sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2123: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (2): Não te esqueças de me avisar que já sou teu marido

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Messe e instalações dos oficiais > O Alf Mil Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat 52 (1968/70). Irá casar-se em Abril de 1970 com Cristina Allen.

Guiné > Bissau > Abril de 1970 > "A Cristina chegou a 18 de Abril e praticamente nunca saiu de Bissau a não ser umas curtas visitas a Safim, Nhacra e Quinhamel. Não podíamos, evidentemente, ir passear a quaisquer teatros de operações. Durante os praticamente 20 dias que ela aqui viveu, visitámos as amizades feitas em Bambadinca e Bissau e fomos recebidos regularmente pelo David Payne, Emílio Rosa e mulheres. Não resistíamos à curiosidade de andar pelos mercados, ver artesanato e pequenas festas locais. Muitas vezes, o Cherno acompanhou-nos, insistia que não havia pausas no seu papel de guarda-costas" (BS).


Lisboa > Julho de 2007 > Finalmente o Queta Baldé deixou-se apanhar pelo fotógrafo... Ei-lo aqui com o seu antigo comandante Beja Santos. Tem sido um precioso "auxiliar de memória" do nosso camarada, autor de Na Terra dos Soncó, Diário de Guerra (1968/69), a editar proximamente pelo Círculo de Leitores.

Fotos: © Beja Santos (2007). Direitos reservados


Texto enviado em 25 de Julho último pelo Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):


Caro Luís, aqui vai o episódio nº 2 da nova série. Tudo farei para te deixar em stock quatro textos para Agosto. Um abraço, Mário



Operação Macaréu à Vista - Parte II

Texto nº 2 - Não te esqueças de me avisar que já sou teu marido
por Beja Santos (2)


(i) Muitas lembranças de Finete e as memórias do Queta

O Queta apresentou-se ao princípio da manhã, diz que a alvorada é muito boa para manter as recordações que traz do sono, sai depois da Praça do Saldanha e ruma para o Rossio para ir comunicar com a sociedade guineense que se reúne ali para o Largo de S. Domingos. Propus uma agenda farta para a nossa reunião de hoje: quem vivia em Finete?; a sua versão das duas operações Pato Rufia, que se realizaram na última semana de Agosto e na primeira de Setembro, de 1969, na região do Xime; como era Missirá em 1967, quando lá chegou o Pel Caç Nat 52.

O mais glorioso dos artistas do batuque, agora septuagenário, que percorreu a palmo Enxalé, Cuor, Mansomine, Joladu, Oio, Badora e Cossé, para além de toda a região entre Xime e Bambadinca, mantém a sua memória praticamente intocável. A prova disso, veio de um mail recentemente enviado pelo Matos Francisco, o primeiro comandante do nosso pelotão. Sentado diante da imagem posta à sua apreciação, o Queta olhou-me com um sorriso e esclareceu sem uma hesitação:
- Trata-se do Capitão Amna Nonça, que vivia em Porto Gole e era régulo de Enxalé. Comandava a polícia administrativa e morreu em 1967, em Bissá, de uma roquetada que o matou mais seis homens. Era um homem justo, que acreditou na bandeira portuguesa.

Não me deu tempo a fazer-lhe perguntas sobre Finete, ele hoje queria contar-me mais um episódio da sua vida. Começara na milícia em 1964 no pelotão de Bazilo Soncó, na Ponta do Inglês:
- Já naquele tempo o Bazilo vivia para a fatiota: roupa sempre engomada, as divisas a brilhar, o pingalim que ele agitava como se fosse um grande senhor, levando os dedos ao bigode lustroso. O Bazilo era o homem mais vaidoso do mundo. Vaidoso e medroso.

Depois de três meses na Ponta do Inglês, aquele pelotão de milícias foi deslocado para Finete, pois o régulo Malã Soncó, seu irmão mais velho, pedira a Bafatá que houvesse protecção para o população civil que cultivava a extensa bolanha de Finete:
- Há poucas terras mais ricas, nosso alfero. Todos aqueles quilómetros de Malandim até Ponta Nova, subindo de Finete até Boa Esperança e à volta de Gã Joaquim, até Aldeia de Cuor, dá arroz com fartura. A população de Finete fugira para o mato no princípio da guerra. O régulo vivia em Missirá mas deslocou muita gente para Finete, e depois da vinda da milícia, veio também mais povo ali viver, originário de Canturé, Chicri, Sansão e Aldeia de Cuor. Havia ali muitas lojas de comércio, brancos e cabo-verdianos, que vinham buscar a mancarra, o arroz e o coconote. Todas essas lojas desapareceram com a guerra. Fiquei em Finete até 1966, altura em que fui tirar a recruta em Bolama. Nunca disse a nosso alfero mas em Finete havia gente que informava os familiares em Madina, o que fazíamos, o que construíamos, o armamento que tínhamos. Esta noite estive a pensar muito tempo sobre a pergunta que me fez sobre as razões por que é que eles não nos atacavam em Mato de Cão. Não nos atacavam por que nosso alfero ia lá a toda a hora. E se começassem a atacar Finete, certamente que haveria mais emboscadas mortais como a de 3 de Agosto. Madina queria que as colunas de reabastecimento não tivessem problemas. Em Setembro, lembro-me bem, Missirá e Finete voltaram a ser atacadas, aqueles ataques pareciam brincadeira, umas morteiradas e roquetadas e nada mais.

Eu também estava convencido que Madina vivia desorientada com as nossas permanentes andanças pela mata e não queria aumentar a tensão à volta de Finete, aquele corredor estratégico devia permanecer despercebido.

Já de pé, o Queta que hoje vai tirar uma fotografia comigo, não me deixa de dar informação útil:
- Nosso alfero, Finete tinha duas fileiras de arame farpado, foi graças a si que se fizeram cinco novos postos de vigia e que as Mauser foram substituídas por G3. Não tínhamos morteiro. Já em 64 usávamos granadas defensivas. E lembro-me de uma história. Uma das primeiras vezes que o nosso alfero atravessou a bolanha a pé ficou alertado para os barulhos de rebentamentos dentro dos arrozais. Explicámos que eram os meninos a apanhar peixe. Nosso alfero proibiu que os meninos usassem granadas. Não gostámos, mas nosso alfero fez bem.

(ii) A Operação Pato Rufia

A ideia desta operação nasceu no dia em que foi capturado um guerrilheiro pelos pára-quedistas, na região de Mansambo (3). Interrogado, confessou vir de um acampamento situado na estrada entre Xime e Ponta do Inglês, dizendo que havia lá quarenta homens armados com um grupo especial de apontadores de RPG2 que tinham a missão de atacar a navegação no Geba.

A 24, a meio da tarde, na sala de operações de Bambadinca, o Major Sampaio explicou aos oficiais presentes que haveria dois destacamentos que trabalhariam conjugadamente com os pára-quedistas. Sairíamos pela meia noite do Xime com dois guias e o prisioneiro. Eu comandaria metade do 52, fazendo parte do destacamento que ficava à espera que os guerrilheiros fugissem no rescaldo no ataque às casas de mato.

O Queta lembrava-se muito bem daquele calvário. Saímos de uma noite escura, amanhecia e ainda andávamos às voltas, com os guias desorientados:
- Quando amanheceu, vi perfeitamente que estávamos ao pé da Ponta do Inglês, ora nosso alfero tenha falado em Ponta Varela e Gundagué Beafada, qualquer coisa como quatro quilómetros atrás. Amanheceu cheio de nevoeiro, ninguém via nada.

De facto, assim foi. E a aviação não pôde largar os pára-quedistas, pelo que a meio da manhã se iniciou uma retirada, e é já a caminho de Madina Coelho que o prisioneiro reconheceu os trilhos de acesso, numa altura em que tudo desaconselhava o golpe de mão. Foi um regresso muito difícil até ao Xime, pois os picadores detectaram anti-pessoal, certamente ali metidas desde que os pára-quedistas tinham aprisionado o nosso informador. Assim terminara, com muita canseira e sem nenhuma glória, a primeira Pato Rufia, que se irá repetir a 7 de Setembro. Nessa segunda versão, como veremos, haverá três destacamentos de tropa do exército, e ficaremos com os pelotões 53 e 63.

(iii) Um casamento por procuração que é quase um trabalho sem esperança

Nunca visitei tanto Bafatá como nas últimas semanas. Os papéis para o casamento por procuração estão sempre engatados: pedem-me um bilhete de identidade que ardeu em Missirá, bem como outras certidões; dizem-me que não me posso casar sem a morada do sogro e que só pedi a convenção antenupcial mas que me esqueci de falar na separação de bens. Haverá um momento em que o administrador me pôs a mão no ombro e me felicitou pois por ali eu já estava casado. Mas na semana seguinte recebi a indicação de voltar lá com urgência. Ali chegado, o administrador pediu-me para ir buscar duas testemunhas que confirmassem a minha identidade. Não aceitou nenhum dos meus acompanhantes, avançou mesmo a sugestão que o nome de dois superiores resolveriam a questão de vez. Enquanto conversamos, entra o Coronel Hélio Felgas que, para minha surpresa, avança sorridente para mim, dizendo ter ouvido que eu ia casar e precisava de uma assinatura de um superior.

Naquela sala que parecia uma estufa, com população acocorada à espera de vez, oiço-o transido dizer-me que tem muito apreço pelo meu desempenho militar e que me quer no Agrupamento de Bafatá. E falou mais alto para toda a gente ouvir:
-Faça a rapariga feliz, vou louvá-lo, é pena que tenha havido aquele contratempo, espero vê-los em Lisboa.

Volto a sair de Bafatá aturdido e desorientado, na certidão correspondente ao meu casamento por procuração faço representar-me pelo Ruy Cinatti, fica esclarecida a separação de bens, assinei a convenção antenupcial. Em Bambadinca, um pouco antes de partir para Missirá, escrevo à Cristina:
- Não te esqueças de me avisar quando for teu marido.

Recebera uma carta do meu amigo José Manuel Nogueira Ramos, de quem a Cristina gostava muito, a informar-me do preocupante estado de saúde da mãe e peço à Cristina para visitar a Dnª. Raquel no Campo Pequeno, 11, 2º Esq., telefone 775204. Despeço-me fingindo que estou cheio de saúde, sem deixar de referir que as picadas estão de novo intransitáveis, que voltou a faltar o arroz e que morreu a mulher de um soldado milícia de Missirá.

Capa do romance de Gustave Flaubert, Madame Bovary. Lisboa: Estúdios Cor. 1960. (Ed. orig. em fr., 1857). Trad. de João Pedro de Andrade.

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados


(iv) Madame Bovary sou eu!

A semana de leituras trouxe-me à vida. Em primeiro lugar, li um assombroso romance policial, Maigret e o seu morto, de Simenon. Assombroso na estrutura, na inovação formal, na narrativa trepidante. Enquanto entrevista uma alucinada no seu escritório, vão sucedendo-se telefonemas de um homem que se apresenta como marido da Nina, dizendo-se perseguido. Os telefonemas caem. Maigret vai para a rua, procura refazer o itinerário do perseguido. Ele vai aparecer morto em pleno centro de Paris. O inquérito mobiliza tudo e todos, até se descobrir que uma quadrilha de carniceiros checos o liquidou por ele saber a sua identidade.

A tradução de Lima Freitas é um primor e a capa do Cândido da Costa Pinto não lhe fica atrás. Simenon usa na plenitude todos os seus recursos imaginativos: o suspense da caçada, um agente da polícia que se transforma em taberneiro, Madame Maigret a fazer telefonemas profissionais, Maigret a receber patifes em casa e a enfiar um murro no verdadeiro chefe da quadrilha. Para quem desvaloriza a literatura policial, recomendo que leia e releia este Simenon, e depois conversamos.

Li também na colecção Miniatura os contos Biombo Chinês por Somerset Maugham. As histórias dos Mares do Sul de Maugham são um encanto. Agora é a China e estas pequenas pinturas, águas-fortes de sentimentos, olhares, vivências. Maugham guardou tudo num diário da viagem que fez em 1920. Refez as suas observações nestas obras-primas da pequena história que consigo ler em todos os bocadinhos que tenho disponíveis. Mas o grande tiro de artilharia que li esta semana foi Madame Bovary, de Flaubert.

Dizem os estudiosos que Madame Bovary é o primeiro grande livro realista da literatura mundial. O que está em causa nas minhas noite de Missirá, na primorosa tradução de João Pedro de Andrade, é o arranque de uma toada da emancipação feminina, o fim do silêncio sobre o adultério, a passagem da mulher do meio puramente rural para o sonho cosmopolita. Carlos Bovary, o marido de Ema, é um homem monótono e pouco arrebatado. Ema, pelo contrário, sonha com a paixão, lê Balzac, quer emoções. Terá amantes e profundas decepções. A tragédia irá desenvolver-se em torno desses arrebatamentos e dessas amarguras até chegar à sua morte, a que se seguirá a de Carlos. O dinheiro vai desaparecendo, a filha de ambos, Berta, ficará na miséria.

Leio entusiasmado estas centenas de páginas, tendo em conta que a obra-prima data de 1857. A edição é linda, corresponde a um período glorioso de Estúdios Cor, de quem tive muitos livros, lembro uma edição ilustrada por Júlio Pomar para o Gargantua de Rabelais. Madame Bovary é a modernidade, percebe-se facilmente a barafunda que causou, envolvendo tribunais, a igreja, os colegas de Flaubert. Os acessos românticos e a grande amorosa, os amores transviados, o ilícito amoroso ganharam nova expressão com Flaubert.

Este é um mês com muitas dores à minha espera: a nova Pato Rufia e um morto transportado em padiola improvisada, uma cena digna de um drama wagneriano; novos tiros sobre Missirá; as peripécias de um casamento ainda não realizado; os camaradas que partem e chegam com notícias da Cristina; Finete flagelada, felizmente só houve feridos ligeiros; mais uns tiroteios em Chicri; até recebi um louvor dado pelo Felgas e depois pelo Comandante Militar da Guiné. A acabar o mês, imprevistamente como um tufão, o colapso nervoso do Casanova foi horrível de presenciar. Mas o mais horrível foi a solidão que me deixou a partida em evacuação Y do meu mais precioso auxiliar.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 30 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1329: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (22): A memória de elefante do 126, o Queta Baldé

(2) Vd. post de 13 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2102: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (1): Mamadu Camará, a onça vigilante

(3) Vd. posts de:

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1011: A galeria dos meus heróis (4): o infortunado 'turra' Malan Mané (Luís Graça)

25 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P906: CART 2339 e Malan Mané, duas estórias para duas fotos (Torcato Mendonça)

30 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXX: A CAÇ 12 em operação conjunta com a CART 2339 e os paraquedistas (Agosto de 1969) (Luís Graça)

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