sexta-feira, 27 de abril de 2007

Guiné 63/74 - P1705: No 25 de Abril de 1974 eu estava lá (1): Em Cansissé, região do Gabu (Américo Marques, 3ª CART do BART 6523)

Guiné > Nova Lamego (Gabu) > 3ª CART / BART 6523 > Junho de 1974 > Cansissé > Os soldados do destacamento de Cansissé, entre Bafatá e Nova Lamego, junto ao Rio Corubal, empunham a bandeira do PAIGC e confraternizam com os inimigos de ontem...

"Eu sou dos últimos guerreiros do Império. Meio guerreiro, pois não acabei a Comissão e ainda participei na troca de bandeiras. A minha ignorância e o meu patriotismo fizeram-me sentir uma tristeza... mais triste [em Setembro de 1974]".


Foto: © Américo Marques (2005). Direitos reservados.

1. Comentário do editor do blogue:

Passaram 33 anos do 25 de Abril de 1974... O Movimento dos Capitães começou na Guiné. Clandestinamente. Poucos de nós se aperceberam de que estava em marcha um golpe de Estado que iria derrubar um regime semi-centenário. E que o fim da guerra se aproximava. Alguns de nós estávamos lá, na Guiné, ou estávamos cá, ainda na tropa , outros já estavam há muito na "peluda"..

Temos ainda muito poucas ou raras referências sobre o que se passou na Guiné nesses já longínquos dias de Abril (e depois nos meses imediatamente a seguir, Maio, Junho, Agosto e Septembro) de 1974...

Quem estava lá messa altura? 

Da malta registada na nossa tertúlia, temos alguns: o Américo Marques (3ª CART / BART 6523, Cansissé, Set. 74), o Antero dos Santos, o António Santos (CCAÇ 18, Aldeia Formosa, Jun. 74), o Casimiro Carvalho (CCAç 11, Paunca, Jul. 74), o João Carvalho (CCAÇ 5, Canjadude, Ago. 74), O José Bastos (Transmissões, Ago. 74), o Manuel Pereira (CCAÇ 3547 / BCAÇ 3884, Set. 74)...

Daqueles que foram para lá depois do 25 de Abril de 1974, tenho apenas conhecimento do pira de Mansoa, o Magalhães Ribeiro (CCS do BCAÇ 4612, Mansoa, Set. 74) que lá foi só para retirar e levar, debaixo do braço, a nossa bandeira verde-rubra...

Alguns chegaram a casa mesmo na véspera: é o caso, por exemplo, do António Graça de Abreu (CAOP 1, Cufar, Abr. 74), que apanhou o avião a 20 de Abril de 1974... 

A malta do BART 3873 também chegou à metrópole just in time, em Abril de 1974, não sei exactamente em que dia: o Serradas Pereira (CART 3494), o Artur Soares (CART 3492), o Luís Carvalhido (CCS), o Manuel Carvalhido (CCS), o Manuel Ferreira (CART 3494), o Sousa de Castro (CART 3494)...

Convenhamos que foram tempos de confusão e esperança, tempos contraditórios, exaltantes e angustiantes... Seria bom que falássemos sobre isso, sobre a nossa experiência, aqueles de nós que fomos protagonistas dos acontecimentos...

Temos alguns apontamentos dispersos. Mas, de certo, que mandámos notícias, fizemos comentários, enviámos fotos sobre esses acontecimentos que mudaram as vidas de uns e outros, os portugueses e os guineenses... Já começámos a publicar algumas cartas e areogramas do Casimiro Carvalho (Gulieje, Cacine, Gadamael, Paunca, Nova Lamego), também ele um dos últimos soldados do império...

É pena, por outro lado, que milhões de aerogramas se tenham perdido nestes últimos 40 e tal anos, desde que a guerra começou em 1963... De qualquer modo, vamos fazer um apelo à nossa memória. Vou começar por reunir aqui a conversa que tive ao telefone , há tempos, com o Américo Marques que apanhou o 25 de Abril em Cansissé, zona leste, região do Gabu. (LG)

Depoimento do Américo Marques (ex-soldado de transmissões, 3ª CART / BART 6523, Nova Lamego, Junho de 1973/ Setembro de 1974)

2. O Américo Marques foi, de facto, um dos últimos soldados do império (*). Em contrapartida, um dos seus irmãos foi um dos primeiros a seguir para a Guiné, em 1961, quando ainda se usava a farda amarela (**). Esteve na região do Cacheu.

A companhia do Américo Marques, a 3ª CART do BART 6523, estava colocada em Nova Lamego, enquanto ele foi destacado com um grupo de combate (25 homens) para Cansissé, a sul de Nova Lamego, a uma hora de caminho do Rio Corubal.

Ao telefone (não nos conhecemos pessoalmente), disse-me que nunca tiveram problemas nem com a população nem com o PAIGC, contrariamente aos camaradas da companhia anterior que por lá haviam estado. Nunca se armaram em “bons”, nunca provocaram os guerrilheiros do PAIGC, trataram sempre bem a população local, distribuindo comprimidos pelas mulheres, ouvindo os homens grandes, ajudando a transportar os produtos agrícolas... Davam-se bem com os fulas. O régulo era futa-fula. Com os mandingas, a coisa piava mais fino, sabendo-se que nos eram muito menos leais do que os fulas...

(i) Confundido e baralhado...

Ele era soldado de transmissões e, na noite de 24 para 25 de Abril de 1974, estava no seu posto, a sintonizar a rádio em Lisboa. Costumava fazer isso com muita frequência. Estava em contacto com todo o mundo. Os dias eram sempre iguais e custavam a passar. E as noites ainda pior. Mas "nessa noite ficou confundido e baralhado: havia movimento de tropas em Lisboa, alguma coisa se passava de anormal"…

Foi assim que teve conhecimento do golpe de estado do Movimento das Forças Armadas que depôs o Governo de Marcelo Caetano. Foi logo informou os seus camaradas. Foi um alvoroço.

A vida em Nova Lamego e em Cansissé não voltou mais a ser como dantes. Apareceram logo uns “esquerdistas” (sic), até então muito caladinhos, a organizar o pessoal, a dar ordens, a fazer reuniões... A hierarquia e a disciplina militares começaram a ser postas em causas. Eram os "comités de soldados" (sic) que tomavam iniciativas.

Acrescenta o Américo: "Às tantas já se falava tu-cá-tu-lá com os gajos do PAIGC, beijinhos e abraços, troca de roncos, como se não tivesse havido uma longa guerra"...

Esta foi a parte mais dura de engolir para o nosso amigo Américo que viu, com tristeza, a nossa bandeira ser substituída pela do PAIGC no seu destacamento… Em Setembro de 1974, ele voltava para casa, com o sentimento (amargo) de ter sido o último soldado do império...

Há coisas, na tropa e na vida, para as quais um homem nunca está bem preparado. Hoje ele escreve nos jornais da região. E promete voltar a escrever-nos, com tempo e vagar, quando vier o frio e o fogo começar a crepitar na lareira. É aí, à volta de um madeiro a arder, que ele gosta de recordar os seus tempos na Guiné e passar para o papel os sentimentos contraditórios que tem sobre esses menos de dois anos que passou lá no Gabu…

Ele prometeu-me contar alguns das suas histórias de azarado soldado de transmissões que, um belo dia, ouvia uma conversa em “português acreoulado”: suspeitando tratar-se do IN, lançou um alerta geral e pôs o Gabu em pé de guerra… Afinal, tinha interceptado comunicações entre a NT…


(ii) Os momentos do fim

Em Junho de 2005, o Américo Marques, que é técnico de higiene e segurança no trabalho, nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, já nos tinha mandado uma mensagem sobre os "momentos do fim", quando a partir de Junho de 1974 os guerrilheiros do PAIGC começaram a aparecer no destacamento de Cansissé, oferecendo a paz...

Não foi fácil para a população local (fulas e mandingas) e para alguns soldados como o Américo Marques. De repente, os inimigos de ontem, os turras, passavam a ser os amigos e até os irmãos de hoje.

Comentei na altura (***) que deverá ter sido um momento muito difícil, daqueles em que a gente fica com um nó apertado na garganta… E formulei o voto de que o Américo arranjasse tempo, fôlego, coragem e inspiração para dar um testemunho mais extenso e profundo sobre esse momento (único) do hastear da bandeira da nova Guiné-Bissau a que ele assistiu… Enfim, se ele achasse que valia a pena… Eu pessoalmente achava que valia a pena. E continuo a achar.

O Américo, que regressou a Portugal em Setembro de 1974, estava no sítio certo, no momento certo, para a nos dar conta do fim do império... 

"Eu sou dos últimos guerreiros do Império. Meio guerreiro, pois não acabei a Comissão e ainda participei na troca de bandeiras. A minha ignorância e o meu patriotismo fizeram-me sentir uma tristeza... ainda mais triste.

"Era Transmissões de Infantaria, Formado no BC 5, Campolide [ Lisboa ]. Formei Batalhão em RAL 5, Penafiel. Embarquei no N/M Niassa em Junho de 1973, na companhia de um BCAÇ de Tomar, mais duas Companhias recebidas no Funchal. Pertenci à 3ª CART do BART 6523, aquartelado em Nova Lamego.

"Estive os 17 meses em Cansissé: um destacamento (com 25 soldados) que estava à distância de 1 hora, a pé (claro), da margem direita do Rio Corubal. Quem fosse de Bafatá para Nova Lamego, virava à direita por uma picada, situada mais ou menos a meio do trajecto.

"Sou de Viana do Castelo e amigão do Sousa Castro e do Luís Carvalhido que me recebeu no Xime, em trânsito para Nova Lamego [Gabu]. Era eu um coitado dum periquito; e o Luís não me ofereceu uma bazuca, levou-me a ver um buracão feito por uma. Perdi logo a sede.

Espero que as fotos sejam mais um tijolo... para construir a historia das Dores e Agonias que estão aqui e agora. Sendo ao mesmos tempo Pedaços de Vida, que se me ofereceu (como se fossem mais uns Castelos) aquela Bandeira; muito amada e que aquece mais que mil vulcões. Um Alfa Bravo".
__________

Notas de L.G.:

(*
) Vd. post de 12 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXVI: Américo Marques, o último soldado do Império (Cansissé, 1974)

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