quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2248: Blogpoesia (6): África Raiz, de Fernanda de Castro


Capa do livro de Fernanda de Castro (*) (1900-1994) - Raíz Áfrca.
Desenhos originais de Eleutério Sanches. Capa de Inês Guerreiro
Tipografia A. Cândido Guerreiro, (Herdeiros) Lda.,
em Setúbal, Rua Serpa Pinto, 20 e 22, Portugal
Dezembro de 1966
__________

ÁFRICA RAIZ (**)
À terra de Bolama, em cujos braços repousa minha mãe

África,
no teu corpo rugem feras,
uivam fomes e medos ancestrais,
no teu sangue há marés,
na tua pele há dardos e punhais.

Ventre de Continentes,
és mater e matriz.
Ásia é semente, Europa é flor,
outros serão essência ou tronco,
tu, África, és raiz.

Dos teus flancos de fêmea fecundada,
nascem florestas, rios e montanhas.

Florestas venenosas de gigantes,
de monstros, de ciclopes vegetais,
de fungos, de landólfias e de orquídeas,
onde pastam manadas de elefantes,
onde flores carnívoras,
sob um céu baixo, de invisiveis brasas,
sugam antenas e digerem asas.

Fios de água, que vertes das entranhas
e te rasgam a pele
como pontas de lança,
como lâminas de aço,
prendendo, laço a laço,
matas, capim, tarrafe, canaviais.
Cascatas, cachoeiras,
furiosos caudais
saltando precipícios,
arrastando pirogas, crocodilos,
abrindo a golpes de água
os leitos abissais
dos Zambezes, dos Congos e dos Nilos.

Montanhas como dorsos de mamute,
gargantas de titans, abismos de neblina,
e na crosta rugosa a lepra das florestas,
as pegadas do vento,
as aves de rapina.
Presença subterrânea
de lavas e de chamas,
de vulcões em potência,
ressonância, rumores
dos rios interiores,
promessas de esmeraldas, de rubis,
de metais raros,
Kilimanjaros
nos roxos da distância.

(...)

É meio-dia. O sol, a pino,
é metal em fusão sobre as bolanhas.
Pilam arroz e milho, nas tabancas,
as mulheres Mancanhas.
Meninos de café, de chocolate,
com fieiras de contas e missangas,
rebolam-se no chão,
trincam nozes de coco, chupam mangas.
A cadência, o compasso do pilão,
os zumbidos, as moscas, o calor,
mergulham a tabanca
num cálido torpor.

Não há relógios. O que marca o Tempo,
não é o Sol, não é a Lua, a Estrela,
mas a esteira, o tambor, o arroz, a rede,
o sono, o amor, a fome, a sede.
(...)

Joaquim de Có, que tinha cem mulheres,
costumava dizer
a Dembo, seu herdeiro,
filho primeiro
de sua irmã Fulata:

- Que mais hás-de querer, ó Dembo,
se tiveres
vacas, arroz, mulheres,
aguardente de cana,
chabéu, mancarra, milho,
e cada ano um filho?
E ao homem grande de Lisboa,
ao chefe branco seu amigo,
com felina ironia:

- Negro é assim, coitado...
E sorria
com seus dentes limados,
aguçados,
de velho canibal,
que tem, só para ele, cem mulheres,
pra ele, Joaquim de Có,
enquanto o chefe branco tem só uma,uma só.
(...)
À tarde, à porta das palhotas,
em torno dos mais velhos,
dos que sabem contar coisas remotas
dos tempos esquecidos,
os mais novos escutam
com os cinco sentidos:

Dia que Deus fez mundo,
fez dois homens igual.
Deu a eles embrulho,
dois embrulhos igual,
e disse: não abrir,
se não eu castigar.
Um deles abriu,
pensou: Deus não vem cá.
Deus foi e castigou.
Ao outro deu caneta,
a ele deu enxada;
depois fez ele preto,
e ele pôs-se a chorar.
Veio então diabo,
sem ninguém chamar,
pôs-lhe mão na cabeça,
fez-lhe festa, festinha,
e o cabelo zangou
e ficou carapinha.
__________

Nota de vb:
(1) Maria Fernanda Telles de Castro e Quadros, nasceu a 9 de Dezembro de 1900 e faleceu a 19 de Dezembro de 1994. (...). Autora de livros e de peças para o público infantil, dramaturga, memorialista, romancista, tradutora, muito em especial poeta da alegria, como assinalou David Mourão-Ferreira no discurso de saudação no jantar comemorativo dos 50 anos de vida literária de Fernanda de Castro:
"Ela foi a primeira, neste país de musas sorumbáticas e de poetas tristes, a demonstrar que o riso e a alegria também são formas de inspiração, que uma gargalhada pode estalar no tecido de um poema, que o Sol ao meio-dia, olhado de frente, não é um motivo menos nobre do que a Lua à meia-noite”...
Fonte: Sociedade Portuguesa de Autores (Com os nossos agradecimentos).

(*) Fernanda de Castro, era filha de Ana Teles de Castro e Quadros e de João Filipe Quadros, oficial da Marinha de Guerra. Foi com os seus pais para a Guiné em 1913, quando seu pai foi nomeado Capitão do Porto e Chefe dos Serviços Marítimos de Bolama.
Fernanda de Castro dedicou este poema à memória da sua mãe, enterrada em Bolama, vítima da febre amarela.

(**) África Raiz, in Senegâmbia. Com a devida vénia.

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