quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Guiné 63/74 - P2366: O meu Natal no Mato (6): Peluda, 1969: a Fátria, Manel (Torcato Mendonça)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > O Alf Mil Torcato José Mendonça (o segundo da esquerda), sentado, junto a malta do seu Grupo de Combate, no exterior do respectivo abrigo. Foi em aquartelamentos, como este, forticados, com abrigos subterrâneos, cercados de mato por todos os lados, e pelo IN (ou o seu fantasma), que os tugas aprenderam o sentido da palavra Fátria, mesmo que ela não constasse, na época, do seu vocabulário (LG).

Foto: © Torcato Mendonça (2007). Direitos reservados.

1. Mensagem de Torcato Mendonça:

Meus Caros: de facto o Natal, nesta sociedade de consumo está esquisito. Mas é natural. Contudo é Natal, sinónimo de dia de maior dádiva, maior tolerância… Tenho a minha maneira de sentir o dia. Respeito outros que o sentem e comemoram de diferentes maneiras.

O meu Natal da Guiné, Post 1892 foi em Junho de 2007 (1). Falei dos mortos do meu Grupo. Mórbido? Talvez.

Hoje envio um anexo. Terá a ver com o Natal?! Não sei. Tem a ver com amizade, com o ser tramado pela Pátria ou Mátria (lembro-me sempre da Natália Correia) e pode, além de não ter préstimo, de estar muito cortado, mesmo assim ferir, em sítios como este, algumas susceptibilidades. Mas quando estiver com o Manel, prometo dizer-lhe: Ensinaram-me uma palavra nova; FÁTRIA e digo-lhe o que é… vamos sorrir e certamente aceitar. Aceitamos! Devia ser mais sentida… porque não, seguida…

Aproveito para mandar para vocês e, através de vós, a toda esta enorme Tertúlia: Votos de Boas Festas.

Um Santo e Feliz Natal.

Um 2008 com SAÚDE e que os Vossos Desejos se concretizem.

Segui o teu conselho, Luis Graça, ofereci a mim mesmo o DVD do filme [sobre a Guiné, As Duas Faces da Guerra, lançado hoje]. Espero que o Midas o envie. Pedi-o hoje. Certamente o vou emprestar…

Um abraço,
Torcato Mendonça

2. O meu Natal no mato (6): Meninos no Natal de 69,
por Torcato Mendonça


Chuva miudinha, caindo leve e docemente, entristecendo mais o fim da tarde fria de Dezembro, em vésperas de Natal.

Dois homens, dirigem-se para o Café – Restaurante, cabeça baixa, passo apressado em fuga ao frio e chuva.

Um levanta olhar. Pára. Tenta chamar o outro e nada diz. Sai só um eh pá. Olham-se. Empurrados por mola invisível, dão passos mais largos e abraçam-se. Abraço longo, forte, sentido, indiferente à chuva e frio. Palmadas nas costas e, pouco depois mãos nos ombros. Olham-se. O calor do abraço, seca a leve chuva e mesmo alguma lágrima, atrevida, que lhes escorre pelas faces.
- Então pá?
- Tudo bem, tudo bem. Já cá estamos.

Olham-se e nada mais dizem. Palavras para quê? O pensamento, esse volta atrás e pára rápido, como só ele é capaz, indo até ao tempo em que ambos eram meninos. Menino mais, menino menos. Meninos!

Entraram na Escola no mesmo dia. Na mão direita um levava uma sacola de pano, o outro uma mala de cartão pintado. Na mão esquerda eram iguais. Davam-na aos pais que, naquele primeiro dia de aulas, os acompanhavam.

Partilharam a mesma sala, a mesma carteira. Fizeram copianços em cumplicidade matreira, longe do olhar ríspido da professora.

No final da 3ª classe separaram-se. Um ficou na escola, o outro foi para o colégio. Mais tarde, um foi aprender a arte da mecânica auto e o outro prosseguiu os estudos.

Nunca perderam o contacto, a amizade forte, as conversas em partilha de desejos, de segredos e de ideias. Ambos sabiam o País triste onde viviam e que amavam. Sabiam que Ele gostava mais de uns do que de outros. Sabiam e detestavam certa gente feliz e emproada, própria da sua mediocridade de vida. Os felizes, sossegados, alinhados. Eles preferiam, preferem, o desassossego.

Foram às sortes, ou melhor, à inspecção militar juntos. Vexatório. O chefe daquela gente ditou a sentença: Apurados.

Um ano e pouco depois, nem tanto, primeiro um depois outro foram chamados a servir a Pátria. Saiu um mecânico – auto e um oficial miliciano, atirador de qualquer coisa. A ambos foi dado o mesmo destino: Guiné. Só diferiram nas datas da partida. Mantiveram o contacto, mesmo lá, enviando bate-estradas, azulados ou amarelados, animando-se mutuamente.

Por mero acaso encontraram-se em Bissau. Festejaram o encontro numa tasca próximo da Amura. O Manuel sabia haverem lá petiscos alentejanos. Até torresmos, dizia ele ao José. Confraternizavam comendo, bebendo, rindo, pensamento longe dali, a sentirem-se novamente meninos.

Hoje, ali estavam, em regresso ao País deles, sentados à mesa do café – restaurante, beberricando tinto alentejano, petiscando, alegres como meninos a trocarem berlindes, piões ou outros brinquedos. Trocavam, agora, palavras e risos, sentindo a felicidade do encontro e o regresso.
- Conseguiste vir passar o Natal.
- Consegui. Cheguei há poucos dias. E tu, continuas por Lisboa?
- Não, porra, não é Lisboa. Fica perto. Periferia, dizem eles. O que interessa é ter vindo até cá. Os meus Velhotes já desesperavam. Temos tempo para conversar nestes dias. Que pensas fazer agora, Zé?
- Não sei. Estudar não me apetece. A cabeça está baralhada. Arrumo ideias. Preciso disso, de pôr muitos assuntos em ordem e depois logo se vê.
- Isso passa, vais ver. Nos primeiros tempos sonhava com aquilo. Passaste lá só um Natal, não foi?
- Só o de 68. Parti de cá em Janeiro desse ano e vim agora. Tu passaste dois, não foi?
- Foi. Um no mato, outro já em Bissau. Natais esquisitos com aquele calor, as saudades a apertarem, a tristeza. Não quero recordar. O teu Natal como foi?
- Dia praticamente igual aos outros. Normal e felizmente sem porrada. Recordo os pensamentos que enviei para cá. Certamente os de cá fizeram o mesmo. Olha encontraram-se a meio caminho, no deserto. Nesse dia choveu por lá finalmente. Recebi do Movimento Nacional Feminino um pequeno estojo de barba. Eu que tinha uma barba enorme. Barba de estimação. Acabei por dar o presente aos Milícias.

Sorriam felizes pelo encontro e tristes pelas recordações.
- Que presentes recebeste nos teus Natais?
- Eh, pá, não quero recordar. Desculpa, esquece. Não dá.

Param, olham-se em silêncio e agarram os copos. Indiferentes a quem os rodeia, fazem uma saudação e, em uníssono dizem:
- Cabrões, filhos de puta… bota abaixo.




Enchem de novo os copos, em silêncio. Mudam de tema de conversa e voltam a sorrir.

Encontram-se hoje, mais em troca de palavras pelo telefone. De quando em vez um abraço, uma conversa sobre assuntos diversos. Raramente falam da Guiné e dos Natais lá passados.

Meninos felizes que foram, jovens de juventude perdida, porque roubada e hoje estão em velhice, por isso mesmo, apressada…

Ficção? Realidade? Que interessa isso se ambos, como tantos, foram tramados…

Natal!
__________

Nota dos editores:
(1) Vd. post de 27 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1892: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): O Casadinho e o Bessa, os mortos do meu Gr Comb, os meus mortos

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