domingo, 5 de agosto de 2007

Guiné 63/74 - P2030: Estórias do Zé Teixeira (19): A G3ertrudes encravada que salvou duas vidas (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

Guiné > CCAÇ 2381, Os Maiorais ( Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70) > O 1ºCabo Enfermeiro Teixeira, em Empada, em 1969, com a sua namorada, a G3ertrudes, com quem irá manter um conflituosa relação que acabará mal. Quem lhe manda, entretanto, um grande Alfa Bravo (abraço) é um dos antigos Maiorais, o ex-Fur Mil Armas Pesadas Samouco, José Manuel Samouco.

Como o mundo é o pequeno e o nosso blogue já é grande, conheci-o pessoalmente, na Praia da Areia da Areia, a caminho da Praia de Vale de Frades, no nosso passeio matinal. Ele reconheceu-me, do blogue... Demos um grande abraço e ficámos um bom bocado à conversa. Ex-bancário, ex-dirigente do Sindicato dos Trabalhadores Bancários do Sul e Ilhas (durante 10 anos), acaba de reformar-se, prometendo mandar algum material documental para o blogue. Tem casa aqui na Praia da Areia Branca. Falámos, inevitavelmente, dos Maiorais, do Alf Belo e do enfermeiro Teixeira, do blogue, de uma próxima ida à Guiné... Ao fim da tarde, ligo o computador e temos o Zé Teixeira em cena... Nem de propósito! Telepatia ? Boa continuação de férias para o pessoal da Tabanca Grande que se pode dar a esse luxo! Desculpa, Carlos, de meter o bedelho no teu serviço... (LG).

Foto: © Zé Teixeira (2006). Direitos reservados.


A G3ertrudes encravada que salvou duas vidas

por Zé Teixeira

O Encontro

Na quinzena de campo (IAO) que antecedeu a partida para Guiné, deram-me uma companheira, a namorada que, afirmaram, me ia acompanhar durante todo o tempo em que ia estar na guerra. Se houvesse alguma infelicidade, me acompanharia até ao caixão. Era uma G3 ou a G3ertrudes.

Disseram-me também para a tratar com carinho. Cuidar dela era cuidar de mim próprio.

1º. Trazê-la sempre limpa e asseada, sobretudo o cano, para que a baba, ao tentar sair, furiosa por não conseguir devido a sujidade, não rebentasse o cano. Pois, na pior das hipóteses, as tiras de aço voltavam-se para trás e atingiam o crânio do atirador, mandando-o de volta no sobretudo de madeira.

2º. Pôr-lhe creme (óleo) nas partes mais sensíveis, para responder rapidamente aos estímulos.

3º. Sempre travadinha, para não fazer asneiras.

4º. Nunca a abandonasse, pois, se perdida, dava origem no mínimo, mais meio ano de comissão. O importante era chegar, sempre, ao aquartelamento com uma G3ertrudes.

Durante os primeiros três meses, foi de facto, a minha companheira preferida e inseparável. Pendurada no meu ombro, ao lado da bolsa de enfermeiro. Deitada a meu lado à sombra de uma árvore protectora do sol e do IN, ou no chão de cimento na caserna em Ingoré.

Antes da partida, prometera a mim mesmo não lhe tocar nas partes sensíveis, porque vomitavam fogo, matavam vidas e isso não fazia parte da minha missão como enfermeiro e muito menos dos meus planos. Cantei de alegria, quando soube que as sortes me tinham destinado a ser enfermeiro, convencido que escaparia à guerra dura e que com o meu trabalho iria minimizar dores e, quem sabe, salvar vidas.

Da guerra dura e crua, não escapei, mas cumpri, apesar dos parcos conhecimentos da arte de enfermagem que me proporcionaram, a missão que me destinaram, com dedicação.


O início do fim de uma relação impossível

Ao fim de três meses de companhia dedicada, algo de grave se passou que me levou a repudiar a G3ertrudes para sempre.

Estávamos em plena época das chuvas. Partimos de Buba às seis da matina com destino a Aldeia Formosa , terra até então desconhecida, onde deveríamos chegar à tarde.

A CCAÇ 1792 veio buscar-nos. Os Lenços Azuis foram, assim, testemunhas no meu baptismo de fogo em aquartelamento. Mal chegámos (tínhamos ido ao seu encontro), fomos recebidos com fogo cruzado das duas margens do Rio, mas foi só o susto. Uma amostra do que nos ia esperar no futuro.

Para além de uma enorme coluna de viaturas carregadas com mantimentos, seguiam três obuses de 14 cm. Toneladas de aço a atravessar lamaçais contínuos, pontes montadas e desmontadas por nós e o IN à espreita.

Ao meio da tarde, depois de uma tempestade de... abelhas, quando tínhamos andado, apenas uns três quilómetros, uma traiçoeira mina destrói a 5.ª viatura, a das transmissões, levantando uma nuvem de lama. As transmissões terminaram a sua missão.

Ficámos isolados do mundo. Aparentemente, os quatro camaradas que voaram com o sopro, ficaram apenas combalidos, mas um deles, o rádiotelegrafista, projectado com o forte impacto, ao cair, ficou ferido interiormente. A morte foi-se aproximando lentamente. A vida dele caminhava para o fim devido à perda de sangue, que não podíamos controlar. Só uma evacuação urgente o salvaria. Tínhamos ficado sem comunicações.

Foram tremendamente dolorosos, para mim e para os enfermeiros das duas companhias, viver estes momentos, horas, de vida, a lutar sem armas, pela vida de um camarada que se apagava. Ele sentia que as forças lhe estavam a escapar. Nós sentíamo-nos impotentes para o salvar. Só o milagre do helicóptero, que não aparecia, porque ninguém sabia, que aquela jovem vida se estava a apagar.
- Já não vejo ! - gritava.
- Ajudem-me a levantar - balbuciava ele, mesmo no fim, com a esperança de ainda conseguir recuperar forças e poder gritar bem alto Safei-me! Mas não. Não era possível. O seu destino fora traçado, quando alguém pegou num lápis e riscou o nome dele, assinalando-o para ser mobilizado para a guerra. A guerra que ele não queria...

O sol começou a esconder-se como que envergonhado e o camarada irmão disse adeus à vida, serenamente, sem pressas, em silêncio...

Na azáfama de tratar os feridos, esqueci-me da G3ertrudes. Foi posta de lado, esquecida, algures. Agora, era preciso procurá-la. Onde? Tinha-lhe perdido o lugar.

Apareceu uma abandonada junto a uma árvore. Deitei-lhe a mão. Estava safo. E segui caminho.

Uma noite sem sono, com milhares de mosquitos a perseguirem-me e o IN à espreita.

Até que o Sol raiou de novo e com ele a ordem de marcha. A partida para o desconhecido. Chão que eu nunca pisara. Lama e mais lama. Mata cerrada. Grandes palmeiras que furaram a selva verdejante à procura do sol, apontavam o céu...

Não demorou muito a aparecer o IN. A coluna era demasiado longa e pesada. Lentamente lá se ia movendo à procura do destino. Deu para emboscarem a frente. Recuaram face à forma como ripostamos e voltaram a atacar a retaguarda.


O meu baptismo de fogo na mata

Deitado sobre os rodados das viaturas, com o coração a bater como nunca o tinha sentido, escutava o tiroteio que me rodeava, ao ritmo dos rebentamentos das morteiradas que me faziam vibrar violentamente os tímpanos. A G3ertrudes, a meu lado muito quietinha, quando senti que estava a ser incomodado directamente. Alguém estava a querer brincar às guerrinhas comigo. As balas assobiavam muito por perto e vinham do alto. Olhei para as palmeiras e vislumbrei fogachos de luz.

A raiva contida, pela morte do camarada, veio ao de cima.
- Ah! G3ertrudes de um raio! Anda cá.

Apontar, disparar e... um tremendo coice, um som seco e abafado, seguido de um ruído estranho.

À minha frente jazia a G3ertrudes, com o cano esventrado em tiras. Uma espécie de fole, ou balão.

Fui desarmado para que pudesse cumprir o voto de não matar na guerra para onde me atiraram sem me perguntar.

Deus esteve comigo neste momento. Contrariamente ao que me disseram na instrução de armamento, o cano não abriu em leque, o que a acontecer, muito provavelmente se viria espetar no meu crânio e era a morte certa. O tapa-chamas foi o impecilho que me salvou a vida. Uf! Desta já escapei.

A G3 que no dia anterior tinha encontrado abandonada pertencia ao Salvaterra Bernardes (*), natural de Salvaterra de Magos. Um jovem português, deficiente motor e deficiente mental, que assassinos (não encontro nome mais apropriado)´apuraram para todo o serviço militar, fez a recruta e a especialização como atirador e veio cair na CCAÇ 2381, quando já aguardávamos embarque para a Guiné.

A arma na mão deste homem, não servia para nada. Não tinha utilidade prática. Limpeza para quê? O cano estava cheio de areia. A bala encontrou resistência e provocou o seu rebentamento, mas estava lá o tapa-chamas.

Salvou-me a vida, impedindo o rebentamento em leque e... talvez, assim se tenha salvo a vida do IN que procurava atingir-me.

Restou apenas encolher-me e esperar que a fraca pontaria do adversário desse resultado, o que aconteceu para meu bem.

Não houve feridos de nossa parte. A coluna seguiu caminho.


O divórcio

A meio da tarde a aviação localizou-nos, o héli veio buscar os feridos do dia anterior e a vida continuou. Chegamos ao destino ao fim da tarde, ou seja vinte e quatro horas depois do previsto. Localizei a minha arma na mão do Salvaterra, fiz o relatório que me exigiram para abater a arma destruída e... para não mais ser tentado a fazer fogo e correr o risco de matar vidas humanas, fui entregar a minha arma ao quarteleiro, sob a ameaça do capitão que me daria uma porrada se me apanhasse sem a minha G3ertrudes.

Fui só e apenas enfermeiro durante o resto da comissão. Afinal era a minha missão (2).


Zé Teixeira
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Nota do autor:

(*) Vd. a descrição que o José Belo faz do Soldado Salvaterra [no post anterior]:

Pobre Salvaterra que aparentava ser uma figura de comédia. Uma caricatura barata de Soldado. Desde o quico, às botas, do cinturão à G3, tudo nele estava mal vestido, mal assentado. Um sorriso contínuo, não irónico, mas de assustado nervoso. Uma cara continuamente contorcida por pequenos espasmos, enquanto a saliva lhe escorria continuamente de um dos cantos da boca.

Sofria de grave doença motora, atrofiamento muscular, acompanhados de acentuada debilidade mental. Era totalmente impossível ao pobre do Soldado Salvaterra controlar os mais simples movimentos. Acertar o passo pelos outros quando marchava, coordenar os movimentos dos braços, e muito menos, com o movimento das pernas.

Na ordem unida tornava-se o momento certo das gargalhadas gerais, perante a crescente irritação, e falta de paciência, dos responsáveis. Nas aulas de ginástica o circo repetia-se! Tropeçava continuamente sempre que pretendia correr. Caía desamparado, ao solo, ao pretender saltar um simples degrau de escada. O primeiro degrau da escada!
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Notas do editor:

(1) Vd. último post desta série > 18 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1853: Estórias do Zé Teixeira (17): Quando não se acautela a vida, a morte pode espreitar

(2) Vd. post de 14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi

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