sábado, 31 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1639: Estórias de Bissau (12): uma cidade militarizada (Rui Alexandrino Ferreira)

Guiné > Bissau > 1969 > Cais de Bissau, Pijiguiti, com uma LDP (Lancha de Desembarque Pequena) e uma LDG (Lancha de Desembarque Grande) em fundo. "Do lado da cidade, onde há bem poucas horas era água, suja e barrenta, é verdade, aparecia agora no fundo escuro, lodoso e fedorento do rio, um misto de lama, detritos, resíduos e porcaria que exalava um cheiro pestilento e nauseabundo. Àquela argamassa com ar podre e pútrido se dava, como já referi, pomposamente, o nome de tarrafo" (Rui Alexandrino Ferreira).

Foto: © Humberto Reis (2005). Direitos reservados.

Como foram as primeiras impressões da nossa chegada a Bissau ? Ainda pouco se escreveu sobre isso... Nesta série Estórias de Bissau cabe perfeitamente esta temática. Vejamos, por exemplo, como é que o angolano Rui Alexandrino Ferreira nos descreve Bissau: ele passou por lá em duas comissões, uma como alferes (CCAÇ 1420, 1965/67) e outra como capitão (CCAÇ 18, 1970/72). Já aqui fizémos uma referência ao seu livro de memórias, Rumo a Fulacunda, que já vai na 2ª edição (Viseu: Palimage Editores, 2003) (2). Aqui ficam alguns excertos do 2º capítulo, com o nosso apreço, amizade e agradecimento ao autor e ao editor:

Capº II - Guiné - Os primeiros contactos
por Rui Alexandrino Ferreira
(Subtítulos do editor do blogue)


Fundeados ao largo, frente a Bissau, do barco se avistavam as luzes da cidade. Para quem se extasiava com a imagem de Luanda à noite, com a beleza da sua extensa, profusamente iluminada e bem cuidada avenida marginal, confesso que as primeiras impressões não foram muito famosas.

Bissau parecia aquilo que na realidade era. Pequena, dava para logo antever. Dispersa, com muitos espaços devolutos pelo meio, desordenada, envelhecida e pouco cuidada, não foi possível perceber de imediato, mas rapidamente também disso me dei conta.

Como me dei conta igualmente que era uma cidade dominada pela presença da tropa e onde não se conseguia esquecer a realidade da guerra que se travava para o interior da província. Enquanto que em Luanda se olvidava por completo a guerra que decorria circunscrita ao norte de Angola, na Guiné a guerra chegava à capital. Em Bissau, ouviam-se ao longe os ruídos ora espaçados ora quase cadenciados dos rebentamentos provocados pelas armas pesadas. Eram os nossos aquartelamentos a ser atacados ou flagelados. Via-se inclusivamente, quem se virasse para sul para além do estuário do rio Geba, os clarões que eram produzidos pelo deflagrar das granadas.


Uma cidade dominada pela presença da tropa

Durante o dia, sobretudo às primeiras horas da manhã a cidade era constantemente sobrevoada por helicópteros que transportavam feridos para o Hospital Militar 241, onde por força das circunstâncias também acabei por ir parar, a primeira vez em 1966, com direito a repetição em 1972, de ambas as vezes ferido e helitransportado directamente do mato.

Era, na realidade, um estabelecimento hospitalar moderno e funcional, prático e adaptado às necessidades, com um corpo clínico excepcional, extremamente dedicado que ao longo dos anos conseguiu verdadeiros milagres. Tinha-se então um sentimento de extrema confiança na acção daqueles médicos (…)

Dizia-se então por lá, confirmando a absoluta confiança que neles se depositava que, «pouco mais era preciso que aí chegar com vida». Do resto, se encarregava quem lá estava.

Nos dois dias que se seguiram e antes de desandar para o mato, nos contactos iniciais que tive com a cidade, apercebi-me e cataloguei-a quase de imediato. Bissau era a prova real da escala proporcional de um para dez, ou seja, em dez indivíduos que passavam só um não era militar, uma em cada dez mulheres não era esposa ou filha de militar, de dez viaturas em trânsito só uma era civil, e quanto ao próprio comércio, fosse a retalho, de vestuário, calçado, de discos ou aparelhagens de som, de jornais, livros ou revistas, de bugigangas ou de miudezas, de fotografias, ou máquinas fotográficas, restaurantes, cervejarias ou simples tascas, apenas um não era prioritariamente destinado ao comércio com os militares e se manteria de porta aberta mal a tropa fizesse as malas.

Tudo vivia para a tropa e pela tropa e da tropa sobrevivia.Tudo em Bissau era dominado pela presença dos militares da Metrópole. E assim, era impossível esquecer ou passar ao largo da guerra.

O famoso tarrafo


A bordo do Manuel Alfredo ainda a alvorada do primeiro dia de Dezembro vinha longe e já eu estava a pé. O calor e a humidade à mistura com a curiosidade mas sobretudo com a ansiedade não me deixavam nem dormir nem permanecer no camarote, pois sentia-me invadido por um nervoso miudinho. Levantei-me e orientado pelo barulho e movimento das máquinas e dos homens fui observar as operações de descarga do pessoal e material.

Uma Companhia independente desembarcou directamente para uma LDG (lancha de desembarque grande) da marinha. Nem chegaram a pôr o pé em terra firme. Rumo ao seu destino, homens e imbambas, tudo amontoado conforme possível, lá tomaram a rota do sul, onde seguramente chegaram por um dos variados rios ou dum dos seus braços, que tal como rapidamente compreendi, constituíam o melhor e mais seguro meio de comunicação e penetrapara o interior.

Aos poucos foi-se fazendo dia. Olhei em redor, ainda mal se via e nem queria acreditar nos meus olhos. Dum lado a vastidão das águas, misturadas a doce e a salgada, era tal, o dito estuário do Geba era tão largo, que a olho nu, não se vislumbrava a outra margem. Do lado da cidade, onde há bem poucas horas era água, suja e barrenta, é verdade, aparecia agora no fundo escuro, lodoso e fedorento do rio, um misto de lama, detritos, resíduos e porcaria que exalava um cheiro pestilento e nauseabundo. Àquela argamassa com ar podre e pútrido se dava, como já referi, pomposamente, o nome de tarrafo.

Era quase impossível que uma qualquer acção ou operação na Guiné não obrigasse à passagem de bolanhas, rios ou zonas de tarrafo. Normalmente passei, vindo das operações onde tais travessias eram mais demoradas ou aprofundadas (no sentido, claro, do tempo que se teria de andar dentro delas ou da altura da zona de cambança ou local de passagem do que resultava ter ficado com maior ou menor parte do corpo enterrado no tarrafo ou no lama), a tomar um banho inicial com o camuflado vestido para lhe tirar o grosso da merda e só depois deste, esfregar, esfregar e voltar a esfregar, o camuflado e o corpo, para ver se o cheiro se atenuava. Mas custava a sair...

Rapidamente me apercebi também que, para determinadas travessias, deveria fazer anteceder cada elemento mais baixote de outro com altura suficiente, que lhe deitasse a mão em caso de necessidade. E muitas vezes isso teve aplicação prática.

Olhando para a ínfima espécie de cais, onde mesmo assim o calado do navio de reduzidas dimensões que nos transportara, não permitia a acostagem, comecei a calcular qual seria o desnível entre as marés. Para aí uns quatro a cinco metros, pensei. Era isso mesmo. Mais metro, menos metro...

O complexo de Santa Luzia, conhecido por o Seiscentos


E assim, divagando e entretendo o tempo, lá chegou finalmente a minha hora de desembarque. Da mesma maneira que os demais, a bordo de uma pequena embarcação, lá fiz os metros que nos separavam da terra firme. E daí para dentro de uma viatura rumo ao Quartel-General, situado na altura no seiscentos como vulgarmente era conhecido o conjunto de aquartelamentos de Santa Luzia. Seiscentos porque fora aquele o número do primeiro Batalhão que o ocupara e para sempre lhe dera o nome.

A viagem até ao Quartel-General acabou por me trazer novas surpresas. A viatura, cujo trajecto normal seria subir a avenida principal que desembocava no largo onde se situava o palácio do Governador, virou dessa feita à direita e subiu uma avenida paralela daquela, que se iniciava junto ao rio e atravessava uma zona praticamente desabitada. Passamos por meia dúzia de tabancas e casas de pau a pique e entramos directamente pela zona do Quartel-General a dentro.

De tal modo aquilo foi, que quando perguntei candidamente onde era a cidade e me responderam que a já tínhamos passado, fiquei completamente estupefacto.

Já tínhamos passado a cidade!?
- Valha-me Deus! Aonde é que tinha ido parar! Se aquilo era Bissau como seria o resto!? Aquilo tudo começava a parecer-me muito pior do que o que tinha imaginado.

Embora mentalmente preparado para o que desse e viesse e pensando que, logicamente não poderia ser nada de bom, era a segunda vez, num curto espaço de tempo que sinceramente me espantava.

A 1ª Rep ou o primeiro contacto com a guerra do ar condicionado

Chegados ao Quartel-General, lá fomos encaminhados para a 1ª Repartição a fim de fazer as apresentações. Aos poucos, toda a gente que ia comigo foi sendo despachada e eu nem por isso...
Lá andava a minha guia de marcha às bolandas, de mão para mão... De vez em quando chegava um e cochichava alguma coisa ao ouvido do outro e olhavam para mim, o que me levava a pensar que era eu o objecto do cochicho. E iam embora...

Comecei, pois, a ficar preocupado... que raio de trapalhada teria eu feito!? Mas por mais que tentasse nada me ocorria.

Arrisquei a pergunta a um sargento que ali estava sentado a uma secretária.
- Oh! Nosso primeiro, o que é que se passa!?
- Não sei, meu Alferes. Não é nada comigo!

E o rapaz Rui lá se entreteve a olhar para os quadros da parede, controlo de efectivos existentes na província, Batalhões, recompletamentos, baixas por isto e por mais aquilo, etc. e tal... Até que não havia mais quadros para ver... E ninguém me ligava nenhuma! Qu'os pariu!!!...

Aquilo é que ia bonito! Mas, - pensava eu -, já não podem demorar muito mais, pois daqui a pouco são horas do almoço. E assim foi. Mais uma meia-hora e lá se chegou a mim um Tenente do serviço geral.
- Alferes Ferreira?
- Sou eu.
- Venha comigo ao nosso Tenente-Coronel Vilela.

E lá fui eu, a pensar que raio de mosca teria mordido naquela gente. Ninguém tinha tido a honra de ir à presença do chefe... Logo eu...

Rapidamente o assunto se esclareceu. Segundo o citado senhor Tenente-Coronel Vilela, chefe daquela repartição, superiormente alguém acima dele, havia decidido que, apesar de ser destinado à guarnição normal e portanto desde logo colocado no Centro de Instrução Militar de Bolama, teria de ir em diligência, provisoriamente, claro estava, para uma Companhia de Caçadores que infelizmente se encontrava bastante desfalcada em oficiais, pois tinha perdido duma assentada o Capitão e um dos Alferes, o que sendo quase cinquenta por cento do seu efectivo, era preocupante. Mas que não me preocupasse, pois os recompletamentos dos Oficiais em questão já estavam pedidos para a Metrópole, e assim, a situação além de transitória era uma questão de poucas semanas, talvez mesmo menos de um mês, unicamente o tempo da sua chegada à província.

Claro que nem valia a pena argumentar contra a lógica militar. Nem agora vale a pena, que fará naquele tempo... Podia, na realidade, ter referido que já fora mobilizado sem que fosse destinado a qualquer vaga efectiva. Poderia ter argumentado que a bordo do Manuel Alfredo tinham chegado mais alferes em rendição individual, mais modernos e portanto em condições idênticas à minha, para ocupar a vaga que ele considerava vital. Poderia ter dito fosse o que fosse, mas nem uma palavra me saiu da boca, o que, segundo me apercebi, além de ter espantado o referido senhor teve o condão de pôr ponto final na entrevista.(...).

Fonte: Rui Alexandrino Ferreira - Rumo a Fulacunda, . 2ª edição. Viseu: Palimage Editores. 2003. 69-73.
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Notas de L. G.:

(1) Vd. último post da série Estórias de Bissau > 10 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1512: Estórias de Bissau (11): Paras, Fuzos e...Parafuzos (Tino Neves)

(2) Vd. de 17 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1285: Bibliografia de uma guerra (14): Rumo a Fulacunda, um best seller, de Rui Alexandrino Ferreira (Luís Graça)

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