domingo, 24 de junho de 2007

Guiné 63/74 - P1873: Reflexão sobre Fátima, o drama da guerra e o conflito com a Fé que nos inculcaram (Zé Teixeira)

Mensagem do nosso camarada Zé Teixeira, de 7 de Maio último:

Comandante e comandante adjunto para quem faço votos de bom, profícuo e agradável trabalho: Saúde, paz e felicidade!

Junto um texto sobre a Fé dos nossos militares e familiares e a forma como a punham em prática durante a guerra.

Se entendereis que merece ser publicada . . . o prazer será meu.

Fraternal abraço
J.Teixeira
Esquilo Sorridente


O drama da Guerra e o conflito com a Fé que nos inculcaram


Ontem, dia seis de Maio, ao passar na IC1, perto de S. João da Madeira, tive oportunidade de apreciar um espectáculo deslumbrante. Uma procissão de gente, talvez milhares, que na berma da estrada caminhavam em peregrinação, com destino a Fátima.

Gente nova, menos nova, velhos, mulheres e homens, com bom calçado, de chanatos ou descalços. Em grupos organizados, com carros de apoio, ou colados. Gente de Fé, caminhava a passo firme e apressado para chegarem a tempo no dia 12 e participarem nas cerimónias religiosas. Alguns em silêncio (promessa de não falar), outros fazendo alguns dias a pão e água, outros rezando e cantando. Ainda outros em amena cavaqueira com algum conhecido na jornada. Movidos por razões de Fé, muitos em cumprimento de promessas que, não podendo aceitar, pois com Deus não se negoceia, não contesto, pois sei que perante as dificuldades, os problemas, e sofrimento, as reacções que a fé imprime a cada um, só ele as sente. Daí o meu o profundo respeito.

Ao apreciar este profundo movimento de Fé, a minha mente saltou para os anos 60/70.

Para a minha avó que em 1965, com 70 anos partiu no dia 2 de Maio, de uma aldeia, algures a 40 Km a norte do Porto, com o mesmo destino e os mesmos objectivos. Dar graças a Deus, pela intercessão da Virgem Maria, pelo facto do meu irmão mais velho, ter regressado da tropa sem ter ido à guerra (expressão que ela usava). Da sua promessa de repetir a façanha, se eu tivesse a mesma sorte e ou pelo menos regressasse são e salvo. Da sua atitude de quando eu parti para a tropa, ir, ao Domingo assistir a duas missas: uma por ela e a outra por mim, pois segundo afirmava, eu era um bom malandreco e facilmente me iria esquecer do meu compromisso de cristão. Passou a ser para mim o meu anjo da guarda o que muito a envaidecia.

Da sua morte em 1968, quando eu pensava estar quase safo da ida ao ultramar, pois a escola de enfermeiros da incorporação seguinte estava a sair. Desapareceu o meu anjo da guarda e oito dias depois estava mobilizado para a Guiné.

A divagação dolorosa continuou a perseguir-me.

Quantas avós, mães, pais, esposas, namoradas, prometeram trilhar estes caminhos, na esperança de que Deus por intermédio da Virgem os (as) ia atender. Quantas avançaram até Fátima ou outro Santuário, dos muitos espalhados por este País, para mais perto de Deus, aí fazerem as suas orações de acção de graças e os seus pedidos e promessas.

Quando parti para a Guiné, ainda no Niassa, fiquei impressionado ao ver muitos companheiros da viagem com o terço pendurado ao pescoço, qual amuleto ou talismã protector, ou então a medalhinha a quem se dava devotados beijos.

Ao chegar à Guiné, mais propriamente a Ingoré, apreciei e comecei a acompanhar um grupo razoável de velhinhos que se reuniam à noite no refeitório para rezarem o Terço. Ao qual se foram juntando outros elementos da minha Companhia.

A Fé que me foi transmitida gerava um agudo conflito dentro de mim, pois fora sempre um desafio à construção da paz entre os homens e eu aceitara, como o cordeiro que vai para o matadouro, partir e viver uma guerra que em consciência rejeitava, mas que o dever para com a Pátria (tal como me tinha sido inculcado, quer na escola, quer na família) me obrigava a fazer a guerra.

No meu Diário escrevi um dia:

...Senti mais uma vez a presença do Senhor em mim quando ia na coluna. Muito calmo, com atenção a todos os lados, sempre nos rodados das viaturas para não ser atingido por uma 'bailarina'.

As Vossas orações valem imenso. Quando sinto as balas e granadas passarem por alto pergunto a mim mesmo se não são as vossas orações.

Odeio.. Odeio os homens que se guerreiam e matam. No entanto eu também sou um deles...

O Inimigo também tem namorada, mulher, filhos... também se agarra aos seus santos protectores...

Pergunto-me se quantas vezes ao sair para o mato as portas das Tabancas se abrem e surgem caras, um sorriso, um braço no ar ... um desejo de 'bom biaje', se não serão essas mesmas caras com o ódio estampado que nos esperam no meio da bolanha prontos a matar quem não quer fazer guerra, mas foi obrigado pelo sentido de Pátria em que foi educado ?

Toda a cara preta me parece um IN. Odeio o IN porque é traiçoeiro, porque mata.

O Evangelho foi feito só para brancos ? Como poderei amar os homens onde só existe o ódio !


Via os nossos soldados, com o amuleto do terço, que não rezavam, pois muitos deles eram agnósticos ou as obras que a verdadeira fé exige, era algo que não lhes dizia nada, quando saíam para o mato, beijarem a medalhinha que traziam ao pescoço, ou a cruz do terço, benzerem-se toscamente e darem um beijinho na mão, tal como hoje os jogadores de futebol continuam a fazer e cujo sentido religioso continua a ser para mim um enigma, pois não vem nos cânones nem nos catecismos.

Em Fátima a hierarquia religiosa alimentava a oração e o sacrifício, pela paz no Mundo, em especial na nossa Pátria, fechando-se teimosamente os ouvidos ao troar das metralhadoras, ao ribombar das minas e armadilhas que ambos os contendores escondiam traiçoeiramente e das bombas que os canhões faziam vomitar das suas bocas de fogo, pela acção malévola dos homens e dos aviões que destruíam aldeias completas produções agrícolas e matas, para que o inimigo na sua própria terra morresse se não da guerra que lhe fazíamos, pela fome.

Da nossa banda eram jovens, a flor da nossa pátria que tombava. Os naturais , donos da sua terra, viam quantas vezes, as mulheres, as crianças, os velhos, tombarem debaixo do fogo de uma e outra frente ou devido à fome e miséria a que eram votados, pela acção militar dos portugueses.

E em Fátima continuava-se a rezar pela paz. . . .

O próprio Papa Paulo VI, veio a Fátima em 1965, rezar pela Paz no Mundo. Ele que pouco antes tinha recebido os três líderes das frentes de combate, que lutavam da outra banda, pela libertação, dos seus povos. Sinal bem claro de que o mundo cristão estava consciente e reconhecia a existência de uma guerra em que Portugal tentava pela força calar a voz dos povos que em África entendiam que a sua felicidade passava pela autodeterminação e independência.

Os povos que ousavam fazer-nos frente também tinham a “sua Fé”, os seus Santos a quem se agarravam nos momentos difíceis, os amuletos que lhes víamos à cintura. Também tinham avós, pais esposas, namoradas. Algumas, na frente de guerra, combatiam lado a lado, outras na retaguarda, sofriam como as nossas mães, os nossos familiares.

Pensei no Kebá, a quem tive o enorme e gratificante prazer de reencontrar em 2005. Nas duas mulheres que tinha e que fugiram com os filhos ou foram apanhadas pelo IN. O seu esforço para as recuperar, entranhando-se na mata entre dois fogos para as localizar. O desgosto por elas não aceitarem segui-lo no seu regresso a Empada. A sua recusa em usar arma, para não matar, como ele dizia minha fidjo.

Pensei em quantos de nós não regressaram. Tantos em que o amuleto do terço, as suas convictas orações, a fé e as orações dos seus familiares, não bastaram. Uma bala traiçoeira, um estilhaço de uma mina ou de uma granada fez o seu sangue correr e regar aquela terra vermelha, levando-lhes a vida, ou marcando-os pelo sofrimento e pela invalidez.

Pensei nos que regressámos. Tantos convictos que foram as suas orações e as orações dos seus familiares. A fé forte que os animava e faziam dela razão da sua luta para sobreviver. . . matando, se necessário.

Quantos de nós aceitaram o desafio que a Pátria lhes impôs, em luta com a sua própria consciência. Quem não sentia isso mesmo, nas expressões e orientações dos furriéis e oficiais milicianos e mesmo em alguns dos que conheci pertencentes ao Q.P. quando estavam a dar as suas ordens, na forma como procuravam proteger o seu pessoal e furtar-se ao contacto com o IN.

Conheço outros e conto-me entre eles que aceitando ir para a frente de combate, tomaram por opção não fazer fogo, não dar um tiro, mesmo especialistas da G3 (atiradores).

E . . . com este desabafo, crie mais uma frente de conversa, que espero tenha continuidade.

Ressalvo que não é de modo algum minha intenção provocar ou ferir susceptibilidades. Quer em questões de ordem religiosa, quer de ordem patriótica. É apenas o resultado de uma reflexão pessoal que me pareceu merecer ser posta em comum, nesta altura que Fátima- altar do Mundo, se vai encher de novo para orar pela paz no Mundo e em especial na nossa Pátria.

Zé Teixeira

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