domingo, 12 de agosto de 2007

Guiné 63/74 - P2042: Estórias do Zé Teixeira (20): A vaca que deu sorte (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

José Teixeira, 1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , (1968/70), autor das mais tocantes estórias, fruto do seu contacto íntimo com as populações autóctones (1) .


VACA: Sinónimo de sorte... ou de azar?

por Zé Teixeira (subtítulos do co-editor CV)

Num dia, após um ataque a Aldeia Formosa, que começou cerca das 17,30 e acabou altas horas da madrugada, o Caco Baldé apareceu por lá para apreciar os estragos, que felizmente para os militares tinham sido nulos. Ao comentar com o Comandante da Guarnição o local de onde o IN tinha atacado, concluiram que possivelmente tinha havido apoio logístico de uma tabanca colocada para lá da fronteira. O Homem do monóculo só fez uma pergunta:
-Nunca te lembraste de apontar para lá os obuses?

Claro que nessa noite foi um corridinho de granadas de 18 Kg naquela direcção. Eu guardei a frase e quando em Mampatá se comia arroz com arroz, enquanto as vacas do homem grande se deliciavam a pastar entre os arames farpados de protecção da tabanca.

Ao fazer a ronda nocturna notei o tilintar de garrafas e perguntei ao sentinela o que se passava:
- É uma vaca que anda por aí, respondeu-me ele, não há perigo.

Havendo perigo ou não, resolvi imitar o Caco e dizer-lhe:
-Já pensaste em mandar para lá um tirito, ninguém sabe se está lá uma vaca ou um turra e assim amanhã teríamos banquete do bom.

Após alguns minutos de conversa em surdina, para o ajudar a passar o tempo, parti de novo e embrenhei-me pelo interior da tabanca em direcção a outro posto de sentinela.
Surgiu um tiro, sem resposta imediata, a assustar a noite e eu deixei-me sonhar com o saboroso bife que no dia seguinte teria no prato...se o sentinela tivesse acertado na vaca.

Ao chegar junto do outro, o camarada estava tenso e preocupado, um tiro, no silêncio da noite, era mau presságio, eles estariam por perto. O tiro talvez fosse o sinal. Acalmei-o como pude, sem lhe contar a conversa tida momentos antes.

No dia seguinte, ninguém soube explicar, mas apareceu uma vaca coxa. O Aliu Baldé, Chefe de Tabanca e Alferes de 2ª linha, armou grande barafunda, pois tinha perdido uma vaca e queria saber quem a feriu, para levar o justificado castigo. Como ninguém se acusou e... para não perder tudo vendeu-nos a vaca pelo preço da chuva. O almoço sonhado ia acontecer.

Só que o IN também queria tomar parte no banquete e fez-se convidado.

À hora prevista, lá estava junto à 2ª cerca, sabendo que a fome e o apetite por um bom bife eram factores que nos iriam criar possíveis desatenções. Tal aconteceu de facto.

O Sol já ia alto e queimava os dorsos descamisados. O amanho da vaca foi longo e atrasou o esperado almoço. Os jagudis, no cocuruto das árvores, espreguiçavam-se e afiavam o bico. Também eles se fizeram convidados.

Toda a gente fazia fila junto ao grelhador onde crepitava o fogo, enquanto o Valente virava e revirava os bifes e o Alves aprontava as estaladiças batatas fritas. Os grandes e apetitosos nacos de carne eram um regalo para os olhos. Pelas narinas subiam odores que inebriavam o cérebro e faziam sofrer o estômago, pela longa espera do tão esperado pitéu. Numa mão a marmita, na outra o copo de vinho fresco, enquanto a cerveja (complemento mais que necessário) se escondia no bolso e o IN à espreita, junto ao arame farpado.

Os postos de sentinela foram desguarnecidos. Apenas o Silva algarvio ficara no seu abrigo, devido a forte dose de paludismo. Os putos, pulavam a nossa volta de olhos arregalados. Também eles iam ter restos melhorados, como paga por nos lavarem as marmitas. A população (*) escondia-se do sol dentro das moranças e espreitava a festa que o branco fazia.

Chegam convidados indesejáveis

De repente os putos desaparecem. O silêncio impera. Apenas a nossa algazarra de gente feliz, que antevia um lauto banquete.

Começa a distribuição com o Valente a resmungar_
- Calma, que chega para todos!

Eu esperava pacientemente com a Maimuna ao colo, que chegasse a minha vez. Tinha já surripado umas febras e bebido uns copos (vantagem de enfermeiro).

Os primeiros felizardos, contrariamente ao que sempre faziam – irem de imediato para o seu posto de sentinela – sentam-se à sombra do gigante poilão e começam a saborear o petisco, quando se houve uma rajada de G3 e logo de seguida, como que por encanto, de todos os lados da tabanca, surgem costureirinhas a vomitar o seu temido trac-trac, seguindo-se o troar dos rebentamentos do morteiro 60 e das bazucadas

Os bifes e as batatas fritas voaram pelo ar. Toda a gente a correr para os postos. Há que correr com os malandros que nos querem estragar o almoço.

Felizmente o Silva algarvio, deitado à porta do abrigo, esperava que alguém lhe levasse o seu almoço, para o qual não teria apetite tal era o seu estado de saúde. Estranhamente vê uns vultos, de uniforme diferente, aproximarem-se da cancela em arame farpado, abri-la e tentarem esconder-se por detrás de uma morança. Nem hesita em abrir fogo, provocando a enorme barafunda que se seguiu.

Eles tinham o esquema bem montado. Concentraram as suas forças de penetração na entrada da picada para Buba e na entrada da picada para Cumbijã. Do lado de Aldeia Formosa, estavam emboscados perto de Bakar Dado, para impedir a chegada de eventuais reforços. Em redor de toda a Tabanca estavam atiradores isolados que faziam fogo de costureirinha, com balas incendiárias, para desviar as atenções, enquanto outros forçavam a entrada nos portões.

Atingiram onze moranças que de imediato começaram a arder aumentando a confusão. Atingiram também o paiol das munições, o que naturalmente originou um festival de rebentamentos.




Mampatá > 3 de Novembro de 1968 > Rescaldo do ataque da hora de almoço

Tal como entraram, rapidamente tiveram de sair, ao sentirem-se descobertos, perante a reacção da nossa gente bem apoiada no Pelotão de Milícia, comandado pelo Chefe de Tabanca, Alferes Aliú Baldé (**) que coordenou de peito aberto a defesa, do portão de Cumbijã, de morteiro 60 na mão (***). Logo de seguida dirigiu-se ao portão de Buba e continuou a festa. Um verdadeiro herói, que tanto quanto soube, viria a falecer em combate cerca de dois anos depois, também na defesa de Mampatá, quando a zona aqueceu, com a reabertura de frente de Colibuia e Cumbijã.

Estranha foi a minha reacção. Assustado com o fogachal e as labaredas que surgiam de todos os lados das moranças a arder, em lugar de me proteger e aguardar pelo fim da contenda, como era e continuou a ser, meu hábito, larguei a bebé, no abrigo do posto de rádio e desatei a correr pela tabanca, perguntando aos gritos, se havia feridos.

Recordo-me bem da razão do meu estado de espírito: Tinha comigo apenas dois frascos de soro, algumas agulhas e linha de sutura, meia dúzia de Zimema K e pouco mais. Entrei em pânico. A estrada para Aldeia Formosa, estava cortada pelo IN e eu senti-me sem nada para poder valer aos colegas e à população.

Foram vinte minutos terríveis, que se saldaram num grande susto e... moranças queimadas, pois nem um ferido para amostra.
- Já estou apanhado! - Foi o meu pensamento íntimo, logo depois e que me obrigou a rever a forma de estar nos teatros de guerra que se seguiriam.

A nossa reacção obrigou o IN a refugiar-se rapidamente na mata e continuar a flagelação, mas um tanto descontrolada. Tudo acabou em bem. Apenas se atrasou um pouco a hora da petiscada, repetida nos dias seguintes, mas agora com cuidados redobrados.

Afinal tivemos a vaca da sorte a proteger-nos para que pudéssemos saborear a vaca verdadeira.


Mampatá > 3 de Novembro de 1968 > Eu e a minha Maimuna no rescaldo da morança queimada

Fotos: © Zé Teixeira (2007). Direitos reservados.

Subida de popularidade

Como resultado extremamente positivo para a minha pessoa, foi a forma como a partir daquela altura a população em geral me acolheu e o carinho com que me tratavam. Se já era bom, ficou excelente.

Tempos mais tarde, quando a Companhia recebeu ordens para seguir para Buba, ficando apenas um Grupo de Combate na Chamarra, por mais algum tempo, enquanto Mampatá Forreá era reforçado com o 2º Pelotão de Milícia e tropa estacionada seguia também para Buba. O Chefe de Tabanca foi pedir ao Comando em Aldeia Formosa a minha continuidade em Mampatá, o que foi recusado. No entanto fui colocado na Chamarra com o compromisso de vir duas vezes por semana a Mampatá, tratar a população e ensinar o enfermeiro africano que lá foi colocado.

Ao procurar saber das razões do interesse em mim, a Jobo (Maria) disse-me:
- Naquele dia em que fomos atacados na hora do almoço, vimos fermero a correr debaixo de fogo, para junto dos abrigos da população a perguntar se havia feridos. Fermero é amigo da gente.

Quando cerca de mês e meio depois, deixei definitivamente a zona, ao passar por Mampatá, deixei algumas emocionadas lágrimas para regar aquela terra tão linda, ao receber as despedidas com abraços beijos e cânticos e uma população amorosa, com quem tanto aprendi em cerca de meio ano de convivência.

... E lá ficou a minha Maimuna, a bébé que ensinei a andar, que me seguia para todo o lado e que partilhou este drama comigo. Também lá ficou a outra bébé, a quem salvei a vida quando, regressada de Bissau com 42 graus de temperatura e desenganada pelo médico, eu a recuperei. A Mudjer de fermero como a mãe teimava em afirmar. Veio trazer-ma na despedida. Queria que a levasse comigo:
- Tua mudjer, leva minina.

Quantas vezes me levou uma caneca de água fresquinha, trazida da fonte, que ficava para além do perímetro de segurança da Tabanca´:
-Mudjer de fermero na bai buská água pra fermero.

Quantas vezes vinha com um cacho de bananas à cabeça;:
-Mudjer de fermero, parte banana.

Se à noite me descuidava e não ia dar um beijinho à bebé, quando passava à porta, a caminho do meu abrigo, fosse a que horas fosse, lá estava a mãe:
Fermero tu ká na vem parte mantenha a tua mudjer! - Entrava dava um beijo e ficava conversar até às tantas, em família.

Os pesadelos que me perseguiam, de arame farpado, sinal impeditivo de liberdade e de perigo que rodeava as aldeias, das emboscadas, dos ataques dirigidos a nós, tugas, mas que afectavam aquela gente indefesa, dos feridos que tratei e dos que vi morrer sem poder ajudar, dos que morreram sem a mais pequena hipótese de se safarem, dos momentos de ansiedade que vivi, tudo se tem vindo a dissipar, mas a imagem das duas crianças no meu colo, com as mães abraçadas a mim, vai-me acompanhar sempre, porque retrata e reflecte os momentos mais belos da minha passagem pela guerra.
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Notas do autor:

(*) Creio bem que a população estava avisada e refugiou-se nos abrigos e, só tal facto impediu que houvesse mortos e feridos, tal a proximidade.

(**) Tive o grato prazer de reavivar a sua memória, quando em 2005 reencontrei a sua filha Naná, mudjer do actual Régulo da Tabanca de Sinchã Shambel (ele mesmo, também milícia em Mampatá no meu tempo), que resultou do reordenamento de Contabane, após a destruição desta tabanca na noite de S. João em 1968.

(***) Na minha louca corrida à procura de eventuais feridos, pude testemunhar a acção deste homem, na contenção do ataque.
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Nota do editor:

(1) Vd. último post desta série> 5 de Agosto de 2007> Guiné 63/74 - P2030: Estórias do Zé Teixeira (18): A G3ertrudes encravada que salvou duas vidas.

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