segunda-feira, 23 de julho de 2007

Guiné 63/74 - P1987: Blogue-fora-nada: O melhor de... (2): Apanhados pelo macaréu e mortos no Rio Geba (Sousa de Castro, CART 3494, Xime, 1972)


Guiné-Bissau > Zona Leste > Xime > 1997 > As traiçoeiras águas do Rio Geba, a seguir à confluência com o Rio Corubal, e no início do troço conhecido como o Geba Estreito. Era aqui se podia apreciar o espectacular e ao mesmo tempo assustador fenómeno do macaréu. No Rio Amazonas, Brasil, é conhecido por pororoca [a propósito, vejam este espectacular vídeo, no You Tube, de uns malucos a fazer surfing, em Março de 2003, sobre a maior onda do mundo, a pororoca, no Rio Amazonas: Pororoca Surfing].

Em termos simples, o macaréu é uma onda de arrebentação que, nas proximidades da foz pouco profunda de certos rios e por ocasião da maré cheia, irrompe de súbito em sentido oposto ao do fluxo da água. Seguida de ondas menores, a onda de rebentação sobe rio acima, com forte ruído e devastação das margens. Pode atingir vários metros de altura, mas tende a diminuir a sua força e envergadura à medida que avança.

Neste rio, o Geba, ou nesta parte do rio, o Geba Estreito, que ainda é de água salgada, três soldados da CART 3494, aquartelada no Xime, camaradas do Sousa de Castro, desapareceram, em 10 de Agosto de 1972, apanhados pelo macaréu quado se dirigiam de lancha para um patrulhamento ao Mato Cão. Só o cadáver de um foi recuperado... Mais uma erro (criminoso) de um dos nossos brilhantes oficiais superiores que, desastradamente, conduziram aquela merda de guerra... (LG).

Foto: © Humberto Reis (2005). Direitos reservados.


Texto publicado originalmente no Blogue-fora-nada (*). Retomado agira, na série Blogue-fora-nada: O Melhor de ... (**), em homenagem ao nosso tertuliano nº 2.

Memórias da Guiné, Xime (1972-1974)
por Sousa de Castro (***)

Xime. CART 3494 (****). 10 de Agosto de 1972.

A companhia nesse dia recebeu instruções para fazer um patrulhamento através do rio Geba, em lanchas, e depois entrar no mato e seguir para Mato Cão. Tínhamos lembrado ao Major de Operações, [do BART 3873, com sede em Bambadinca,] que a hora que ele, major, determinara para sair, não seria ideal, já que dentro de pouco tempo passaria o Macaréu (1).

Mesmo assim ele entendeu que haveria tempo de sair antes de passar o Macaréu. Os pelotões envolvidos nesse patrulhamento não tiveram outra alternativa senão obedecer. Os soldados, pela experiência adquirida, sabiam que uma desgraça iria acontecer. Dá-se então aquilo que todos esperavam, e que não se podia evitar: são apanhados pelo Macaréu.

A embarcação virou e então cada qual tentou desenrascar-se como pôde do perigo de morrer afogado. Muitos não sabiam nadar. Depois com todo peso de armamento que transportavam, para além da farda que envergavam, viram-se e desejaram-se para se safarem, mas nem todos o conseguiram. Assim morreram afogados três camaradas, sendo um da Póvoa de Varzim, casado, com uma filha, outro de Famalicão, este solteiro, e um terceiro que já não me recordo de onde era.

Nesse mesmo dia, todo pessoal da companhia desdobrou-se em esforços tentando encontrar os que desapareceram. Só apareceu o de Famalicão, no dia seguinte, já em estado de começo de decomposição.

Normalmente a companhia fazia diariamente segurança à estrada que ligava o Xime a Bambadinca. Era necessário ir buscar o pelotão que fazia essa mesma segurança. Eu era radiotelegrafista, não podia sair do quartel, mas vendo o estado muito abatido devido ao cansaço em que os transmissões de infantaria se encontravam, peguei no transmissor AVP-1 e na G-3 (2), ofereci-me como voluntário e fui juntamente com o pelotão buscar o pessoal que fazia a segurança à dita estrada.

Era de noite, então dá-se aquilo que eu não previa. Uma vez no local para agrupar o pessoal que fazia segurança da estrada, vi-me envolvido numa situação para mim única. Começa um forte tiroteio. Supondo ter sentido algo a mexer, eu, ao saltar da viatura, sem querer fiz um disparo, com pessoal na linha da frente. Fiquei preocupadíssimo, poderia ter atingido algum camarada meu, o que não aconteceu felizmente.

Ao vir para o quartel, antes de entrar, o Furriel Carda, que era de Ponte de Sor (era quem comandava o pelotão que foi buscar a segurança no qual eu estava integrado) mandou parar as viaturas e disse:
- Alguém que está na minha viatura disparou um tiro. Quero saber quem foi. Ninguém quer dizer? É fácil. Cheira-se a arma de cada um e descobre-se já.

Como havia um alferes periquito (3), e a maior parte da malta pensando ter sido ele quem deu o tiro, acharam por bem que o melhor seria esquecer e ir embora para o quartel. Será que esse alferes também fez algum disparo? Ainda hoje estou na dúvida.

Domingo, 27 de Setembro 1998. Sousa de Castro

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Notas do S.C.:

(1) Sublevação brusca das águas, que se produz em certos estuários no momento da cheia e que progride rapidamente para as nascentes sob forma violenta, capaz de fazer estragos em pequenas embarcações.

(2) Espingarda automática usada pelas nossas tropas.

(3) Militar acabado de chegar à Guiné.

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Notas de L.G.:

(*) Vd. post de 22 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VI: Memórias do Xime, do Rio Geba e do Mato Cão (Sousa de Castro) (extractos)

(**) Vd. post de 11 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1945: Blogue-fora-nada: O melhor de ... (1): Nunca contei uma estória de guerra aos meus filhos (Virgínio Briote)

(***) O Sousa de Castro, ex-1º Cabo Trms, da CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/74), do BART 3873, é histórica e cronologicamente o nosso tertuliano nº 2. E este foi o texto nº 6 que se publicou relacionado com a Guiné 63/74...

(****) Vd. post de 15 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1664: Composição da CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/74) (Sousa de Castro):

Eis os nomes dos três camaradas mortos ou desaparecidos no Rio Geba, nesta tragédia do dia 10 de Agosto de 1972:

Soldado Abraão Moreira Rosa (desaparecido)

Soldado José Maria da Silva e Sousa (morto)

Soldado Manuel Salgado Antunes (desaparecido)

2 comentários:

António Duarte disse...

Boa noite,

Não resisto a nomear a "sumidade" do dito major - Jales Moreira.

Teve um processo, que segundo suponho foi arquivado e como não lhe foi possível gozar férias para quando estavam marcadas, teve como prémio uma autorização especial para vir passar o Natal de 72 à "Metrópole".. de férias (no tempo do Spínola ninguém podia vir de férias nessa época).

"Merecidas" digo eu.

Só um ignorante é que colocava tanta gente armada dentro de um "sintex", que tinha lotação ultrapassad e o barqueiro do Xime avisou-o.

1 abraço para todos e já agora "viva a peluda".
A Duarte

Luís Graça disse...

Meu caro António Duarte:

A Zona Leste, e o Sector L1 (Bambadinca), em particular, parece não terem sido bafejados pelos nossos deuses da guerra. Ou simplesmente, pela sorte. Não sei exacatamente o que se passou por outras zonas e sectores. Mas o panorama não era famoso. Já há tempos o João Tunes nos evocou aqui o "seu" tenente-coronel que, no Pelundo, lhe deu uma porrada, por ele se recusar a "dar um murro nos cornos" do seu cabo de transmissões que saltou o muro do quartel, para ir às bajudas...

Eu conheci os oficiais superiores de dois batalhões que passaram por Bambadinca: o BCAÇ 2852 (1968/70) e o BART 2917 (1970/72)...Tu conheceste pelo menos o teu, o BART 3873 (1972/74)... Não sei se houve mais, deve ter havido mais um, o que nos rendeu...

No comando destes três batalhões, parece ter havido oficiais superiores que nem para básicos serviam! A porra toda é que eles acabaram por mandar para o outro mundo, sem honra nem glória, alguns camaradas nossos! Por incompetência, por falta de visão estratégica, por falta de tomates!... Alguma vez algum desses gajos andou contigo no mato, com a canhota na mão ? Aponto-te apenas um, no meu tempo: o Polidoro Monteiro, tenente-coronel...

A porra toda é que esses gajos vão morrer na cama, de consciência tranquila, impunemente! Nunca ninguém lhes pediu contas... E aparte uma porrada ou outra (do Spínola, claro!), devem ter o baú cheios louvores, medalhas e condecorações! Foi esta brigada do reumático (mental) que nos conduziu para o barranco de cegos durante 13 anos!...

É claro que há as honrosas excepções: tivemos oficiais do QP, de grande gabarito, de grande coragem, de grande humanidade, de todas as armas, a começar por capitães e majores, que honraram as melhores tradições do exército português... Mas o resto, meu Deus!...

De Lisboa poara o Xime, com amor e saudade... O Henriques, ex-Fur Mil At Armas Pesadas, CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71). Não confundir com o Luís Graça, editor do blogue, que esse, em princípio, não pode (ou não deve) emitir opiniões pessoais ou fazer juízos de valor...