quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Guiné 63/74 - P2331: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja santos) (12): Um Adeus a Missirá, e um poema de Ruy Cinatti a M. Caetano e M. Soares


Guiné > Zona Letse > Sector L1 > Bambadinca > Natal de 1969 > "Este disco foi uma das prendas do Natal de 1969, enviado pelo Ruy Cinatti. Recebeu o consenso do Abel e do Moreira, os meus colegas de quarto. Dvorak e a sua Sinfonia do Novo Mundo comportam a alegria, o deslumbramento e o exotismo, tudo em doses moderadas, e com a vantagem do ouvido assimilar bem. Fez-me muita companhia, sobretudo antes de partir e regressar das operações. As sinfonias de Dvorak estão hoje muito longe das minhas preferências, mas respeito a boa companhia que me trouxeram. E nunca esqueci o sorriso desta criança, que ainda hoje me lembram os Soncó e os Mané [que deixei em Missirá]".





Guiné > Zona Leste > Sector L1 )Bambadinca) > Cuor > Missirá > 1969 > "Um belo documento histórico-artístico, que estava à minha espera, quando regressei a Missirá, após tratamento em Bissau, depois da mina anticarro de 16 de Outubro de 1969. O Ruy Cinatti dá-me conta do regresso do Contra-almirante Teixeira da mota a Portugal e fala-me dos seus poemas à volta das eleições de 1969. Vou reproduzir parte deste conteúdo na Operação Macaréu à Vista, com muito orgulho".

Fotose legendas © Beja Santos (2007). Direitos reservados.


Texto enviado, em 25 de Outubro último, pelo Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70).


Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (12): As minhas últimas flagelações em Missirá

por Beja Santos


(i) Duas flagelações... e uma simulação (cómica) em onze dias

Reza a história da CCAÇ 12 que “de 1 a 15 de Novembro de 1969, a 2ª Secção do 3º Gr Comb esteve de reforço ao aquartelamento de Missirá, na altura em que o Pel Caç Nat 54 veio render o 52. Durante este período, Missirá sofreria três flagelações, sem consequências, a última das quais, a 14, por grupo estimado entre 20/30 homens que utilizou Mort 82 e 60, RGP2 e armas ligeiras”.

Também a história do BCAÇ 2852 refere três flagelações, uma a 3 de Novembro, pelas 18h30, que durou cerca de vinte minutos, outra a 8, pelas 10h45, e a 14, pelas 17h30, que durou cerca de cinco minutos. Manda a verdade dos factos que se pormenorize o que se passou à volta dessas flagelações.

Não tínhamos ilusões que em Madina era bem conhecida a situação de pré-calamidade que se vivia neste canto do Cuor. Quando regressei de Bissau, na última semana do mês de Outubro, tinha quase metade do Pel Caç Nat 52 e dos pelotões de milícias inactivos, acamados, palúdicos, depauperados, incapazes de dar um passo. O David Payne apoiou a ideia do major Cunha Ribeiro em reforçar Missirá, onde as tropas disponíveis estavam confinadas às idas diárias a Mato de Cão, à emboscada, aos reforços e às lides diárias, com a agravante de se contar só com o burrinho operacional.

As gentes de Madina/Belel utilizavam praticamente os mesmos itinerários, sabedoras que as nossas deslocações passavam de Missirá a Caranquecunda, daqui pelos palmares até Flaque Dulo, depois Canturé, Chicri e Mato de Cão: eles contornavam o rio Biassa, flanqueavam o trilho de Morocunda, posicionavam-se junto a Cancumba, despejando a metralha sobre a área do aquartelamento e limítrofes.

Eram flagelações cirúrgicas, quase indolores, como se fossem certificados de presença, aliviando-se a carga de trotil antes do regresso às bases. Na flagelação de 3 de Novembro, algum do fogo dos morteiros caiu dentro da tabanca, havendo mesmo uma morança bastante atingida. Era a hora que antecedia o jantar e os banhos, os primeiros momentos instalavam pânico, mas a qualidade da tropa vinha imediatamente ao de cima, até o professor já pegava em armas, era um acto trivial, complementar da docência. Ficaram duas crianças ligeiramente estilhaçadas e a mãe do Quebá, o nosso picador, voltou a fracturar uma perna. Quem teve mais trabalho foi o maqueiro Adão, escoriados não faltaram até madrugada.

A 8 de Novembro, não houve flagelação nenhuma. Tinha vindo a insistir com o capitão Manuel Figueiras, do BCAÇ 2852, para que ele visitasse Finete e Missirá antes da chegada do Pel Caç Nat 54, havia obras em curso, não se tinha encontrado nenhuma solução para trazer o gerador até Missirá, faltava a renovação de dois abrigos, impunham-se obras na fonte de Cancumba, entregara-lhe uma proposta para um edifício onde podia funcionar a escola, em Finete era indispensável fazer obras em vários abrigos, e por aí adiante. Fui buscá-lo pelas 6h da manhã ao Geba, viu as obras e as mais prementes carências em Finete, rumámos para Missirá, exactamente quando lhe mostrava os trabalhos num abrigo começou uma carga de fogo de costureirinhas, temi uma emboscada ao grupo que tinha ido buscar água à fonte. O pesado tiroteio desnorteava-me, angustiava-me, era como se os nossos soldados não pudessem reagir, estivessem todos massacrados. O capitão Figueiras pedia para eu reagir com morteiros, expliquei-lhe que era impossível, numa outra fonte estavam lá metade das mulheres de Missirá a lavar, na outra as morteiradas não iriam escolher entre “eles” e “nós”.

Extinto subitamente o tiroteio, aquele estranho tiroteio só de costureirinhas, toda a gente disponível saiu em auxílio dos emboscados. Não tínhamos percorrido 1 km quando vimos uma tropa bem disposta a rolar os bidões cheios de água, havia risada e cantarolice. Sem disfarçar a ansiedade, quis saber tudo, a dimensão da emboscada, a nossa resposta, porque é que não se tinha ouvido o nosso potencial de fogo. Durante alguns minutos, recorrendo à mímica e ao crioulo, o Domingos e o Nhaga, que sempre falaram um português impecável, davam respostas fora do contexto das perguntas. Indignado com tanta parvoíce, exigi que fôssemos ao local de tanto tiro de costureirinha.

O que vi nos palmares de Cancumba deixou-me sem fôlego: as palmeiras descascadas, brutalmente atingidas pelas balas. A resposta impunha-se: os cafajestes dos meus soldados tinham procurado praxar o capitão Figueiras, o tiroteio de G3 em cima das palmeiras soava exactamente como fogo de custureirinha. Atado de pés e mãos pela manhosise destes soldados ladinos, que souberam semear o pânico e divertir-se à grande, lá ataviei uma explicação ao capitão Figueiras que me aguardava ansioso na porta de armas. Nasceu assim a flagelação que nunca existiu...


(ii) Cristina, agora tenho que passar a ir aos Nhabijões...

Quanto aos acontecimentos de 14 de Novembro, a flagelação aconteceu, teve alguns aspectos duríssimos, era verdadeiramente para intimidar, e ao longo de todos estes anos interrogo-me sobre as informações existentes em Madina/Belel acerca da transferência que se operou nesse dia do Pel Caç Nat 52 para Bambadinca e do Pel Caç Nat 54 para Missirá.

A 13, escrevo à noite à Cristina:

O nosso almoço hoje foi feijões com chouriço. Como só iria partir para Mato de Cão pelas 15 horas, estava a ler o julgamento do capitão Dreyfus e o texto J’accuse, de Zola, da biografia de Jaime Brasil, quando chegou a mensagem: “rendição em 1406h30. monte segurança região Gã Gémeos.

Começou o rebuliço dos espólios, pagamento de dívidas entre civis e militares, as crianças interromperam a escola, foi preciso gritar bem alto que Mato de Cão tinha a precedência, quem cá ficasse desse atenção a toda a logística da partida. Podes imaginar o que vão ser as viagens amanhã com mulheres e crianças, baús, galinhas e cabras. Malã voltou a dizer-me que não está satisfeito com a solução, na noite da flagelação que praticamente destruiu Missirá, em Dezembro de 1966, o Pel Caç Nat 54 só cá esteve três dias, saiu castigado para o Xime, acho que a sua reacção à flagelação foi nula...


A 21, já instalado em Bambadinca, volto a escrever à Cristina:

Logo no dia da chegada do Pel Caç Nat 54, houve uma flagelação com morteiros e roquetes, isto com o quartel meio vazio, o novo contigente sem saber onde estavam os abrigos, a ripostar atarantados. Salvou a situação a secção de milícias que respondeu prontamente com espingardas e metralhadoras, felizmente tinha lá comigo o Queirós, respondemos com o morteiro 81 começou logo a cuspir fogo sobre Cancumba.

Pela primeira vez, ouvi os insultos dos rebeldes fora do arame farpado, acertaram em dois abrigos, caiu uma morteirada perto do paiol dos combustíveis, nada aconteceu. Desta vez arderam duas moranças, perderam-se os tectos e os haveres dos civis. Foi a minha despedida com fogo, mas dois dias depois ainda fiz uma nova patrulha de reconhecimento, com todo o pelotão de milícias e parte do 54. Depois te conto, agora tenho que ir aos Nhabijões, onde se está a proceder a um reordenamento das populações.



(iii) Notas de leitura: os filhos de Casamansa, portugueses do coração

Entreguei no comando de Bambadinca propostas de louvor para os cabos Benjamim Lopes da Costa, Domingos da Silva e António Ribeiro Teixeira. O primeiro, pelo seu desembaraço e entusiasmo na reconstrução de Missirá, o segundo pela sua inexcedível capacidade de colaboração, incluindo no ensino das crianças e dos milícias de Missirá e Finete, o terceiro pela dedicação nos melhoramentos dos dois aquartelamentos e o zelo sem mácula nas suas funções de cabo de transmissões. Foi com grande satisfação que soube mais tarde que o comandante de Bafatá chamara a si estes louvores. Com o auxílio do Pires, preparei novas propostas de louvor para o Barbosa, Casanova e o Adão.

Mesmo sabendo que o Jovelino Corte Real [, cmdt do BCAÇ 2852,] não irá apreciar a iniciativa, enviei um memorando sobre as últimas flagelações:

Os rebeldes dispõem de informações sobre as nossas fraquezas. Não se pode ir ao rio Gambiel com trinta soldados, todos aqueles campos estão lavrados e defendidos. De Sinchã Corubal para Madina sabemos que aumentaram os patrulhamentos, as picadas estão minadas, só os podemos intimidar nas emboscadas da nossa iniciativa, usar a técnica do “bate e foge”. As repetidas flagelações de há dois meses para cá são pequenas escaramuças que têm a vantagem de ficarmos a saber que eles trazem pequenos grupos que retiram cedo, usando sempre os mesmos itinerários. Talvez seja conveniente intensificar os patrulhamentos a mais de dois grupos de combate, mantendo em Missirá dois pelotões intactos. Aqui não se vive só a desmotivação pela doença e o extremo cansaço. Aqui sabe-se que o inimigo está reforçado e nós não podemos responder com os meios existentes.

Do mal o menos, a 16 de Novembro o pelotão de milícias de Missirá voltou a estar reunido, ao menos atenderam a esta súplica.

Não tenho coragem para repegar na ideia de escrever sobre os Soncó. Passei a limpo algumas das notas que coligi nas pesquisas feitas na biblioteca do Centro de Estudo da Guiné Portuguesa. Há documentos que me impressionaram muito. Por exemplo, a comunicação de Francisco António Marques Geraldes à Sociedade de Geografia de Lisboa datada de 1887:

Vivi três anos em Zeguichor, e por vezes percorri vários pontos do Casamansa. Não há gentio na Guiné que mais amor mostre pela nação portuguesa que o que habita nas margens deste rio. Desde a sua embocadura até Selho é o dialecto crioulo-português que se ouve falar, tanto aos banhuns como felupes e balantas. Com franqueza o digo: via-me vexado perante as contínuas representações das tribos gentílicas a França, não se pode negar que os filhos de Casamansa não são portugueses de coração e séculos hão-de passar sem que o nosso nome se apague da memória desta pobre gente que ainda hoje pergunta com toda a ingenuidade como é que os brancos proibindo a escravatura vendem uns aos outros tantas tribos independentes entre si. Que precisão tinha Portugal para vender à França aquele rio? Se precisava de dinheiro porque não impunha contribuições que todos pagariam?

Tomo nota que o professor Armando Zuzarte Cortesão, que plantou palmeiras de Samatra no Gambiel, escreveu A Guiné como Colónia de Comércio e Plantação, em 1928, boletim 37 da Agência Geral das Colónias. Tomo igualmente nota de mais um trabalho do Padre Marcelino Marques de Barros: Guiné Portuguesa. Breve notícia sobre alguns dos usos, costumes, línguas e origens dos seus povos, publicado em 1882 no boletim série 3ª, XII, da Sociedade de Geografia de Lisboa.

Depois descubro uma referência que interessa aos Soncó e ao Cuor, vem no relatório da Província da Guiné Portuguesa, elaborado no ano económico de 1888-1889 pelo governador interino Joaquim da Graça Correia Lança, a páginas 17:

Se a cultura se for desenvolvendo no rio Geba, como é de esperar num futuro muito próximo, devido ao estabelecimento de muitas famílias mandingas desde Malafo até Sambel-Nhanta, a prosperidade da província fica de vez assegurada.

Escrevo também nos meus apontamentos:

É importante ler tudo sobre Honório Pereira Barreto, Teixeira Pinto e Senna Barcelos, sobretudo os Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné.

Não voltarei a pegar nestes apontamentos antes de 1972, mas mesmo assim o Cuor, a saga dos Soncó, as guerras de pacificação, tudo se ia esfumando como se de um encadeado de epifenómenos se tratasse. Felizmente, eu estava completamente enganado.

Com o Pires, com o Barbosa, o Domingos e o Queirós, revemos a contabilidade, os autos de abate, as existências de lençóis e fronhas, a comida que fica, os combustíveis; com o apoio do Varanda, um apontador de morteiro 81 que chegou recentemente e, claro está, com a intervenção directa do condutor Xabregas passa-se em revista o material auto. Sem nos apercebermos, chegou o Ramadão, civis e militares pedem uma coluna de reabastecimento para que os fiéis tenham sal, cola e mafé para os jejuns.

Febril, parece que quero deixar o correio todo em dia, disparo aerogramas para Lisboa, São Miguel, Moçambique, Angola, impus-me tréguas sobre o correio em chamas que me tem sido enviado pela família e que praticamente ignoro. Prossigo cuidadosamente a minha correspondência com o Sr. Jesuíno Jorge, pai do falecido condutor Manuel Guerreiro Jorge. Recebo grandes alegrias como a que de o Eduardo Canto e Castro, uma amizade que começou nos nossos onze anos, se acaba de licenciar em engenharia com alta classificação, e já foi colocado na Junta de Energia Nuclear.

E mesmo a ultimar preparativos, as idas a Mato de Cão são uma constante. A 11 escrevo à Cristina:

Ontem fui a Mato de Cão ver passar dois barcos de guerra que transportavam a nova companhia para Mansambo. Este ano o jejum do Ramadão não trouxe problemas como no ano passado, Malã e Lânsana falaram previamente com os nossos soldados, o jejum está atenuado. O Ruy Cinatti mandou-me um volume de líricas portuguesas, de Maria Alberta Menéres a Gastão Cruz.

E termino assim: Dá-me um beijo e um pouco das tuas mãos, dorme bem, em breve estaremos juntos.


(iv) Ruy Cinatti e as eleições de 1969: um poema alegórico para Narcello Caetano e Mário Soares


Com a data de 1 de Novembro, recebo uma belíssima carta de Ruy Cinatti. Depois de ficar a saber que o Teixeira da Mota já não voltará à Guiné, ele escreve sobre as eleições havidas em Portugal. Diz ele:

As eleições acabaram. Fiz no decorrer 35 poemas alegóricos que serão publicados em edição fora do mercado sobre o título “O Borda d’Alma”. Aqui vão três:

OPÇÃO

Para Marcello Caetano e Mário Soares

Com o impossível fazem-se milagres.
Com o possível há milagres a menos.
Vamos, decidamos
aquilo que queremos,
somente com as linhas
com que nos cozemos.

Aleluia!

VOTAÇÃO

Já ganhei o dia
porque fui autêntico.
Atingi o mínimo
sem me disfarçar.
A história não tem
nada de maior.
É um dia na vida.
Chego a acreditar

BORDA D’ALMA

O calendário foi cumprido
à risca - saiu certo.
Tive um tubérculo, por junto,
entumescido,
mas saiu certo.
A culpa foi minha, que não soube
adubar bem.
Foi propício o clima.
A culpa é minha,
de mais ninguém.
Vou experimentar novas mézinhas.
Talvez cultive.
Com anos de pousio, um homem cresce.
Talvez me salve.


Com esforço e dispersão, leio tudo o que posso, oiço cantatas de Bach, sinfonias de Mahler, o eterno companheiro Beethoven. Tenho consciência que se aproxima o adeus a Missirá, a hora de me despedir dos Soncó e dos Mané, dos soldados milícias a quem devemos inúmeras atenções, dos soldados aqui destacados como o Varanda e o Xabregas.

Continuo a ler as novelas de Somerset Maugham, comecei O Cavalo Espantado, de Alves Redol, estou a acabar Ladrões de Raparigas, de Mickey Spillane, trouxe o Arco do Triunfo, do Erich Maria Remarque, este chamou-me a atenção em Bissau, vi-o nas estantes da minha Mãe, gosto de Remarque, lembro-me de A Oeste Nada de Novo, vi, vai para cinco anos o filme de Lewis Milestone Arco do Triunfo com soberbas interpretações de Ingrid Bergman, Charles Boyer e sobretudo Charles Laughton. Vamos então até Paris nas vésperas da Segunda Guerra Mundial. É madrugada, fiz a ronda pelos postos de sentinela, é uma madrugada quente de plena época seca. Olho bem os céus para não me esquecer deste Cuor tão amado, tão sofrido nos encontros e desencontros, o Cuor onde me fiz homem.

__________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post anterior desta série > 30 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2317: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (11): O fantasma de Infali Soncó

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