quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1442: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (29): Finete contra Missirá mais as vacas e o bombolom dos balantas

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Finete > 1969 > O ex-Fur Mil Henriques, da CCAÇ 12, com uma menina, em frente à casa principal da tabanca que, "salvo erro, pertencia à família do comandante do pelotão de milícia, Bazilo Soncó" (LG). Finete ficava frente a Babambadinca, do lado (direito) do Rio Geba.


Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Rio Udunduma > 1970 > A economia local dependia também também da produção pecuária que por sua vez estava dependente da prática da transumância, prática essa que a guerra veio limitar ou inviar... Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.



Lisboa > Hospital Militar Principal > 1969 > Fotografia do 2º sargento Fodé Dahaba. Pertencia ao Pel Caç Nat 52 (Bambadinca, Missirá ) . Foi gravemente ferido em 22 de Fevereiro de 1969 na Op Anda Cá (Fevereiro de 1969). Vive hoje em Lisboa e visita regular do seu antigo comandante, o Beja Santos.

Texto e foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.


Continuação das memórias do Mário Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1). Texto enviado em 22 de Dezembro de 2006:


Caro Luís, aqui vai o segundo texto de 1969. A seguir, inopinadamente, o Comandante Chefe e séquito chegam a Missirá onde tudo está mal, desde a insegurança dos abrigos, a tropa mal indumentada, há balas perdidas no chão e por azar dos Távoras o soldado Bacari Djassi entrou numa discussão com o alto comando sobre a diferença entre a luz do mato e a ausência de um gerador...

Apanhei um calafrio e uma reprimenda brutal do Hélio Felgas [, comandante do Agrupamento de Bafatá,] (2), e no mês seguinte dois dias de prisão. Esta toada surrealista ainda é mais incompreensível para quem sabe o que recebi e o que estou a procurar fazer em terras do Cuor. No tocante a ilustrações, acho que chegou a oportunidade para te socorreres do material fotográfico do Luís Casanova.

Aceita um abraço e os votos que 2007 só te dê grandes alegrias, em casa, no trabalho e nos afazeres tertulianos, Mário Beja Santos.


A conjura de Finete e as vacas de Mero

por Beja Santos

É a primeira vez que revisito o passado do Cuor com Fodé Dahaba (3). Pedi-lhe uma primeira ajuda para falarmos de um estranho drama ocorrido em Janeiro envolvendo um pseudo manifesto colectivo que fora transmitido ao Comandante de Bambadinca e em que eu era directamente acusado de maus tratos à população e às milícias; igualmente lhe pedira para me ajudar a esclarecer a colaboração e os apoios de Mero às gentes de Madina/Belel [, base do PAIGC, a noroeste de Missirá].


O Fodé Dahaba que está na minha frente, ladeado pela sua mulher, Fatemana, vestida a rigor para dia de festa, e de Margarida, um dos seus 7 filhos, que lembra uma jovem de Brooklin ou do East Side londrino, tem os olhos vazos, apõe o coto da sua mão sinistrada em 22 de Fevereiro de 1969, mesmo junto a Madina, e sorri com a mesma inocência e beleza de feições com que o conheci em 1968.
- Fodé, nunca entendi o que pretendiam as pessoas que foram caluniar-me junto do Comandante de Bambadinca. Não tinha pés nem cabeça, era inevitável a reacção da população a meu favor, nunca entendi o porquê, a justificação de uma mentira tão facilmente desmontável. Agora que estou a escrever o relato daquele tempo, conto com a tua sinceridade.


A luta pelo poder entre as milícias de Finete



Tudo começara com o chamamento urgente feito pelo Pimbas [, o tenente-coronel Pimentel Bastos, comandante do BCAÇ 2852] (4). Recebeu-me no seu gabinete, senti-o contrafeito mas após algumas preliminares inócuas, atacou o assunto:
- Olha, isto parece uma história maluca. Apareceu-me aqui um soldado com uma carta a dizer que o povo e as milícias de Finete não querem o teu comando. Segundo os queixosos, tu dás muito menos a Finete do que dás a Missirá, tu exiges grandes esforços e gritas com eles. Ouvi-o e imagina tu que não tinha passado uma hora tinha aqui à porta os homens grandes com o chefe de tabanca à frente a dizerem que era tudo mentira o que se dizia a teu respeito. Não sei o que te diga, e queria saber o que tu pensas.

Eu não sabia de nada, embora fosse conhecedor das tensões permanentes entre mim e o Comandante das milícias, Bazilo Soncó, um dos irmãos do régulo. Agora supor que havia um estado de rejeição quando regularmente estava ou passava por Finete e mantinha as relações mais cordiais com todos, parecia manifestamente absurdo.
- Meu Comandante, peço-lhe que me deixe falar com a população e os milícias de Finete e de seguida um seu representante inquirirá sobre a situação existente. Depois tomará as decisões que entender.

Sem perda de tempo, cambei o Geba e uma hora depois reuni-me primeiro com os homens grandes e depois em separado com as milícias. Não precisei de falar. O chefe de tabanca, Mussá Mané, tomou a palavra para dizer que pediam a expulsão de Abdu Soncó, um cabo da milícia a quem acusavam de estar a mentir e cujo propósito seria o de Finete ficar em autonomia relativa, dependente do batalhão de Bambadinca. E que eu ficasse a saber que a população de Finete não aceitava ser misturada nas calúnias que sabiam constar numa carta entregue em Bambadinca.

Na reunião com os milícias, senti o silêncio de uns e a indignação de outros. O dito Abdu Soncó acusou-me de não dar cimento, armas e munições em quantidades satisfatórias, levar milícias para os trabalhos duros de Missirá e não pagar a tempo e horas. Recordo que Bacari Soncó pediu para falar, lembrando o que era Finete ainda há escassos meses e desmontou a argumentação do seu camarada. Não discursei mas avisei-os que ia transmitir ao Comando em Bambadinca o teor das duas reuniões havidas. Tudo se esclareceu rapidamente, pedi para não haver sanções sobre Abdu e a ala discordante mas nunca apurei o que motivara esta aparatosa e descocada conjura.

Fodé remexe-se na cadeira e deu-me a interpretação dos factos. Quem estaria por detrás da movimentação era o próprio Bazilo e um Sargento, Abás Jamanca. Por outras palavras, Bazilo e Abás temiam que Fodé e Bacari fossem escolhidos para comandar as milícias e eles afastados.

Eu criticava asperamente Bazilo por nunca sair do aquartelamento, isto quando Fodé e Bacari estarem permanentemente a meu lado nos patrulhamentos ou por sua iniciativa a patrulharem sobretudo na extensa bolanha entre Boa Esperança e Gã Gémeos. Aquela carta de Abdu fora uma tentativa desastrada de me procurarem afastar para manter o statu quo. Eu ia tomando nota destes apontamentos e perguntando a mim próprio se afinal não somos iguais no amor e no ódio, em qualquer atmosfera de guerra ou paz. Felizmente que um mês após a trágico-cómica conjura já ninguém se recordava desta lamentável história.


As vacas de Mero e o bombolom dos balantas

Falámos depois das vacas de Mero:
- Fodé, era impossível que os balantas de Mero não fossem todos coniventes com as gentes de Madina. Eu só me interrogo é como eles acordavam os dias e as horas e os itinerários dos encontros já que corriam riscos mortais. O que é que tu pensas?

Aqui Fodé encolheu os ombros como se aquela fatalidade viesse do fim dos tempos:
- Ouve, tu sabes como é que os balantas comunicam entre si? É através do bombolom, um tronco oco por onde envia mensagens. Antigamente era através dos cornos de vaca, mas depois o bombolom era o telemóvel deles. Estou seguro que os ouvíamos mandar mensagens para os grupos que vinham de Madina ao princípio da madrugada. Só os balantas é que conhecem aquela linguagem. Parece um batuque mas aquilo são tudo sinais. Eles tocavam e as gentes de Madina ficavam a saber que não havia perigo, podiam atravessar o rio Geba e regressar ao mato com vacas, mais gente para a tropa, tabaco, o que precisassem.

Então lembrei-me que uma noite estávamos emboscados junto de Gambicilai e avistámos movimento na bolanha em frente a Mero. Cautelosamente, emboscámos junto ao rio, esperámos que atravessassem com a sua carga. Vimos chegar vultos esfumados e vimos os contornos dos animais. Mas o azar nesse dia estava no nosso lado. Nhaga Macque, um fula possante, deu um espirro monumental no meio da noite, o grupo de Mero dispersou rapidamente e a única compensação que tivemos foi apanhar uma vaca que tinha atravessado o rio. Vezes sem conta pedi em Bambadinca que se fizesse o recenseamento da população, perdi sempre. Nessa altura as atenções estavam centradas nos Nhabijões e noutras tabancas em autodefesa.

Recordo que por essa altura também o Pimbas me tinha pedido a síntese sobre a situação político-militar no Cuor. Formei um grupo de reflexão de que faziam parte o régulo Malã, o Casanova, o Comandante das milícias de Missirá, Albino Amadu Baldé, Bacari Soncó e Fodé Dahaba. Nesse pequeno documento que entreguei ao Pimbas chamava a atenção para os seguintes pontos:

(i) o Cuor devia ser encarado militarmente na dimensão Enxalé-Missirá-Geba, independentemente de nos competir assegurar a manutenção da via marítima do Geba;

(ii) era totalmente impossível aumentar a capacidade ofensiva com tão reduzido contigente, com armamento inapropriado e nas condições logísticas mais deprimentes;

(iii) os rebeldes no Mansomine e no Oio precisavam de ser confrontados por uma conexão de esforços militares que permitissem a nossa presença mais assídua no Joladu e Mansomine, e Missirá nada mais podia fazer que receber as suas eventuais flagelações;

(iv) ou se criavam condições para pôr mais populações em autodefesa ou era inteiramente impossível melhorar a nossa inserção no território.

Entreguei o curto documento, o Pimbas achou interessante mas não houve qualquer seguimento. Eu estava cada vez mais convencido que o PAIGC pretendia obter a neutralização das nossas tropas, já que não havia população a conquistar e o seu esforço de guerra não encarava como prioritário querer aniquilar a nossa presença do rio Geba, algo que eles sabiam ser impossível, pois esta era a única porta aberta para o Leste. O ideal era alguém em Missirá que não fizesse ondas .


Missirá armadilhada pelo Alferes Reis

O Alferes Reis, o mais truculento sapador da Guiné, veio passar 4 dias connosco. Zaragateámos um pouco por causa da quantidade de trotil que ele pretendia enterrar em todos os atalhos que circundam Missirá. O Reis começa-se a afeiçoar à região e quando eu for operado em Março, será ele que apanhará o vendaval de fogo . Mas hoje ajudou-nos imenso a colocar correctamente as fieiras de arame farpado e deixei-o com carta branca para armadilhar junto da fonte de Cancumba, que é um local que tenta os rebeldes.

Fora de tempo e horas chega o pedido de comandante de Bula para eu não visitar os meus antigos soldados da CCAÇ 2402 (5), pois "havia o risco de os desmoralizar". Trata-se de uma história sórdida que não vale a pena aqui desenvolver . Também por esta altura parti uma dentadura postiça que seguiu para reparação num protésico em Lisboa (não havia quem fizesse ou reparasse próteses, pelo menos na região de Bafatá).

O Fodé entretanto pede-me para se ir embora, tem que ir à mesquita pois domingo segue para Meca e à saída disse à Margarida:
- A família de alfero e os seus amigos deram-me todo o apoio que me ajudou a suportar o muito sofrimento. E gostei muito do louvor que recebi depois da pancada recebida!

Se tudo correr bem, vamos reunir-nos em breve para falar da operação Anda Cá.

Os mais bravos soldados do mundo

Tenho muito orgulho nos louvores e pedidos de condecoração para os meus soldados. Um oficial é sempre o porta-voz do agradecimento e reconhecimento dos méritos e do bom uso da escala de valores. Louvei o Joaquim da Conceição, o Saiegh, o Domingos Ferreira e o Veloso. Pedi louvores para Adulai Djaló, Cherno Suane, António Teixeira e tantos outros por comportamentos excepcionais em teatro de operações.

Mas recorri igualmente ao louvor para destacar o primor de carácter, a abnegação, ou um só momento de valentia. Fi-lo com o Luís Casanova e outros como o Barbosa (aquele que tinha o fetiche pela sua boina verde) por ser entusiasta na reconstrução do quartel, por gostar de ajudar sem ser visto.

Lembro o Zé Pereira que durante uma flagelação entrou numa morança em chamas para retirar uma criança esquecida na precipitação da fuga. Este mesmo Zé Pereira era valente, bom professor e dava-me muito apoio nas traduções para crioulo. No dia em que li o seu louvor ao pelotão em formatura e onde se dizia que o víamos partir cheios de saudade, o pelotão aplaudiu de pé. Mas lembro, embargado pela emoção o louvor a Quebá Sissé, o Doutor, o mais risonho dos cozinheiros. Fazia reforços e ia a Mato de Cão como toda a gente.

Tive igualmente em conta as referências elogiosas aos meus soldados antes de ter chegado em Agosto. Por exemplo, Sibo Indjai, o mais indómito dos caçadores que nos trazia frequentemente porco e gazela do mato. Em Junho de 68, escrevi-lhe um louvor, porque com desprezo pela sua própria vida lançara-se num ataque a uma casa de mato, pondo em fuga o grupo rebelde. E sempre que me disseram que eu comandava alguns dos mais bravos soldados do mundo nunca protestei porque achasse exagerado, eu sabia que era verdade.

O fim da minha curtíssima carreira... poética

Não vou falar num livro prodigioso que estou a ler O Deus das Moscas, de William Golding, um belo e terrível livro que alguém classificara como o mais notável romance inglês do pós-guerra. Eu hoje quero comunicar que vou pôr termo à minha veia poética, reconhecendo a falência de inspiração.

Devo ao Ruy Cinatti o ter vindo a conhecer René Char, Francis Ponge ou Saint-John Perse. Este último influenciou-me muito, e momentos houve em que julguei que a boa poesia passa por manipular habilidosamente uma trovoada de imagens. Descobri no momento da verdade que a arrumação dos versos que o foguetório pode encher o olho mas não deixa o espírito saciado.

Lembro que uma vez escrevi "esta terra tem um cheiro a morangos podres e a pó de morcego" e depois desatei a rir porque não era mentira para os meus sentidos mas constituía uma afronta para a comunicação. Outra vez escrevi "dor em tabuada, vapor e trovoada" não me soava mal mas não passava de uma bolha de sabão. Momentos houve em que aceitei haver beleza num encadear de palavras, havia até uma toada épica que não me desagradava: "A quem me lembra e esquece, cada letra é uma homem em Missirá, cada letra sobe os ramos numa árvore prometida. Em cada letra sinto o brilho de uma catana que mutila e dela saem os gritos dos meus amigos que partem para sempre. À minha volta, há um arado e há sangue coagulado, há pássaros cegos que esvoaçam encadeados por uma melodia de sal. E Missirá resiste!".

Se vos conto esta intimidade é porque a guerra é também um bom momento para termos respeito pela nossa vocação e sermos sinceros com o que escrevemos. Eu vim a descobrir que escrevo com indizível prazer mas a veia poética é inexistente. E no entanto... momentos há em que me atiro para a frente, colo os versos como se os pregasse em forma de desenho de uma parede e me emociona com o resultado. Será assim quando um dia, em 2006, escrever para os meus camaradas da Guiné A Estrela de Belém a Missirá.

Este mês de Janeiro [ de 1969] reserva-nos as últimas chuvas. A escola funciona bem, as obras dos abrigos prosseguem, chegou mais cimento e chapas de zinco, desmata-se em Canturé, há Mato de Cão todos os dias e, não fosse esta perna que arrasto cada vez com mais dificuldade, eu diria que o Cuor é a minha segunda casa e estes homens com quem vivo dentro e fora do arame farpado os maiores amigos do mundo.

Um dia destes, enquanto desmatamos em frente a Missirá e um Unimog puxa com guincho cibes que cortámos de um palmeiral, vamos ouvir os rotores de dois helicópteros e vou conhecer o Comandante Chefe. Serei admoestado, o que não vai abalar as minhas convicções. Seguir-se-à Chicri e depois Quebá Jilã. A roda da fortuna vai de novo circular descompassadamente. E, pior do que tudo, seguir-se-à a amargura dessa falhada operação Anda Cá.

Há momentos em que me questiono de onde vem esta energia para reconstituir os factos sem gritar cheio de dor, tal a raiva das perdas.
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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 10 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1418: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (28): Sol e sangue em Gambiel

(2) Vd. post de 13 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1365: Operação Macaréu à Vista (24): Discutindo os destinos do Cuor com o Coronel Hélio Felgas

(3) Vd. post de 22 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1102: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (12): Os meus irmãos de Finete

(4) Vd. posts de:

22 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1304: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (21): A viagem triunfal do Pimbas a terras do Cuor

31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1008: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (2): o saudoso Pimbas, 1º comandante do BCAÇ 2852

(5) Vd. post de 15 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1282: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (1): duas baixas de vulto, Beja Santos e Medeiros Ferreira

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