sábado, 7 de julho de 2007

Guiné 63/74 - P1933: Questões politicamente (in)correctas (30): os cordeiros e os lobos de Mueda ou a adrenalina da guerra (Luís Graça)


1. Mensagem do Luís Graça que raramente tem tempo e vagar para escrever as suas coisas pessoais neste blogue colectivo de que é editor. Hoje invoca outro estatuto, fazendo publicar um comentário, pessoalíssimo, sobre o conteúdo de um post do Tino Neves (1).

Quem terá sido o grafiteiro (avant la lettre...) que escreveu em 1968/70: "Em Mueda, os cordeiros que chegam, são lobos que saem" ? (1)

É um pensamento que é válido para todas as situações de guerra. Os jovens, quase imberbes, os meninos de sua mãe (como escreveu o grande Pessoa) (2), que chegam à frente de batalha, ainda são cordeiros, inocentes, virgens, imaculados... O horror, a violência da guerra, o matadouro, irão transformá-los em lobos, em duros, em violentos, em conspurcados... Não necessariamente predadores, assassinos, criminosos... (que é o estereótipo que o ser humano ainda guarda do pobre do lobo mau... do Capuchinho Vermelho!).

Mas há, seguramente, uma perda de inocência: nenhum de nós foi para a Guiné e veio de lá impunemente, igual... Os nossos amigos e familiares deram conta disso: já não éramos os mesmos, nunca mais fomos os mesmos...

Acho que é isto que o inspirado autor do mural quis dizer. É claro que há também aqui a dose habitual de bravata e de fanfarronice: é uma frase para intimidar os checas, os piras, os maçaricos, os novatos...

Também os militares, profissão de risco, têm a sua ideologia defensiva, as suas crenças, os seus talismãs, os seus mesinhos (usavam-nos os guerrilheiros na Guiné, em Angola, em Moçambique, não obstante a sua formação racionalista, marxista-leninista, dita revolucionária)... A bravata e a fanfarronice, além das praxes e do álcool, ajudavam-nos, a todos nós, a lidar com o medo, as situações-limite, a morte, o sofrimento, físico e moral, a impotência, o desespero…

Não há, nunca houve, super-homens, super-heróis: há apenas deuses, que inventámos, à nossa imagem e semelhança, e para quem transferimos qualidades e defeitos humanos... Que, aliás, inventamos todos os dias (no cinema, na internet, na televisão, nos jogos de vídeo) … Precisamos dos mitos, das lendas, da efabulação, do pensamento mágico, mesmo sob a roupagem (enganadora, falsamente securizante) da ciência e da tecnologia.

Daniel Roxo (1) deve funcionar, para os nostálgicos do paraíso perdido do apartheid (Moçambique, Rodésia, África do Sul...), como o Che Guevara que (ainda) funciona como um ícone, tanto para os jovens sem ideologia de hoje, como para os cotas, os seus pais e tios, os velhos revolucionários românticos que queriam, nos anos 60 e 70, incendiar o mundo, criando um, dois, três, muitos Vietnames!...

Há homens que são incapazes de deixar de combater...Mesmo, no limiar da decadência física, a adrenalina da guerra é mais forte que a razão... É um pulsão fortíssima. O que terá levado este e outros compatriotas nossos a alistar-se nas forças especiais do regime racista da África do Sul e a morrer em Angola por uma pátria que não era a sua ? Poderei perguntar o mesmo em relação aos cubanos que morreram, longe de casa, em Angola (mas também na Guiné).

Dir-me-ão que lutavam por um mundo em que acreditavam, por uma bandeira, por uma causa que era a sua razão de vida... Outros dirão ainda que eram simples mercenários... Sou céptico: o ser humano é motivacionalmente muito complexo e manipulável... Creio que a guerra também pode ser viciante, havendo homens que nela entram e dela nunca mais saem... A guerra pode até ser uma forma (heróica) de suicídio. E há estóorias de homens que, escapando vivos da guerra, não sobrevivem à paz...

__________

Nota de L.G.:

(1) Vds. post de 6 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1928: Estórias de vida (3): Sérgio Neves, meu irmão: em Moçambique, o Mercenário, amigo do lendário Daniel Roxo (Tino Neves)

(2) É, de facto, um dos mais belos poemas da poesia universal de todos os tempos:

O Menino da sua Mãe
por Fernando Pessoa (126)

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado
- Duas, de lado a lado-,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue,
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! Que jovem era!
(agora que idade tem?)
Filho unico, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
O menino de sua mãe.

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve
Dera-lhe a mãe. Está inteira,
É boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
Que volte cedo, e bem!
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino de sua mãe.

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