vislumbra, o que, forçosamente, tem de deixar alguma nebulosidade na realidade que se procura. A memória é base para a construção da interpretação histórica. Falar da memória é falar do testemunho, da pergunta e da resposta. Os depoimentos que envolvem esquecimentos, distorções, omissões e subjectividade, são lacunas que não ajudam à narração real e meticulosa da história.

Obrigado pela mestria da sua análise, praticamente incontestável.

Um abraço

Afonso Sousa

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(1) Vd. posts anteriores:


17 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1436: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F.Sousa) (1): Perguntas e respostas

18 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1445: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F.Sousa) (2): O papel da CCAÇ 2586 (Júlio Rocha)

19 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1446: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M. F. Sousa) (3): O depoimento do 1º sargento da CCAÇ 2586, João Godinho


(2) Vd. post de 20 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1448: Os quatro comandantes da CCAÇ 2586 (A. Santos)

sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1464: Oficiais, sargentos e praças: tropa é tropa, uísque é uísque (Gabriel Gonçalves / Luís Graça)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Vista aérea do aquartelamento, tirada no sentido leste-oeste, ou seja, do lado da grande bolanha de Bambadinca (vd. mapa da região).
O campo de futebol (3), junto à pista de aviação (2), vem assinalado com um círculo a vermelho.

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Sede do BART 2917 > CCAÇ 12, companhia independente, unidade de intervenção > 22 de Outubro de 1970 > "Uma panorâmica do estádio de futebol e a nossa grande equipa... Infelizmente não me recordo dos nomes da malta toda, no entanto o 1º à esquerda em pé é o Murta (operador cripto); o 3º à esquerda em baixo é o Carlão (alferes) e eu sou o guarda-redes" (GG).


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Sede do BCAÇ 2852 > CCAÇ 12 > 6 de Maio de 1970 > "Outra foto da nossa equipa. Desta vez o 5º em pé a contar da esquerda é o Branco, o 6º o Branquinho, em baixo o 1º sou eu, o 4º o Arménio e os outros que me desculpem mas não me recordo dos nomes" (GG)...

Fotos: © Gabriel Gonçalves (2006). Direitos reservados

1. Mensagem do Gabriel Gonçalves, ex-1º cabo operador cripto da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, Maio de 1969/Março de 1971) (1):

Caro Henriques: Hoje ao consultar mais uma vez o nosso blogue, deparei com isto: "Uma relíquia... Ou, como dizia eu, da Escócia com amor, para as Forças Armadas Portuguesas... O uísque foi a nossa marijuana, e a Guiné o nosso Vietname... Pelo menos para os milicianos, que o Zé Soldado bebia sobretudo bazucas e água de Lisboa" (2)...

Pois é, Henriques, este teu amigo Zé Soldado também gostava de beber o seu uísquinho, bem como uma grande maioria dos outros Zés Soldados. Possivelmente o autor, frequentava pouco a cantina dos Zés Soldados. Quero dizer que não gostei nada deste comentário, que me lembrou que alguns milicianos olhavam para nós, Zés Soldados, por cima do ombro. Bem, o que vale é que agora nos tratamos todos por tu....

Um grande abraço para ti, porque tu eras daqueles que volta e meia frequentavas a cantina.

Gabriel

Ex-1º cabo operador cripto

2. Comentário de L.G.:

Gabriel: Nada disso… Não reparaste que o comentário é meu, do editor do blogue (LG)... Longe de mim, a ideia de discriminação. Tu bem sabes que eu seria o último a fazê-lo. A verdade é que o uísque, apesar de (relativamente) barato para oficiais, sargentos e praças, sempre andava à volta dos 40/50 pesos (o novo) e 120/150 (o velho), por garrafa... Isto pesava nos nossos orçamentos (3)...

No dia à dia, o padrão de consumo era muito variável: havia gente - nomeadamente milicianos - que não gastava um tostão em bebidas alcoólicas... Havia muitos Tios Patinhas. E havia os coleccionadores de uísque, gajos que trouxeram contentores (passe o exagero) de bebidas finas, ams que seguramente nunca beberam um trago nem pagaam um copo a um camarada... E havia ainda os filhos da mãe que diziam que tropa é tropa, cognac é cognac... O mesmo é dizer, que nunca se misturavam com o maralhal, o Zé Soldado, os cabos, os furriéis...

A expressão Zé Soldado é uma caricatura. Todos nós eramos Zé Soldados. Sempre fui contestatário da segregação socioespacial na tropa, em geral, e em Bambadinca, em particular. Por exemplo, nunca entrei ( nem fiz questão de entrar) na messe de oficiais. Em contrapartida, ia muitas vezes à vossa cantina. E tu, seguramente, bebeste copos comigo, connosco (o Humbero, o Levezinho...) no bar dos sorjas. Até por que eras artista... e sobretudo porque convivias bastante connosco, furriéis milicianos...

A ideia que eu tenho é que a maior parte da malta – milicianos, inclusive – bebiam sobretudo cerveja... Exagerei, portanto, ao dicotomizar. Como se o uísque fosse um traço de classe e de distinção !... Nada disso, muitos de nós beberam pela primeira o seu uísque com soda ou com água de Perrier... na Guiné. Essa é que é a verdade.

Um abração, grande Arcanjo Gabriel.

PS - A propósito, gostava que desses uma vista de olhos à foto com a vista área de Bambadinca e completasses a legenda: há instalações que nem eu nem o Humberto ainda identificámos bem... Por exemplo, onde ficava a cantina ? E o centro cripto ? Podes dar uma ajuda, até porque passaste 20 meses em Bambadinca, trancado no quartel !

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Notas de L.G.:

(1) Vd post anterior > 18 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1377: CCAÇ 2590/CCAÇ 12: Apresenta-se o 1º Cabo Operador Cripto Gabriel Gonçalves

(2) Vd. post de 25 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1462: For the exclusive use of the Portuguese Armed Forces (Afonso M.F. Sousa)

(3) O Humberto Reis vem deitar por terra a minha teoria... Afinal, o uísque era mais barato que a cerveja. E eu confio na sua memória de elefante, já aqui o disse em público por diversas vezes: (...) "Sei bem, isso não me esqueceu, que o visque era mais barato que a cervejola : 2,50 simples contra 3,00 ou 3,50, além de que dava direito, o whisky, a gelo. As cervejas nunca estavam suficientemente geladas pois os frigoríficos da messe, a petróleo, não tinham poder de resposta para a quantidade de pedidos" (...).

Vd. post de 1 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXII: Cem pesos, manga de patacão, pessoal! (2)(Luís Graça / Humberto Reis)

Guiné 63/74 - P1463: Estórias cabralianas (18): O Dia de São Mamadu (Jorge Cabral)

Um intelectual das Avenidas Novas de Lisboa no meio dos Mamadu > Jorge Cabral, ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71.

Foto : © Jorge Cabral (2006). Direitos reservados.


Do Jorge Cabral: "Amigo Luis, aqui vai estória e grande Abraço. Jorge"

Estórias cabralianas (18) > O dia de São Mamadú
por Jorge Cabral
Ex-Alf Mil Art
Pel Caç Nat 63
(Fá Mandinga e Missirá, 1969/71)


Entre os dez militares metropolitanos do Destacamento de Missirá, apenas o Alferes era do Sul e de Lisboa – um rapaz de Alvalade, passeante da Praça de Londres e frequentador do Vává. Todos os outros, furriéis, cabos, e adidos especialistas, vinham do Norte ou das Beiras.

Teve pois o Alferes de se adaptar aos Companheiros, e até de aprender certos termos, como sertã ou estrugido, bem como curiosas designações de conotação sexual.

Urbano e agnóstico, apenas costumava celebrar o São Martinho, substituindo a água-pé pelo whisky e as castanhas por cajú. Porém, no meio de transmontanos, minhotos e beirões, ciosos dos seus dias santos e das suas ancestrais tradições, o Alferes passou a alinhar em todas as comemorações, assumindo o quartel um ar de arraial e romaria. Em cortejo, corríamos as moranças pedindo O Pão por Deus ou cantando As Janeiras, perante o júbilo dos africanos, os quais aliás também estavam sempre prontos para uma boa festança.

Com tantos padroeiros, santos e santinhos, os feriados eram muitos e na reunião da manhã havia quem estranhasse ser dia de trabalho, perguntando:
- Que santo é hoje, meu Alferes?.

Penso que foi em Maio que respondi, muito sério:
- Hoje é dia de São Mamadú (2) e todos os Africanos estão dispensados!.

Face à resposta-ordem, os Brancos franziram o nariz, enquanto os Negros ruidosamente manifestavam Alegria.

Terminada a reunião sou procurado por Malan Sanhá, meu soldado mandinga, estudiosos do Corão, que pede que lhe explique quem foi São Mamadú. De improviso, misturo Santo António com Fátima, e invento a personagem. Grande santo de há muitos séculos que, sem sair da Tabanca, salvou o pai de ser fuzilado em Lisboa, tendo movido o Sol de forma a encadear os soldados.

Satisfeito com a explicação, Malan quis saber se o santo era mandinga.
- Sim - disse então, mas uma hora depois, fui obrigado a rectificar – Mãe fula e pai mandinga, pois claro. E como isso acalmei os fulas.

Dispensados os soldados africanos, organizámos os quartos de sentinela, ficando eu das 3 às 7 horas no posto norte.

Embora já tivesse passado muitas noites no mato, aquelas horas, só, diante da floresta, escutando o pulsar da natureza, transmitiram-me uma sensação de harmonia e quietude.

Paradoxalmente, ali de sentinela, tão perto do Inimigo, senti-me em Paz absoluta, numa total comunhão telúrica, que nunca mais experimentei.

Velho e cansado hoje, preciso mesmo de uma nova noite de São Mamadú…


Jorge Cabral
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Notas de L.G.:

(1) Vd. a última estória cabraliana > 10 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1419: Estórias cabralianas (17): Tirem-me daqui, quero andar de comboio (Jorge Cabral)

(2) Mamadu, em fula, é o equivalente a Mamomé, em árabe. Na CCAÇ 12, cujas praças eram do recrutamento local, de maioria fula, em cerca de 100 militares, haveria uns 15% de indivíduos com o nome Mamadu...

Vd. post de 21 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXV: Composição da CCAÇ 12, por Grupo de Combate, incluindo os soldados africanos (posto, número, nome, função e etnia)(Luís Graça)

quinta-feira, 25 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1462: For the exclusive use of the Portuguese Armed Forces (Afonso M. F. Sousa)

Guiné > Uma relíquia... Ou, como dizia eu, "da Escócia com amor, para as Forças Armadas Portuguesas"... O uísque foi a nossa marijuana, e a Guiné o nosso Vietname... Pelo menos para os milicianos, que o Zé Soldado bebia sobretudo bazucas e água de Lisboa... Devo acrescentar que nunca, em parte alguma do mundo, o uísque me soube tão bem... Com água de Perrier, viva o luxo!... O nosso pequeno luxo, lá na Guiné, longe do Vietname... (LG)

Foto: © Afonso M. F. Sousa (2007). Direitos reservados

Um recuerdo do nosso camarada Afonspo M.F. Sousa, já enviado à tertúlia com votos de bom ano de 2007... A mim espanta-me como é que ainda não foi bebida. Bravo, Afonso! É uma boa recordação para os teus netos (LG):


Uma old age, como recordação daqueles tempos !
Garrafa de uísque "para uso exclusivo das Forças Armadas Portuguesas".

Um bom ano.
Cumprimentos.
Afonso M. F. Sousa

Guiné 63/74 - P1461: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (30): Spínola, o Homem Grande de Bissau, em Missirá

Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1969 > "Ai tens a Missirá pobrezinha em que eu apareço a dar aulas aos milícias, junto do armazém de géneros, duas vezes volatilizado" (BS).

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Alouette III, a descolar do heliporto local. A chegada de um helicóptero, em geral vindo de Bissau, a um destcamento como Missirá, Fá, Nhabijões ou Rio Udunduma, era sempre interpretado pelos respectivos comandantes (alfres ou furriéis milicianos), como "lá vem f... ou canelada". Neste episódio das memórias do nosso camarada Mário Beja Santos, conta-se a visita (de surpresa) do Homem Grande de Bissau, ao destacamento de Missirá, acvompanhado do seu séquito de oficiais (incluindo o tenente-coronel Hélio Felgas, comandante do Agrupamento de Bafatá, que eu descobri há dias que ainda é vivo, com 86 anos, embora doente e acamado: O blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné deseja-lhe as melhoras e agradece à esposa, a Sra. Dona Maria Fernanda Felgas, a gentileza com que atendeu, pelo telefone, o seu editor). (LG)

Foto do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71). © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.

Mensagem de 4 de Janeiro de 2007:

Caro Luís, agradeço-te do coração teres-me enviado a sequência de todos os episódios até agora publicados. Se me permites sugestões para a respectiva ilustração, dou-te as seguintes: na ausência de uma foto ao lado do Caco Baldé, escolhe uma dele à tua vontade; tens aí a Missirá pobrezinha em que eu apareço a dar aulas aos milícias, junto do armazém de géneros, duas vezes volatilizado; e envio-te pelo correio duas magníficas capas de livros: O Barão de Branquinho da Fonseca, com ilustração por João da Câmara Leme, e O Caso das Garras de Veludo, por Erle Stanley Gardner, com ilustração do Cândido da Costa Pinto. Recebe um grande obrigado por tudo deste amigo que tanto te admira, Mário.


Continuação das memórias do Mário Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1). Texto enviado em :


A primeira visita de Spínola a Missirá

por Beja Santos

Este ano de 1969 nasceu com as turbulências da guerra, já se fogueou no rio Gambiel e junto ao Geba, enquanto apanhávamos uma vaca, estivemos à beira de um reencontro com gente de Madina. Foi aqui que aprendemos que um espirro pode deitar abaixo 5 horas de paciência e a promessa de uma captura exemplar.

Em Cancumba, a cortar cibes

Os planos para a paz também são grandes: com os furriéis Casanova e Pires estabelecemos um plano da reconstrução de dois abrigos para substituir defesas completamente podres que não aguentaram um simples sopro de morteiro. Quem trabalha nos abrigos não vai a Mato de Cão. E é assim que, naquela manhã, saímos pelas 5 horas a caminho do palmeiral de Cancumba para cortar cibes, levando motosserra, bons machados e trazendo com os guinchos dos Unimog o bendito lenho da nossa segurança.

Trata-se de um dia muito claro, não há nuvens, trabalha-se afanosamente e com resultados: dá gosto ver retalhados os troncos de palmeira, transformados em ripas, ouvir o ruído do guincho a raspar pela picada, transportando-os numa nuvem de pó. Aí pela 1 h da tarde pedi aos nossos cozinheiros, Quebá Sissé e Umaru Baldé, que fossem para a cozinha e preparassem um atum com batata cozida, recorrendo à mão-de-obra juvenil para o descasque da batata. Teria que sair para Mato de Cão pelas 16 horas, levando soldados que presentemente trabalhavam no arame farpado.


O homem grande de Bissau

Súbito, ouve-se um murmúrio de rotores que se intensifica e vemos dois pontos a avançar para nós: são helicópteros que começam a dançar à volta de Missirá até pousar na ampla clareira junto à porta de armas. Ainda estão a emitir os suspiros do repouso, quando nos pomos a caminho. O Setúbal e o Vitória regressam afogueados com os Unimog:
- Meu alferes, é o homem grande de Bissau e mais cinco oficiais!

Subimos e junto da ilustre comitiva, onde identifico o tenente-coronel Hélio Felgas e o ajudante de campo do comandante-chefe, perfilo-me face ao Brigadeiro Spínola. Este traja a farda nº2, luvas e pingalim e iniciamos um diálogo que vou procurar reconstituir.
- Porque é que anda vestido desta maneira? Tem aí homens que parece que vieram de um circo. Quem comanda deve dar o exemplo.
- Meu Comandante, quando partimos para patrulhas e operações procuro ser exigente mas nestes trabalhos concedo todas as facilidades. Acho melhor que todos se sintam bem pois Missirá é a nossa casa.
- Não teve ainda tempo para pôr mais ordem e segurança neste quartel? Acha aceitável ter tudo misturado, tropa e população?
- Meu Comandante, temos progressivamente procurado melhorar a defesa e esta madeira toda é para novos abrigos e para casas que estamos a reconstruir depois do incêndio...
- Não, estou a falar desta misturada de abrigos junto das moranças, vejo sujidade, cabaças, comida da população. Um quartel não é isto!
- Meu Comandante, chegou população civil para as tarefas agrícolas, partiram ao amanhecer, não é fácil negociar a arrumação de tudo.
- Tem plano defensivo que eu possa ver?
- Escrito, não. O régulo deu instruções à sua população, toda a gente sabe para que abrigos deve ir. Toda a minha tropa sabe em que abrigos deve combater, como se posicionar.
- Devia estar escrito. Para onde vamos para eu ver o mapa desta região?

E avançámos pela parada, o comandante-chefe fazia reparos para o estado degradado do balneário, o ar desconjuntado das edificações. Como nunca foi meu hábito invocar heranças, limitei-me a dar conta das benfeitorias introduzidas. Frente à messe estacou e não escondeu a sua ira:
- Cascas de batatas, aqui? Você não tem ninguém que responda pela limpeza do quartel?
- Meu Comandante, vivemos um período de emergência, tenho muita gente doente, os cozinheiros também trabalham nos arranjos do quartel, há menos de 1 hora que estão a cozinhar para quem está arranchado. Isto não tem importância nenhuma, daqui a pouco tudo está limpo.

Entramos na messe onde a mesa está posta, com batatas a fumegar nas travessas e uma lata de atum aberta, mais uns ovos cozidos. Abri a carta do Cuor e procurei sintetizar a situação.
- Ao menos, mantenha a mentalidade ofensiva. É por não sair do quartel que o inimigo vai ganhando terreno. Mato de Cão é indispensável. Vou procurar alguns reforços. Que armamento tem?
- Muito antigo. Recebi há pouco um morteiro 81. Sou eu que faço fogo com ele.

Fomos ver o abrigo, bem centrado na parada, a cerca de 30 metros do monumento da unidade, onde se iça a bandeira portuguesa.
- Oiça, o morteiro não tem a alça regulada. Como é que faz fogo?
- Meu Comandante, não me passa pela cabeça estar a regular o fogo a não ser a olho. Tenho dois ajudantes com braçadeiras, vejo as saídas do fogo inimigo e procuro responder.

Vejo um riso escarninho, como se eu tivesse dito uma baboseira. Na parada, olha para o chão e repara nos invólucros de cartuchos vazios e cheios. Dispara-me indignado:
- Cada cartucho custa 19 tostões. Acha bem este desperdício?
- Não acho e deve ser rectificado. Quando saímos à noite para patrulhamentos ou para Mato de Cão mando pôr a culatra à retaguarda e é assim que as coisas acontecem.
- Mande formar a tropa, quero falar com os seus soldados.

Comandante, quando é que manda gerador para Missirá ?


Forma-se um grande U, os soldados estão manifestamente indispostos com a fome, ninguém se foi fardar a rigor para receber o homem grande de Bissau. Ele faz uma arenga, vai perlengando sobre a guerra que se tem de ganhar mostrando coragem e amor à Pátria. Exorta que se trabalhe mais e que se ganhe a outra batalha, a do espírito, convencendo os terroristas a apresentarem-se. Vai martelando regularmente a frase "Vocês são a luz do mato...". Acaba o discurso de um modo sacudido e pergunta se alguém lhe quer fazer perguntas. Vejo o soldado Bacar Djassi levantar a mão.
- Que é que queres?
- Comandante fala na luz do mato. Mas nunca falou no gerador. Gerador é que dá luz. Quando traz gerador para Missirá?

Vejo tudo a andar à roda. Ainda não percebi o objectivo desta visita, já recebi uma chuva de reparos, temo que o comandante-chefe pense que preparei uma provocação. Ele, aliás, tem aquele olho percutante do monóculo que se fixa numa pergunta reprovadora:
- Ó nosso alferes, o que é isto do gerador e da luz do mato?

Explico ao ilustre visitante que o soldado em apreço está interessado em saber se podemos melhorar o sistema defensivo com melhor iluminação graças a um gerador. Aponto-lhe mesmo para os petromaxes, e os riscos que todas as noites corremos quando vamos mudar as camisas, pois ao bombeá-los somos verdadeiros alvos humanos. Mas eu já estou distante, por carácter nunca me deixei intimidar por estes tipo de interrogatórios, podia ter dito a este senhor que quer o Comandante de Bambadinca quer o de Bafatá estão inteiramente informados da extrema penúria em que vivemos, ele prossegue a arenga e eu estou alheado como se tivesse fugido para uma ilha longínqua. Vejo Spínola agastado e dando instruções para a sua partida. Não resiste à sua última intimidação:
- Não chega combater, os quartéis e as tropas têm que revelar aprumo. Vou voltar em breve. Livre-se de não melhorar a segurança, separar a tropa do que é civil. Adeus.


As ameaças de Hélio Felgas

O tenente-coronel Hélio Felgas também está profundamente irado e diz-me entredentes:
-Apresente-se em breve em Bafatá. Você desiludiu-me com esta espelunca. Dá liberdades a mais a esta gente. Podem combater muito bem mas estão muito primitivos. Ou você muda ou dou-lhe uma porrada. Não brinque com as minhas ordens.

Sem saber, e proferindo um dito de puro cinismo, terei preparado a pazada de cal para a minha punição:
-Meu Comandante, agradeço-lhe esta visita que tanto desejou, pois deixou-nos muito animados. - Não recebi troco, mas senti o faiscar dos olhos.

Entre silvos e nuvens de poeira os helicópteros partem para parte incerta. Os rostos dos dois furriéis mostram incredulidade. Eu estou cheio de fome e, sinceramente, trato este episódio reduzindo-o a uma insignificância. Décadas depois, reconstitui este episódio com o Furriel Casanova. As nossas versões coincidiam e considero certeira a sua observação:
-O seu encolher de ombros e nunca mais ter falado do assunto deu para ver que não se sentiu magoado com aquela falta de correcção. O senhor vivia em Missirá com outros objectivos e noutro plano.

Leituras de Janeiro de 1969: O Barão, de Franquinho da Fonseca

De facto, Missirá era outra coisa. Eu era um jovem que aceitara a incumbência de viver nas profundezas do mato, construindo e colaborando na melhoria das condições de vida, a despeito da falta de tudo. Estabelecer uma relação ímpar com os soldados e tinha a noção que não era possível mudar nos tempos mais próximos o viver da população civil. Naquela altura, vivia a preparação da Operação Andorra que, incompreensivelmente, não consta (tal como outros episódios) da história do BCAÇ 2852.

Dentro em breve, com a aquiescência de Bambadinca, um pelotão fotocine vai ficar dois dias em Missirá para eu percorrer Sancorlã, Salá, descer o Cuor ate Biassa, Mato Madeira e Chicri. Sem surpresa, voltaremos a ter contacto com gente de Madina, haverá derramamento de sangue dos dois lados. A escola prossegue . Em Bambadinca, na companhia de Abudu Cassamá, a quem prometi comprar uma caixa de lápis, veio a correr ter comigo o Mazaqueu, uma criança doente que tem os olhos como dois carvões incendiados. Vezes sem conta trouxe-o ao colo, ele a exibir triunfante o seu pacote de rebuçados, o pião e a ardósia adquiridas no estanco do Zé Maria.

Continuei a tratar das deprecadas no processo dos filhos da Fatu, dilacerados pela explosão de uma granada incendiária, sinistro que ocorreu em Finete. O Pires vai a Bambadinca comprar arroz, cebola, massa tomate e latas de cavala e aproveita para trazer materiais de engenharia. Não, esta visita não me intimidou, não tenho que mudar de rumo, mesmo sabendo que há normas de limpeza em que temos que ser mais rigorosos.

Ainda tenho uma hora para descansar, antes de partir para Mato de Cão. O Pires vai levar os aerogramas que escrevi na madrugada de ontem, para a Cristina, para a minha Mãe, para o Ruy Cinatti, para o Carlos Sampaio, para a Amélia Lança. O meu correio começa a ser muito doloroso, estou a ser vergastado por tensões gravíssimas no relacionamento entre a minha mãe e a Cristina, com repercussões incontroláveis. Ainda não tenho consciência da frente de guerra que se abriu e não sarará tão cedo. Vejo igualmente que estou a sobressaltar demasiado a Cristina com este diário verdadeiro onde ponho acento tónico em palavras e expressões como guerra, cimento, emboscada nocturna, operações com contacto, até no envio de mensagens de soldados onde se fala na miséria como nos dons da amizade. Por muito que me doa, esta confissão íntima terá que vos ser revelada.





O Barão, de Branquinho da Fonseca, com ilustração por João da Câmara Leme. 4ª edição (Lisboa:Portugal Editora. 1942. 4ª edição: 1962). (Colecção O Livro de Bolso, 38).





Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.

Capa do livro O Caso das Garras de Veludo, por Erle Stanley Gardner, com ilustração do Cândido da Costa Pinto. Lsiboa: Livros do Brasil. s/d. (Colecção Vampiro,3).

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.


As minhas boas leituras continuam. Interrompi, tal a minha exaustão, a leitura de O Inverno do nosso descontentamento, por John Steinbeck. Li num ápice uma novela curta, seguramente, e ainda hoje, um dos monumentos literários mais sólidos de que nos podemos orgulhar: O Barão, do Branquinho da Fonseca. É o relato posto na boca de um inspector das escolas de instrução primária que vai parar à Serra do Barroso e, numa noite perdida, é alvo do acolhimento pelo senhor Barão, um encontro inesquecível, um barão que é um bafo de vida: "Era uma figura que intimidava. Ainda novo, com pouco mais de 40 anos, tinha um aspecto brutal, os gestos lentos, como se tudo parasse à sua volta durante o tempo que fosse preciso. O ar de dono de tudo". E manda mesmo, o inspector não vai ter descanso, da noite ao alvorecer. Bebe a cântaros, mata a fome depois de muito suplicar, visita o interior vistoso de um palácio, vê o Barão com os olhos rasos de lágrimas a propósito de histórias de amor, assiste-se à mais extraordinária exibição da Tuna, atrelado pela energia hercúlea do barão, o inspector percorre estradas até se chegar ao castelo da Bela Adormecida, onde se irá depositar uma flor à amada do Barão.

Nunca se foi tão longe no lirismo, aqui pincelado de violência em meio rústico, nunca mais voltaríamos a ter um Barão na nossa literatura. Igualmente O Caso das Garras de Veludo. Para meu pesar , nos anos posteriores à guerra voltei as costas à literatura policial. Há o preconceito de que se trata um subgénero literário pouco rico a não ser em emoções. É um puro engano como toda a gente sabe. Para quem ainda hesita, sugiro o Perry Mason, a criação lendária de Erle Santley Gardner.

Em O Caso das Garras de Veludo, Mason e a sua equipa (a sua secretária Della Street, e o pragmático Paul Drake, que tudo investiga como se fosse o alter ego de Mason nessas coisas activas de descobrir dados do passado e do presente dos outros) são confrontados com uma dama cheia de enigmas e semiverdades a que Mason vai responder com a mais mirabolante acusação de homicídio à própria cliente, jogo subtil para chegar ao desmascaramento e á acusação do verdadeiro homicida. Duas leituras de Janeiro que me encheram a alma, refrigério para estes tempos duros que vivo e os que se avizinham. Depois da Operação Andorra virá o desaire da Anda Cá. Mas outras coisas irão acontecer em Fevereiro que vos quero contar. Ora oiçam.

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quarta-feira, 24 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1460: Meu Sacana de Alferes Português (Mamadu Jaquité / Beja Santos / Paulo Salgado)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Estrada Finete-Missirá > 1969 > No dia 16 de Outubro de 1969, por volta das 18h00, na zona de Canturé, entre Finete e Missirá, o Tigre de Missirá escapou por um triz de deixar os ossos na terra do Mamadu Jaquité. Eram conhecidos, entre o pessoal de Bambadinca, as ameaças de morte de que era alvo o Beja Santos por parte do PAIGC.

Na foto, o Fur Mil Reis (à esquerda) e o Alf Mil Carlão (à direita), do 2º Gr Comb da CCAÇ 12 examinam os restos da viatura (Unimog 404) onde ia o Beja Santos mais um grupo ds seus homens, tendo caído numa mina anticarro com emboscada. Felizmente, para o nosso camarada Beja Santos, o Jaquité teve que pintar a cara de branco (!), ou seja passar pela maior vergonha da sua via, que foi deixar o Beja Santos regressar a casa vivo... Enfim, uma estória digna de um grande western...

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.




1. Em 23 de Dezembro de 2006, a São, a Paula e o Paulo Salgado mandaram as boas festas ao Beja Santos:

Viva, Bom Amigo e Grande Tertuliano:

Os Salgados estão contentes por lerem as suas intervenções e por te recordares deles (já lá vão 15 anos! Entretanto, a Paula já é doutora por Oxford e está num Laboratório da Universidade de Londres - com algumas novidades interessantes em moléculas do RNA. Os filhos crescem, claro).

Um abraço de estima e com o gozo de mantermos alguma solidariedade (embora a corrupção seja grande e o POVO é que sofre - onde é que eu já vi isto?).

Conceição
Maria Paula e
Paulo Salgado

2. Resposta do Mário, em 2 de Janeiro de 2007:

Notícias do Tigre de Missirá

Aos Salgados, foi grande a alegria de vos saber em militância. Escuso de vos dizer que estou a escrever Operação Macaréu à Vista e vos lembro com saudades. Espero, aliás, quando referir o episódio da mina anti-carro em Canturé, lá para Outubro de 69, rememorar a nossa visita ao Tenente Correia no Cumeré. Poucas dores foram tão lacinantes como aquela. Logo que passem por Lisboa, pro favor avisem-me com antecedência.

Vosso, sempre com reconhecimento,
Mário Beja Santos.

3. Comentário da São e do Paulo:


Oh, Beja Santos!

A tua prosa é magnífica, os teus relatos e vivências são uma delícia. Obrigado. Mas já agora uma correcção, pois foste tu quem o disse: era o coronel Jaquité quem visitámos no Cumeré [, a leste de Bissau], e repartimos as cervejas e colas que levávamos, embebendo os abraços entre inimigos que eu vi, comovido (1).

Um abraço de estima (a Paula - lembras-te da miúda, certamente! - foi ontem para Londres onde faz investigação - e que se lembra com muito carinho das partilhas de viagens que fizemos no Fiat UNO...

Salgados

4. Mail do do Mário, em 4 de Janeiro:

Meu inesquecível camarada, quem me queria limpar o sebo era de facto o Coronel Mamadu Jaquité. Era franco comigo, deixava na picada papéis garatujados do tipo: "Meu sacana de alferes português: será a maior vergonha da minha vida se tu vieres vivo para o teu país. Estamos a libertar a nossa terra e tu não queres deixar. Prepara-te para morrer. Mas antes de morrer ficas a saber como é que me chamo. Eu sou o Mamadu Jaquité".

Ora quando andávamos à procura de Mamadu Jaquité, este, no Cumeré, veio dizer que quem estava naquela noite em Canturé era o Tenente Correia. Recordo um grandalhão de olhar límpido e dentes de aço que procurou justificar que nada tinha a ver com a mina. Como não ia ali para pedir nem dar justificações de ter sido oficial português, abracei-o na reconciliação que sempre desejei.

Tudo acabou em festa até que o Tenente Correia me disse estar a viver na mais profunda das misérias. Foi então que agarrei o arame farpado e olhei para Bissau ao fundo deixando correr na face lágrimas ferventes por um povo que não conseguiu obter os fundamentos da independência.

Desejo-te um grande trabalho em prol de um povo extremamente bom que só tem conhecido fatalidades, Mário.

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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 13 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1069: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (13): Para quando África ?

(...) "Maravilhei-me com as palavras saborosas e sentidas do Beja Santos (que revi, em Bissau, aqui em 1991), andava ele preocupado com a limpeza e higiene dos alimentos .Um dia entrou-me no gabinete:- Você é que é o Paulo Salgado?E depois fomos visitar o Coronel Jaquité... Lembras-te, Beja Santos, e do pôr-do-sol no Cumeré, depois da visitação e reencontro com esse inimigo amigo?" (...)

Guiné 63/74 - P1459: Fotos Falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (9): Operação Cabeças Rapadas (Estrada Bambadinca-Xitole, Março / Maio de 1969)

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Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339> Março / Maio de 1969 > Milhares de nativos são requisitados pela administração do concelho de Bafatá para capinar a estrada de Bambadinca - Mansambo - Xitole (cerca de 30 Km), de um lado e de outro, numa faixa (variável) de 50 a a 100 metros.

Texto e foto: © Torcato Mendonça (2007). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.

Continuação da publicação do álbum de fotografias do Torcato Mendonça , ex- Alf Mil da CART 2339 (Fá e Mansambo, 1968/70) (1)

Fotos falantes (9): Operação Cabeças Rapadas (Estrada Bambadinca- Mansambo - Xitole, Março a Maio de 1969)

por Torcato Mendonça


Operação Cabeça Rapada: Uma mente, com um QI superior, resolveu juntar talvez milhares de africanos e capinar, limpar toda a vegetação, de ambos os lados da estrada Bambadinca/Mansambo, nos locais onde o IN atacava com mais frequência. Talvez 20 a 50 metros de cada lado.

A madeira cortada ficou empilhada na zona final do corte. Resultado: fizeram abrigos para o IN e limpámos-lhe o campo de tiro.

Palavras para quê? Eram artistas portugueses.

Atenção junto a aquartelamentos e em determinadas zonas foi positivo.

Nota posterior do T.M.:

A foto e a legenda referem-se à Operação Cabeça Rapada I, iniciada em 25 de Março de 69, com duração de 2 dias e envolvendo cerca de 7000 nativos. Em 8 de Março tinha havido a Operação Lança Afiada… Era necessário dizer ao PAIGC: A população está connosco

Em 9 de Abril houve a Cabeça Rapada II, com duração de um dia. Ver escrito do Carlos Marques dos Santos (2). O itinerário escolhido foi Mansambo/Ponte dos Fulas. Em 30 de Abril e até 2 de Maio, teve lugar a Cabeça Rapada III, já de maior envergadura, quer pelas nossas forças e nativos envolvidos, duração e itinerários escolhidos – Samba Juli/Mansambo; Bambadinca, Candamã, Galomaro e Samba Cumbera. (Fonte: Historial da Cart 2339).

A população envolvida era Fulas e Mandingas. Os Balantas estiveram e muito bem, como carregadores, integrados na minha Companhia na Op Lança Afiada. Um dia contarei…Tanta estória…

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Notas de L.G.


(1) Vd. posts anteriores:

16 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1372: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (8): Mansambo: Rescaldo da batalha de 28 de Junho de 1968

19 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1295: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (7): Mariema, a minha bajuda...

8 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1257: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (6): Julho de 1969, já velhinho, destacado em Galomaro

28 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1219: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): Um médico e um amigo, o Dr. David Payne Pereira

11 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1167: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (4): Candamã, uma tabanca em autodefesa

5 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - P1152: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (3): Braimadicô, o prisioneiro que veio do céu

28 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1124: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (2): A vida boa de Bambadinca, no tempo do Pimentel Bastos

26 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1116: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A guerra acabou ?


(2) Vd. post de 22 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXIX: Estrada Mansambo-Bambadinca (Op Cabeças Rapadas, 1969) (Carlos Marques dos Santos)

(...) "Cabeças Rapadas

"Prenúncio da abertura definitiva da estrada Bambadinca/ Xitole, intransitável desde Novembro de 1968 a 4 de Agosto de 1969 (Op Belo Dia).

"Haverá concerteza alguns dos tertulianos que estiveram envolvidos nesta série de operações (?). Então relembrem:

"Nós, CART 2339, especialmente na segundo Operação [Op Cabeça Rapada II], vibrámos com o movimento. Espantoso. Caldeirões de arroz (meio bidão de gasóleo, em fogueiras espalhadas pelo aquartelamento, movimento de viaturas e homens, um barulho ensurdecedor, homens deitados por tudo o que era sítio, em suma uma anarquia bem controlada). (...) "Op Cabeça Rapada II

"Em 9 de Abril, às 5.40h, inicia-se com a duração de 3 dias a Op Cabeça Rapada II, no itinerário Mansambo/ Ponte dos Fulas.


(...) "Os" (...) trabalhos envolveram 2150 trabalhadores nativos, que dormiram e comeram em Mansambo, tendo a segurança ficado montada de noite no itinerário.

Guiné 63/74 - P1458: Bombolom XV (Paulo Salgado): Contos mandingas, de Manuel Belchior, ou a sabedoria dos guineenses


Guiné > Região do Oio > Farim > Olossato > O Alferes miliciano Salgado, em cima do capô dum GMC, e devidamente assinalado por um círculo a vermelho. Fazia parte da CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72), e era seu comandante o capitão de cavalaria Mário Tomé. O Olossato fazia parte do chão mandinga.

Foto: © Paulo Salgado (2005). Direitos reservados.


Mensagem do Paulo Salgado (1), ex-alf mil Alferes miliciano da CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72), que teve como comandante o capitão de cavalaria Mário Tomé, hoje coronel na reforma (2)


Meu Caro Luís Graça,
Camarada e Tertuliano:

Não é demasiado: os nossos contributos - de todos os tertulianos, com muitos e diferentes pontos de vista - não existiriam, não cresceriam, não ganhariam voz e dimensão, não fora o teu trabalho, a tua paciência, a tua sagacidade, o teu sentido de independência face às saborosas e dignas diferenças de ideias sobre a guerra (ultimamente tem sido produzida matéria de discussão, onde eu pretendo dar a minha achega, como já fiz anteriormente, pelo menos uma vez).

Quero - uma vez mais (põe isto blogue, por favor) - dar-te um abraço de muita consideração.

Comecei assim este meu contributo - que, julgo ter esse direito, deverá a continuar-se a chamar bombolom - para, uma vez mais, e da minha parte dar destaque a aspectos que, tendo muito que ver connosco (ex-militares na Guiné), se afastam, a maior parte das vezes, do que foi a guerra, como a vivemos, como a julgámos e julgamos, hoje.

O meu contributo de hoje é trazer uma história contada pelo historiador e cientista (por que não?!) Manuel Belchior, que escreveu várias obras sobre África e, em especial, sobre a Província da Guiné (era assim, lembrais-vos todos).

A sentença da lebre ajuda-nos a compreender, através da intervenção de animais e humanos (em comunhão de linguagem e de partilha de dúvidas) como os homens se comportam, como existem, em toda a parte, em qualquer latitude ou longitude, os ladinos, os malteses, os indiferentes, os acomodados, os sacrificados.

Sendo possível publicá-la, seria interessante, pois serviria para nós meditarmos um pouco sobre a natureza humana, e, em especial, relembrarmos como é grande a alma dos guineenses, ou dos alentejanos, ou dos transmontanos (que sei eu?) na sua sabedoria popular.


Paulo Salgado

PS - Voltaremos a contos e estórias (de guerra, serão algumas)

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A sentença da Lebre

In: Contos Mandingas, de Manuel Belchior (1971) (3)
(com a devida vénia, ao autor e à editora).


Certo crocodilo abandonou as margens do rio em que habitava e resolveu partir em guerra contra os animais da floresta. Porém, bem depressa viu quão infeliz havia sido a sua decisão e quão pouco preparado estava para viver e lutar num meio que não era o seu, pois somente por milagre escapou de ser reduzido a cinzas por uma grande queimada e, ainda meio tonto e chamuscado, estava a ser atacado por um bando de jagudis (*) que não lhe poupavam as sua valentes bicadas, quando foi salvo por um moço pastor ao qual angustiosamente pediu:
- Por quem és, tira-me deste lugar onde a morte me espreita e leva-me para o rio de onde nunca devia ter saído. Anda, faz-me esse favor, que te serei eternamente grato.
- De boa vontade o faria – disse-lhe o moço – se isso não fosse tão perigoso para mim. Agora que te vês em perigo, pedes com muito bom modo e tudo prometes; mas que sucederá, quando chegados ao rio, eu te soltar, ficando, assim, completamente, à tua mercê?

O grande lagarto lamuriou, afirmando que isso que isso era impossível, que não tinha tanta maldade e ingratidão, e de tal maneira o medo da morte o tornou eloquente e o fez parecer sincero, que o rapaz, comovido, se deixou convencer. Por sugestão do próprio crocodilo, o pastor amarrou-lhe as mandíbulas com uma corda feita de casca de árvore, e ligando-lhe solidamente o corpo a uns paus, pô-lo à cabeça e assim o transportou.

Quando atingiram as margens do rio e o rapaz se preparava para o depositar no solo, o crocodilo pediu-lhe que entrasse na água porque o seu estado de fraqueza era tal, que não poderia, por si só, transportar-se até lá. O moço concordou e, ao dar-lhe a água pelos joelhos, quis parar, e novamente o crocodilo lhe pediu que fosse um pouco mais longe até a água dar-lhe pelas coxas e também mais uma vez o pastor lhe fez a vontade.

Quando, por fim foi descarregado e se viu completamente solto, com as mandíbulas desamarradas e a meio do rio onde as vantagens eram todas suas, o jacaré agradeceu efusivamente ao rapaz o enorme favor que lhe prestara; mas disse-lhe que, apesar de tudo quanto lhe havia prometido, ia comê-lo porque devorar as pessoas e animais que estavam ao seu alcance era uma lei natural a que não podia faltar sem incorrer no desagrado dos seus antepassados que nunca tinham feito outra coisa. Decerto dissera que pouparia o seu salvador – mas que promessas não se fazem quando se está à beira da morte?

Bem argumentou o pobre pastor, falando de injustiça, mas o crocodilo não saía da sua e, certo que todos compreenderiam que o levava a obedecer a uma lei fatal que não lhe deixava margens para sentimentalismos, aceitou a proposta do rapaz para que fossem ouvidos os três primeiros seres que chegassem ao rio.
- Se todos forem da tua opinião – dizia o pastor – então terei de confessar que fui um parvo e a culpa de ser comido é inteiramente minha.

O primeiro animal que veio beber água ao rio foi um cavalo. Ouviu atentamente o que lhe disseram as duas partes em litígio, e por fim, sentenciou:
- O rapaz não tem razão; não há promessa que valha quando ela vem contra um costume que sempre existiu e há-de existir. É da natureza do crocodilo comer os animais que puder. E dito isto, foi muito tranquilamente pastar.

A seguir apareceu uma velha que, depois de informada do que se passara, disse:
- Como ousas tu, rapaz, falar de injustiça e de ingratidão? Pois não é verdade que todos os homens são uns ingratos? Olha para mim e vê como estou mal vestida e maltratada. No entanto, já fui nova e bonita e o meu marido prometeu que gostaria sempre de mim. Mas agora, que tomou novas mulheres, não me liga a menor importância (**). Se tu chegares a casar, serás como ele. Portanto, como os homens não dão mais valor às promessas que fazem do que o crocodilo à sua, a minha opinião é que deves ser comido.

Finalmente surgiu a lebre. O rapaz, amargurado pelos pareceres anteriores, quando acabou de expor a questão, disse:
- Tu és o último dos três seres que consultámos e também a minha última esperança. Os outros dois deram razão ao crocodilo e disseram que aquilo que eu penso ser uma ingratidão é coisa perfeitamente natural. Diz-nos a tua opinião.

A lebre ouviu muito bem aquilo que ambos disseram, mas afirmou que nada entendera porque o seu ouvido já não era bom dada a sua avançada idade. Deste modo, se quisessem que ela pudessem julgar com segurança, tornava-se necessário virem até à margem. Assim fizeram, e a lebre, depois de ouvir novamente a exposição do caso, e antes de entrar no fundo da questão, recusou-se a acreditar que o rapaz tivesse podido transportar um crocodilo tão grande como aquele desde a floresta até ao rio. A menos que visse com os seus próprios olhos como o caso tinha sido possível, ela pensaria que estavam a rir-se de si. Se é facto que dava maçada fazerem novamente a caminhada até à floresta, ela contentava-se ver como o moço pudera pôr o crocodilo à cabeça sem que ele escorregasse.

Então, tanto o jacaré como o rapaz se prestaram a uma pequena demonstração em que o primeiro foi novamente amarrado e posto nas melhores condições de ser transportado.
Quando viu o anfíbio bem ligado e à cabeça do moço pastor, a lebre perguntou a este:
- Há algum tabu a respeito da carne de crocodilo? (***) Vocês gostam dela e costumam comê-la?
- Não existe nenhum tabu a tal respeito e todos nós gostamos dela.
- Então estou a ver que também para ti é uma lei natural comer o jacaré. Desobedeceste a ela por bondade quando na floresta o tiveste à tua mercê, e ainda por cima o salvaste. Se agora que ouviste as razões desse velhaco, que aumenta a sua ingratidão fazendo-a passar por coisa natural, ainda o poupares, deixarás de ser bom para seres simplesmente um imbecil. Já que ele voltoua estar em teu poder, leva-o para casa e come-o.

__________

(*) Ave de rapina muito conhecida em toda a Guiné, aparecendo nas povoações onde é poupada e até protegida porque faz desaparecer a carne dos animais em decomposição – aqui para nós, Lucinda: vi com os meus olhos, os jagudis comerem as placentas lançadas ao terreiro descampado do Hospital de Bissau!!! – não se admire.

(**) A mulher deste conto apresenta aqui uma queixa muito vulgar entre as esposas dos polígamos (os muçulmanos, os animistas, são polígamos.

(***) Alguns clãs não podem, por motivos religiosos, matar nem comer, o jacaré. Daí esta pergunta da lebre.

NOTA: A lebre representa, em muitas partes da África ocidental, a esperteza, a inteligência, a malícia salomónica, de resolver os assuntos.


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Notas de L.G.:


(1) Vd. último post do Paulo Salgado: 11 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1421: Crónicas de Bissau (o 'bombolom' do Paulo Salgado) (14): Um final com homenagem a um homem grande, Fernando Sani

(2) Sobre o Mário Tomé, vd. o seguinte post:


UDP > Textos > Guerra Colonial > Trocando Umas Ideias Sobre a Guerra Colonial, Mário Tomé, 29 de Setembro de 2003 (artigo publicado em Público de 29 de Setembro de 2003)



(...) "Grosso modo, Portugal, com 10 milhões de habitantes, fez um esforço de guerra em África cerca de nove vezes superior ao dos EUA, no Vietname, com os seus 250 milhões de habitantes. Portugal mobilizou para a guerra colonial mais de 800 mil jovens, teve 8 mil mortos, 112.205 feridos e doentes, 4 mil deficientes físicos e estima-se que cerca de 100 mil doentes de stress de guerra. 40% do OE destinava-se á Defesa. A isto há que acrescentar a sangria de milhão e meio de emigrantes entre 60 e 74.


"A Guiné estava perdida, reconhece o nosso historiador, ao considerá-la um mini-Vietname" (...)

(3) Manuel Belchior: Contos mandingas. Porto : Portucalense Editora. 1971. 336 pp. Vd. sítio Memórias de África. (Colecção Ultramar).

terça-feira, 23 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1457: Tabanca Grande (4): Mário Silva Bravo, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 6, Bedanda (1971/72)


O Mário Bravo, ontem (Alf Mil Médico, CCAÇ 6, Bedanda, 1971/72) e hoje (médico ortopedista, Porto).

Fotos: © Mário Bravo (2007). Direitos reservados


Mensagem de Mário Bravo:


Meu Caro Luís Graça:

Por motivo ocasional, tive conhecimento da existência deste fabuloso movimento de memórias das gentes que estiveram na Guiné.

Fui médico (alferes miliciano) na CCAÇ 6, em Bedanda, desde finais de 1971 até aos primeiros meses de 1972.

Actualmente, com 60 anos de idade, sou ortopedista na cidade do Porto. Ainda não estou reformado, mas tenho vontade de ocupar algum do meu tempo livre a relembrar velhos tempos.

Envio duas imagens (fotos), como se pretende e aguardo as vossas instruções para o envio de outras fotos que tenho e que se referem a Bedanda, isto é, a companheiros dessa época. Por exemplo, tenho fotos do Cap Ayala Botto que, segundo li, é Coronel na reserva.

Cumprimenta

Mário Bravo


2. Comentário de L.G.:

Mário: Sê bem vindo à maior caserna virtual de ex-combatentes da guerra da Guiné. As regras são simples, estão publicadas. Os membros da tertúlia estão em contacto entre si através do endereço de e-mail. Não se conhecem, a maior parte deles, mas tratam-se por tu. É um preivilégio reservado a camaradas de armas e sobretudo a velhos combatentes da guerra da Guiné...

O envio de imagens e outros documenos para eventual publicação no blogue, são feitos através de mim, que funciona como editor. Até à data temos vários enfermeiros mas apenas um médico (Vitor Junqueira). Um ortopedista, como tu,vem mesmo a calhar, agora que a rapaziada já há muito que entrou nos entas...

Abram alas, amigos e camaradas da Guiné, para a entrada de mais um tertuliano. L.G.

Guiné 63/74 - P1456: Gabu: Fotos com legendas (António Pinto, BCAÇ 506 e 512) (1): Pirada e Piche






Fotos e legendas: © António Pinto (2007). Direitos reservados.


Mensagem datada de 5 de Janeiro do corrente, enviada pelo António Pinto, ex-alf mil dos BCAÇ 506 e 512 (Zona Leste, 1963/1965):

Caro Luís Graça

Cada dia que passa mais eu recuo no tempo, graças ao que vou lendo de tantos Camaradas que queimaram parte da sua juventude em terras da Guiné.

É de louvar a tua iniciativa, que descobri tarde demais, mas que, julgo, ainda vou a tempo de contribuir para que os nossos vindouros se apercebam do que foram aqueles anos em que nos obrigaram a fazer tanta coisa, quer contra os nossos princípios, quer contra as nossas convicções.

Sem querer ser fastidioso e inoportuno vou tentar enviar umas fotos, que julgava já ter enviado, mas não tenho a certeza se foram recebidas. Mando-as somente porque numa das conversas que tivemos, falei no Luís Góis, no meu grande Amigo Gramunha Marques e na empanagem da granada de morteiro que me ia levando desta vida.

Vou legendá-las aqui, pois apesar de ter escrito abaixo das fotos, julgo não se perceber:

-1ª, do lado esquerdo > Pirada > Janeiro de 1964 > Parte do Destacamento de Pirada. Era um celeiro. Pode ver-se o refeitório.

-2ª, do lado direito > Pirada > Fevereiro de 1964 > Construção de um dos abrigos

-3ª , do lado esquerdo > Pirada > Março de 1964 > Obras de ampliação do Quartel e continuação dum abrigo com troncos de cibe

4ª, do lado direito > Pirada > Janeiro de 1965 > Em primeiro plano o Martinho Gramunha Marques, de que te falei, eu e o Sarg Piedade.

5ª, do lado esquerdo > Piche > Abril de 1964 > Comigo um comerciante de Pirada, chamado Mário Soares, depois o conhecido Dr Luís Góis e o Alf Spencer .

6ª, do lado direito > Foto que tirei há pouco tempo da empanagem da granada de morteiro que Maio de 1965, em Beli, quase me levava; caíu a cerca de um metro de mim.


Um grande abraço e desculpa se me estou a repetir.

Pinto

__________

Nota de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:

17 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1437: Estórias de Madina do Boé (António Pinto) (1): a morte horrível do Gramunha Marques e o ataque a Beli em que fui ferido

3 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1397: Ataque ao destacamento de Beli em Maio de 1965 (António Pinto, BCAÇ 512)

20 de Dezembro de 2006> Guiné 63/74 - P1384: Com o Alferes Comando Saraiva e com o médico e cantor Luiz Goes em Madina do Boé (António de Figueiredo Pinto)

18 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1378: António de Figueiredo Pinto, Alf Mil do BCAÇ 506: um veterano de Madina do Boé e de Beli

(...) " Alguns dados sobre a minha estadia na Guiné:

(i) Embarquei em Novembro de 1963, em rendição individual. Fui substituir um colega que se pirou para o Senegal;

(ii) Estive algum tempo em Nova Lamego, tendo sido, em seguida destacado para Pirada onde reconstrui o aquartelamento.

(iii) Estive algum tempo em Geba, zona na altura um bocado perigosa, mas sem problemas.

(iv) Vim de férias em Outubro de 1964 (...);

(v) No regresso, fui destacado para Madina do Boé, tendo sido o primeiro pelotão a chegar lá onde montei o primeiro aquartelamento.

(vi) Depois fui para Beli , onde ao fim de algum tempo, e depois também de ter sido o primeiro pelotão a lá chegar e ter montado o destacamento, em Maio de 65, fomos atacados tendo aí sido ferido (mais seis companheiros) mas, felizmente ninguém morreu. Os meus ferimentos foram motivados pelo rebentamento de uma granada de morteiro, que me encheu o corpo de pequenos estilhaços, mas depois de um mês no hospital em Bissau, fiquei OK.

(vii) Depois de sair do hospital, mandaram-me para Bolama, dar instrução onde terminei a comissão.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1455: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (7): O Sr. Brandão, de Ganjola, aliás, de Arouca, e a Sra. Sexta-Feira

Guiné > Região de Tombali > Catió > Ganjola > José António Canoa Nogueira, Soldado nº 2955/63, SPM 2058, natural da Lourinhã, meu primo, morreu em 30 de Janeiro de 1965 no destacamento de Ganjola, aqui evocado pelo Mendes Gomes... Recorte de notícia publicada no quinzenário regionalista Alvorada, com sede na Lourinhã, na sua edição de 23 de Maio de 1965 (1).

Foto: © Luís Graça (2005). Direitos reservados.



VII Parte das memórias de Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins (Como, Cachil, Catió, 1964/66) (2) .

2.11. O Sete e Meio


Sete e Meio era o nome dado à casa que albergava os alferes da companhia de intervenção e mais alguns dos felizardos, residentes com o comando do batalhão, como o Teixeira, que era responsável pelas transmissões e outros mais.

Era a casa do enfermeiro de antes da guerra. Como aconteceu a tantos outros, foi obrigado a cedê-la, de aquartelamento, aos militares.

Uma pequena moradia, em cimento armado e tijolo, como as que se encontravam em qualquer parte da metrópole, ali, era um palacete de luxo, aos olhos dos indígenas das rudes tabancas de palha. Uma sala comum, quatro quartos e uma casa de banho, dava a sensação de estadia romanesca, para um aventureiro que viesse fazer uma caçada nas cerradas matas tropicais, ali ao pé.

Era-nos fácil imaginar, com sadia cobiça, a deliciosa época da vida colonial, de antes da guerra, para os felizardos, a quem a sorte, em boa hora, escorraçara, com a pena de desterro, por feitos heterodoxos à moral reinante das gentes da metrópole.

Era o caso do Sr. Brandão, de Ganjola (2), a quinze km de Catió, um injustiçado lavrador das terras de Arouca. Ali vivia há dezenas de anos, por assassínio, cometido numa das romarias da Senhora da Mó. No meio dos folguedos e romarias, por vezes, acertavam-se contas atrasadas, duma qualquer hora de desavença, mesmo no fim da missa domingueira.

O Sr. Brandão, agora, era um velhote, rodeado de filhos e netos que foi gerando, ao sabor das madrugadas de batuque e da liberdade de escolha, sem custos, entre as mais viçosas bajudas da tabanca…

Uma negra, velha, mas de rosto e olhar, ainda iluminados por olhos meigos, como a sua voz, doce, era a predilecta, de sempre. Seu nome, Sexta-Feira. Soava bem aos ouvidos dos falares balantas, fulas ou mandingas. Era ela quem lhe tratava das tarefas caseiras. Dedicada. Sem nada cobrar, para além do breve e malicioso sorriso do velho Brandão, quando lhe despontava o desejo do seu corpo, negro, sem idade. Podia despontar a qualquer hora. Sexta-Feira ali estava, sempre dócil e submissa.

Uma loja farta de tudo o que chegava na carreira regular das barcaças de Bissau. Os lindos panos de cor garrida e os gordos cordões reluzentes, de fantasia, com que as negras tanto gostavam de se enfeitar.

O vinho tinto da metrópole era o regalo dos ociosos negros, de rostos engelhados e curtidos pelo álcool, pela tarde fora, a par da cachaça de coco.O saboroso bacalhau, curado nas míticas secas da Figueira da Foz e Aveiro, tão apreciado e toda a sorte de ferragens eram tudo o que aguçava o desejo daquelas gentes, para a troca do arroz, milho, mandioca, galinhas e demais produtos que, em cortejo lento e constante, pelas picadas entre as frondosas matas, traziam em açafates, à cabeça.O preço era feito, à medida da vontade gulosa do velho, matreiro e bem afortunado, Brandão.

Dizia-se que tinha metade das terras de Arouca… não fosse o diabo tecê-las. Ali, vivia, pacatamente, como se não houvesse guerra, numa típica mansão colonial, de um piso sobreelevado, com um varandim a toda a volta, com as dependências necessárias à farta panóplia de utensílios, alfaias e mercadoria.

Ficava mesmo ao pé de um afluente do Geba (3), rico de peixe, onde, infalivelmente, chegavam, em cada dia, as marés vivas capazes de lhe movimentar, de graça, os prodigiosos moinhos com que moía os cereais abundantes.

Conhecia toda a gente, naquelas paragens, incluindo os turras, a quem pagava, com simpatia, os devidos tributos de guerra…quando não era o fornecimento das informações sobre os últimos planos de operações que, por artes obscuras, ali chegavam aos ouvidos bem afilados.

Aquele sítio era estratégico e crucial. Por isso, um pelotão reforçado com uma metralhadora pesada, destacado de Catió, disputava-lhe os largos aposentos, como guarda avançada e tampão às possíveis arremetidas que os turras poderiam desfechar sobre Catió.

Coube-me render o pelotão que ali estava, mal chegámos da ilha do Como. Apesar de constar que nunca tinha havido qualquer ataque, não deixou de nos causar calafrios...

A minha primeira medida foi reforçar a protecção com uma larga paliçada de bidões cheios de terra, a toda a volta. Soubemos depois, que o comandante de batalhão apreciou a medida com um largo elogio à hora do almoço, mal recebeu o meu telex cifrado.

Foi um mês regalado que ali passámos, em gostosa autonomia.Quando chegou o dia do pré, atrevi-me a fazer o pagamento. Um desastre que me serviu de lição para toda a vida: no final, quase fiquei só com um tostão do meu soldo, magro!

As ricas banhocas que tomávamos no largo açude que o rio formava, na maré cheia de cada dia, depois de lançarmos umas granadas defensivas, sempre eficazes, para afugentar a gula dos crocodilos abundantes, foram um dos nossos muitos lenitivos inesquecíveis…

Quando soou a hora de regressar à base, ninguém se importaria de ali ficar até final da comissão. Apenas a morte de uma gazela bébé, que eu não soube criar, me toldou de tristeza.

De volta ao Sete e Meio, não tivemos tempo de nos refazermos daquela bonança paradisíaca. Uma operação de envergadura estava programada para as matas densas do Cantanhês.

_______

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 8 de Setembro 2005 > Guiné 63/74 - CLXXXI: Antologia (18): Um domingo no mato, em Ganjola (Luís Graça / José António Canoa Nogueira)

(...) "Já aqui referi o nome do lourinhanense e meu parente José António Canoa Nogueira, que morreu na Guiné em 1965: vd. post de 24 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXV: Homenagem aos mortos da minha terra (Lourinhã, 2005). E na altura recordei a notícia do seu funeral que eu próprio escrevi, na minha qualidade de responsável da redacção do quinzenário regionalista Alvorada. Tinha eu então 18 anos. Há dias repesquei essa notícia e dei conta que o jornal tinha publicado também a última ou uma das últimas cartas que o Nogueira terá escrito, antes de morrer em combate no sul da Guiné. Ele estava destacado em Ganjolá" (...).

(2) Vd. posts anteriores:
8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1411: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (6): Por fim, o capitão...definitivo

11 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1359: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (5): Baptismo de fogo a 12 km de Cufar

1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1330: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (4): Bissau-Bolama-Como, dois dias de viagem em LDG
20 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1297: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (3): Do navio Timor ao Quartel de Santa Luzia
2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo
20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo

(3) Presumo que seja lapso do autor. O Rio Geba (ou Xaianga), o maior da Guiné-Bissau, fica na zona leste, e passa por sítios de que eu e outros camaradas desta tertúlia guardam muitas memórias, ora tristes ora alegres (Sonaco, Contuboel, Bafatá, Geba, Fá, Missirá, Mato Cão, Finete, Bambadinca, Nhabijões, Xime, Enxalé, Porto Gole, Bissau...).

Guiné 63/74 - P1454: O cinema e a ciência interessam-se pelo nosso blogue (Luís Graça / Daniel Gomes / Luís Zhang)

1. Mensagem de Daniel Gomes, com data de 10 de Janeiro corrente:

Sr. Luis Graça,

Eu sou um aluno de Mestrado da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e encontro-me a desenvolver uma tese cujo tema é: "Contra-Guerrilha na Guiné: evolução estratégica e militar".

Devido á escassez, especialmente de bibliografia e de documentação, ao nível de mapas e de imagens, estou a contactá-lo no sentido de lhe pedir autorização para usar alguns dos mapas que disponibiliza no seu blog, bem como de algumas imagens, as quais eu especificarei caso me conceda essa mesma autorização.

Sendo um trabalho que penso ser dos primeiros científicos sobre a guerra na Guiné, se se encontrar em posse de material adicional que me possa ajudar, ficaria muito grato pela sua contribuição.

Desde já os meus agradecimentos e cumprimentos,

Daniel Gomes

Resposta do editor do blogue:

Daniel: Tem a minha autorização, desde que cite os autores e o blogue. Gostaria depois de ter cópia do trabalho. Fica desde já convidado para publicar um resumo no nosso blogue. Bom trabalho. Luís Graça

PS – Contacte o historiador luso-guineense Leopoldo Amado, que está a trabalhar para a AD – Acção para o Desenvolvimento, uma ONG com sede em Bissau. Está neste momento em Guileje, Guiné-Bissau. Deverá voltar a Portugal em Março próximo para defender a sua tese de doutoramento pela Universidade de Lisboa.

2. Mensagem de Luis Zhang, datada de 16 de Janeiro corrente:

Caro Professor Luís,

Um colega meu recomendou-me o seu blogue e fiquei bastante interessado em contactá-lo porque estou a fazer uma investigação para um argumento. Sou um estudante da Escola Superior de Teatro e Cinema e juntamente com alguns colegas decidimos retratar um episódio da guerra colonial como o nosso próximo projecto visto que estamos francamente cansados de aturar as tolices artísticas e pseudo-intelectuais filmadas no nosso curso e que passam ao lado da maior parte do público.

Mas depois de algumas tardes passadas na biblioteca a olhar para factos oficiais e estatísticas em livros de História, percebemos que precisavamos mesmo de testemunhos pessoais para escrever algo de concreto, e portanto eu queria lhe perguntar se podia fazer-nos o grande favor de arranjar uma hora para conversarmos ou então indicar algum ex-combatente que esteja disposto a partilhar histórias interessantes com jovens ignorantes como nós.

Agradecemos imenso o seu esforço.

Com os melhores cumprimentos,

Luís Zhang

Comentário de L.G.:

Já falámos ao telefone a este respeito e já lhe dei algumas pistas. Há excelentes estórias publicadas no nosso blogue. No espaço de ano e meio, já foram publicados quase 1500 posts. Há estórias, de carne e osso, que poderiam dar um grande filme sobre a guerra, em geral, e em guerra colonial na Guiné, em particular. Sobre a condição humana. Sobre a amizade, a camaradagem, a solidariedade, a compaixão. Sobre o melhor e o pior dos seres humanos numa situação-limite como é a guerra. Você terá é que ler o nosso blogue com atenção. E depois pedir a respectiva autorização ao autor do texto que seleccionar.

Correndo o risco de não ser imparcial - como me compete, enquanto editor do blogue -, já dei-lhe algumas ideias, que podem ser desenvolvidas a partir de duas estórias (verídicas) que eu ponho no top ten deste blogue... Foram escritas pelos meus camaradas Mário Dias e A. Marques Lopes. Pode entrar em contacto com eles (através do seu e-mail) mas primeiro leia os respectivos posts:


1 Fevereiro 2006 > Guiné 63/74 - CDXCI: Domingos Ramos, meu camarada e amigo (Mário Dias)

2 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCIII: Domingos Ramos e Mário Dias, a bandeira da amizade (Luís Graça / Mário Dias)

2 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCIV: O segredo do Mário Dias, ex-sargento comando

29 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXX: A professora de Samba Culo (A. Marques Lopes)

7 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLIX: Samba Culo II (A. Marques Lopes)

Também tem no blogue Tantas Vidas, do nosso camarada Virgínio Briote, um riquíssimo manancial.

Dê notícias.

Guiné 63/74 - P1453: Ninguém fica para trás: uma nobre missão do nosso camarada ex-paraquedista Manuel Rebocho

Brasão da Associação de Veteranos de Guerra do Centro (AVGCentro). Tem a sua sede em Cantanhede.

Foto: AVGCentro (2007). (Com a devida vénia...).


Notícia, assinada por Nelson Morais, publicada no JN- Jornal de Notícias, de 22 de Janeiro de 2007, e que me chegou por mão do António Santos, com o seguinte coemntário:

Bom dia, Amigo Luís
Junto link de uma notícia que nos interessa. O Manuel Rebocho cumpriu o que disse.

Um alfa Bravo
Santos
SPM 2558

Transcreve-se, com a devida vénia, a notícia do JN:

A última missão na Guiné

Pára-quedistas lembram máxima militar "ninguém fica para trás" para justificar a tentativa de resgatarem os corpos de três companheiros na Guiné Nelson Morais. Os corpos de José Lourenço, António Vitoriano e Manuel Peixoto ainda foram carregados pelos companheiros da Companhia de Caçadores Pára-Quedistas nº121 que sobreviveram à violenta emboscada da guerrilha do PAIGC, a 23 de Maio de 1973, no Norte da Guiné-Bissau, junto ao Senegal (1).

Mas o clima quente e húmido produzia efeitos infernais. Os cadáveres entraram rapidamente em decomposição e foram enterrados, numa cova aberta à pressa, no destacamento militar português em Guidaje. Antes e depois da declaração de independência da Guiné, verificar-se-iam alguns períodos de acalmia no território, mas os restos mortais dos três jovens nunca foram trasladados (2).

Na última sexta-feira, quase 34 anos depois dos enterramentos, um ex-sargento-mor de outra companhia de pára-quedistas, Manuel Rebocho, e o seu antigo comandante, o general na reserva Norberto Bernardes, regressaram à Guiné, para a derradeira missão trazer os companheiros para casa. Lourenço para Cantanhede, Peixoto para Vila do Conde, Vitoriano para Castro Verde.

"É uma obrigação moral", justifica Rebocho, que descobriu que as trasladações não haviam tido lugar quando, em 2006, fazia uma tese de doutoramento sobre "Sociologia da Paz e dos Conflitos" (3).

Liga tem outra prioridade

"Parece ter descoberto a pólvora", critica o presidente da Liga dos Combatentes (LC), Chito Rodrigues, irritado com a iniciativa de Rebocho, coordenada pela Associação de Veteranos de Guerra do Centro. Rodrigues, general do Exército na reserva, sublinha que é a LC que detém a "missão institucional" de resolver o problema. Não só daqueles três militares, mas de um total de quatro mil sepultados em quase 400 lugares de Angola, Moçambique e Guiné.

Desses quatro mil, apenas 1250 foram recrutados no território a que hoje se limita Portugal, mas Rodrigues diz que o Estado também é responsável pelos 2750 militares que, apesar de recrutados nas ex-colónias, morreram em combate com a mesma farda. E a prioridade da LC não é trasladar aqueles 1250 corpos para Portugal, mas dignificar meia dúzia de cemitérios, nas antigas províncias ultramarinas, onde possa concentrar os quatro mil. De resto, nota que, mesmo em Guidaje, estão sepultados mais cinco soldados do Exército recrutados na metrópole e 23 do recrutamento local.

Admitindo trazer também os corpos dos militares do Exército, se surgir autorização oficial, Rebocho lembra que já está mandatado pelas famílias dos pára-quedistas para os resgatar e invoca, sobretudo, espírito de corpo. "Os pára-quedistas têm uma máxima que diz que 'ninguém fica para trás' e, neste caso, ficaram", lamenta, notando que os Fuzileiros e os Comandos não deixaram nenhum homem na Guiné.

Além disso, os três pára-quedistas não foram enterrados num cemitério, mas em "campo aberto", assinala Rebocho, acrescentando outro argumento: "Por determinação do poder político, os militares mortos até 68 ficavam lá, a não ser que a família pagasse o transporte; a partir daí, passaram a vir; ora, estes meus camaradas ficaram lá não por determinação do poder político, mas do poder militar".

Estado ingrato

A viagem de uma semana que os pára-quedistas iniciaram, sexta-feira, e a que farão em Fevereiro, com uma equipa de cientistas, não é apoiada pela LC. "A Liga nunca disse que não à operação, mas não dá um tostão", diz Rebocho. Por estes dias, já com autorizações das autoridades locais, o ex-sargento e o general Bernardes farão o reconhecimento da zona onde estão as sepulturas, segundo o mapa dos enterramentos.

A 16 de Fevereiro, voltarão à Guiné, com arqueólogos e antropólogos e com a esperança de encontrar chapas identificativas dos soldados junto dos ossos. De qualquer modo, a equipa da segunda viagem transportará as ossadas para Bissau, em urnas, e só trará amostras para Portugal. No Instituto Nacional de Medicina Legal, serão sujeitas a testes de ADN e, confirmando-se a identidade dos soldados, Bissau enviará as urnas.

A irmã do soldado Lourenço parece ainda duvidar de tudo isto. "A gente quer que seja mesmo verdade", desabafa Maria Lourenço, muito mais convicta da "ingratidão" do Estado português. "Se o levou para lá, deveria tê-lo trazido! Mas nem agora ajuda... A 28 de Maio de 73, recebemos a notícia da morte do meu irmão, e disseram-nos que não valia a pena esperar, que ele já estava enterrado. Só quando fizesse sete anos é que mandavam os ossos... "

Nelson Morais
__________

Notas de L.G.:

(19 vd. posts de:

25 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto

9 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1260: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (2): o dia mais triste da minha vida

(2) Vd. post de 21 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1099: O cemitério militar de Guidaje (Manuel Rebocho, paraquedista)