sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1463: Estórias cabralianas (18): O Dia de São Mamadu (Jorge Cabral)

Um intelectual das Avenidas Novas de Lisboa no meio dos Mamadu > Jorge Cabral, ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71.

Foto : © Jorge Cabral (2006). Direitos reservados.


Do Jorge Cabral: "Amigo Luis, aqui vai estória e grande Abraço. Jorge"

Estórias cabralianas (18) > O dia de São Mamadú
por Jorge Cabral
Ex-Alf Mil Art
Pel Caç Nat 63
(Fá Mandinga e Missirá, 1969/71)


Entre os dez militares metropolitanos do Destacamento de Missirá, apenas o Alferes era do Sul e de Lisboa – um rapaz de Alvalade, passeante da Praça de Londres e frequentador do Vává. Todos os outros, furriéis, cabos, e adidos especialistas, vinham do Norte ou das Beiras.

Teve pois o Alferes de se adaptar aos Companheiros, e até de aprender certos termos, como sertã ou estrugido, bem como curiosas designações de conotação sexual.

Urbano e agnóstico, apenas costumava celebrar o São Martinho, substituindo a água-pé pelo whisky e as castanhas por cajú. Porém, no meio de transmontanos, minhotos e beirões, ciosos dos seus dias santos e das suas ancestrais tradições, o Alferes passou a alinhar em todas as comemorações, assumindo o quartel um ar de arraial e romaria. Em cortejo, corríamos as moranças pedindo O Pão por Deus ou cantando As Janeiras, perante o júbilo dos africanos, os quais aliás também estavam sempre prontos para uma boa festança.

Com tantos padroeiros, santos e santinhos, os feriados eram muitos e na reunião da manhã havia quem estranhasse ser dia de trabalho, perguntando:
- Que santo é hoje, meu Alferes?.

Penso que foi em Maio que respondi, muito sério:
- Hoje é dia de São Mamadú (2) e todos os Africanos estão dispensados!.

Face à resposta-ordem, os Brancos franziram o nariz, enquanto os Negros ruidosamente manifestavam Alegria.

Terminada a reunião sou procurado por Malan Sanhá, meu soldado mandinga, estudiosos do Corão, que pede que lhe explique quem foi São Mamadú. De improviso, misturo Santo António com Fátima, e invento a personagem. Grande santo de há muitos séculos que, sem sair da Tabanca, salvou o pai de ser fuzilado em Lisboa, tendo movido o Sol de forma a encadear os soldados.

Satisfeito com a explicação, Malan quis saber se o santo era mandinga.
- Sim - disse então, mas uma hora depois, fui obrigado a rectificar – Mãe fula e pai mandinga, pois claro. E como isso acalmei os fulas.

Dispensados os soldados africanos, organizámos os quartos de sentinela, ficando eu das 3 às 7 horas no posto norte.

Embora já tivesse passado muitas noites no mato, aquelas horas, só, diante da floresta, escutando o pulsar da natureza, transmitiram-me uma sensação de harmonia e quietude.

Paradoxalmente, ali de sentinela, tão perto do Inimigo, senti-me em Paz absoluta, numa total comunhão telúrica, que nunca mais experimentei.

Velho e cansado hoje, preciso mesmo de uma nova noite de São Mamadú…


Jorge Cabral
___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. a última estória cabraliana > 10 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1419: Estórias cabralianas (17): Tirem-me daqui, quero andar de comboio (Jorge Cabral)

(2) Mamadu, em fula, é o equivalente a Mamomé, em árabe. Na CCAÇ 12, cujas praças eram do recrutamento local, de maioria fula, em cerca de 100 militares, haveria uns 15% de indivíduos com o nome Mamadu...

Vd. post de 21 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXV: Composição da CCAÇ 12, por Grupo de Combate, incluindo os soldados africanos (posto, número, nome, função e etnia)(Luís Graça)

1 comentário:

Ricardo Figueiredo disse...

Fica combinado ! Se prometeres não trocar as castanhas pelo caju e a água pé pelo whisky ,vens até ao Norte e não te faltarão montanhas para adorares o Santo Mamadu . Um abraço e bem hajas pelo texto.