quarta-feira, 13 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1365: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (24): Discutindo os destinos do Cuor com o Coronel Hélio Felgas

Capa do romance de André Gide, Sinfonia Pastoral, publicado pelos Livros do Brasil, Lisboa, s/d, na sua famosaa colecção Miniatura (nº 56). Ilustração: Bernardo Marques. André Gide (1869 -1951), escritor francês, recebeu o Prémio da Literatura em 1947.

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.



T/T Uíge > Julho de 1968 > O Alf Mil Beja Santos a caminho da Guiné. Foto gentilmente cedida, para digitalização, pelas suas filhas.

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.

Texto enviado em 15 de Novembro de 2006. Continuação da publicação das memórias do Mário Beja Santos, ex-comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1).


Meu caro Luís, aqui vai a prestação semanal. Espero poder coincidir o período natalício com as páginas referentes ao meu Natal de Missirá. Telefonei hoje ao Cherno Suane [, meu antigo guarda-costas,] que está em Missirá e pedi-lhe fotografias, bem como do régulo.

Obviamente falámos por telemóvel, o régulo emociona-se e paralisa-lhe a fala. Estou a ganhar a coragem para escrever com olhos daquele tempo o Presépio de Chicri. Continuo com sorte e comprei mais livros que li naquele tempo. Hoje mandei-te pelo correio uma fotografia e um livro do André Gide Sinfonia Pastoral com uma belíssima ilustração do Bernardo Marques. Obrigado por todo o teu esforço a dar imagem aos meus textos e aguardo que marques para Dezembro o nosso almoço. Um abraço do Mário.

Comentário do editor do blogue:

Mário: Como as nossas comunicações, no blogue, andam atrasadas, tenho que dizer, em plena caserna, que o almoço estava óptimo, no Institut Franco-Portugais, no dia 5 de Dezembro passado. Foi um prazer rever-te, desde o verão passado. Aproveito para esclarecer os nossos amigos e camaradas da Guiné, que lêem o nosso blogue e em especial os teus posts, que as tuas frescas memórias do Cuor não são apenas fruto de uma prodigiosa memória de elefante, mas também e sobretudo da tua aturada pesquisa documental (escrevias todos os dias à tua namarada e futura esposa Cristina, tendo conseguido reaver e juntar toda essa correspondência tiveste a gentileza de ma confiar) e das longas conversas que tens mantido, ao longo destes anos todos, com os homens que comandaste na Guiné...

Não se pense, pois, que a Operação Macaréu à Vista é ficção: bem, pelo contrário, são as tuas memórias vivas - sujeitas à crítica dos teus contemporâneos que passram na mesma altura pelo Sector L1 da Zona leste - e espero que no fim, delas possam resultar um grande blook, um livro de referência sobre o nosso quotidiano na guerra da Guiné.

Quero aproveitar para esclarecer que a maior parte dos títulos e subtítulos dos teus posts são da minha responsabilidade, embora eu tenha sempre a preocupação de respeitar o conteúdo e a forma dos teus escritos. Espero até ao Natal poder pôr a tua escrita em dia... Um abraço de amizade e camaradagem. Obrigado pelos livros que me ofereceste como prenda de Natal, e em especial o exemplar nº 1, autografado, do teu último livro Este Consumo que nos Consome (Campo das Letras, Porto, 2006). Luís


Em Bafatá, para discutir os destinos do Cuor

por Beja Santos


Seriam três da manhã quando o Teixeira das transmissões bateu à porta da minha morança. Estava ainda no torpor do primeiro sono e perguntei automatizado:
- A que horas é que eu cavalgo para Berlim?

Durante aquele mês de Novembro o código fixara a expressão Cavalgar Berlim como ida a Mato de Cão. O Teixeira trazia a mensagem decifrada e simplificou-me a vida:
- Apresentar hoje manhã cedo este urgente.

Voltei a adormecer a pensar a que Buruntoni iria desta vez. E com o primeiro orvalho do raiar do dia partimos para Finete e daqui para a cambança do Geba. Apanhei o Pimbas a tomar o pequeno almoço e mandou-me sentar, explicando a situação:
- Como sabes, estamos a pôr tabancas em autodefesa no propósito de reorganizar todo o sector. Na reunião que tive com o nosso Coronel Felgas, ele quer saber se devemos dar vencimento à proposta do régulo do Cuor que é trazer população de Canturé que está presentemente a viver no Cossé. Segues já de viatura e vais falar com ele a Bafatá. Ele está à tua espera. O plano do nosso sector tem que ficar pronto até ao fim da tarde para ser analisado em Bissau com o Comandante Militar da Guiné.


Com o Hélio Felgas, comandante do Agrupamento 2957 (2)

E lá fui até Bafatá encontrar-me com o Coronel Hélio Felgas, que ainda não conhecia. Recordo um gabinete enorme e austero, um homem magro, de cabelo embranquecido e um olhar de lâmina a faíscar pelas lentes. Mandou-me sentar e foi direito ao assunto:
- Pretendo saber a verdade sobre o que se está a passar no Cuor, o que há lá e se é possível introduzirmos mais população. Desde Outubro que estamos a trabalhar com régulos e chefes de tabanca para se encontrar um novo alinhamento do sistema de autodefesa, criação de forças de milícia e uma reorganização que impeça as situações ambíguas de populações permanentemente sujeitas à pressão do inimigo. Diga-me o que acha que podemos fazer.

Tivera a viagem para organizar a minha apresentação, tal como se seguiu:
- Meu Comandante, se reparar bem no mapa a defesa do Cuor é um exclusivo pretexto para garantirmos a navegação do Geba e segurança de Bambadinca. O meu aquartelamento em Missirá é uma perfeita ruína, com metralhadoras do tempo de Hitler e Mussolini. Só agora é que tenho um morteiro 81. A população civil vive praticamente misturada com os caçadores nativos e os milícias. As milícias estão muito mal preparadas e tenho uma secção em Galomaro. Diariamente, uma a duas vezes patrulhamos até Mato de Cão. Estou a esticar a corda com patrulhamentos para identificar a presença dos rebeldes. Finete está numa lástima e há mais espingardas Mauser do que G3. Estamos agora a melhorar os abrigos, a preparar apontadores de diagrama, vai chegar um morteiro 60. O inimigo passeia-se em praticamente todo o Cuor. Se me permite a opinião, a separação entre Missirá e o Enxalé não é boa para ninguém. Nós não temos meios a não ser para emboscar e aterrorizar em regiões que permitam a retirada rápida. Por isso embosco à volta de Missirá e Finete, perto de Mato de Cão e frente a Mero, pois aqui sabemos que existem comunicações e troca de abastecimentos. Introduzir população em Canturé parece-me uma excelente ideia desde que haja tropa, um sistema de autodefesa a sério, armamento para civis e preparação paramilitar que lhes dê confiança. Tenho duas viaturas permanentemente avariadas, os caçadores nativos estão exaustos, aproveito a oportunidade para lhe pedir que se reconsidere na necessidade de definir uma melhor logística para estes dois quartéis. Tenho 5 petromaxes em Missirá e outros tantos em Finete. Sem eles, viveríamos às escuras e completamente à mercê das flagelações. Se quiser pôr população em Canturé, por favor atenda a estas realidades. Estamos numa ponta do regulado e quem o controla é o inimigo. É indispensável articular o meu trabalho com Porto Gole e Enxalé, para melhorar a segurança do Geba e criar mais intranquilidade em Madina/Belel.

O Coronel escutava-me sem nenhuma interrupção e ergueu-se ágil e decidido:
- Você trazia a lição bem estudada e sabe pedir. Tenho pouco para dar, já que o Cuor não é prioritário neste momento. Lamento, mas não tenho mais tropas e a reorganização dos Nhabijões, no Cossé, no Xitoli e Mansambo é da maior importância. Em princípio vai ficar tudo como estava. Bom dia. Espero que continue a combater já que as informações não são más nesse sentido.

Munições esgotadas em Finete

Regressei, e de facto tudo continuou na mesma: Mato de Cão, o Ramadão, a tropa doente, os melhoramentos, o permanente pedinchar materiais junto da CCS de Bambadinca. Depois da emboscada em Chicri prevíamos uma qualquer retaliação, como veio a acontecer.

A 16 de Novembro, eu escrevia uma carta para Lisboa:

São 10 horas de uma bela noite equatorial. Em derredor deste arame farpado onde despontam flores silvestres, o céu do Cuor tem tonalidades de azeitona escura, sente-se o perfume dos cajueiros e mangueiros, saí há pouco pelo cavalo de frisa e estive a olhar o caminho sulcado que vai para Sancorlã. Agradeço-te a tua bela carta e a companhia que me trouxe.

Nisto, uma sucessão de estampidos anuncia uma flagelação a escassos quilómetros. Subo para o posto de vigilância onde está Quetá Baldé. Com aquela voz de quem está permanentemente a pedir desculpa, ele aponta para Finete. Fogachos meteóricos cruzam-se nos céus, ribombam as explosões num som cavo mas intermitente. Foram 15 minutos infernais e depois um silêncio total. Conversei com os furriéis, ficámos em estado de alerta e saí com 20 homens numa progressão lenta a flanquear as picadas principais.

Pelas 3 da manhã, depois de tornear as bolanhas em direcção a Bambadinca anunciámos a nossa presença a Finete. Ainda hoje guardo o calor do abraço de Bacari Soncó quando chegamos. Felizmente, fora só uma flagelação com dois feridos ligeiros mas aonde se provou a suprema vulnerabilidade de Finete: as munições estavam praticamente esgotadas, desde cartuchos a granadas de mão.

Percorrendo a tabanca a contabilizar os estragos pensei no que nos estaria reservado caso aparecesse uma autotabanca em defesa de Canturé. Dando garantias que no dia seguinte Bambadinca abriria o cordão à bolsa no tocante a munições, dormitei duas horas e regressei a Missirá, onde andamos a capinar na estrada de Missirá-Morucunda-Canturé-Gambana.

O Casanova continua a tratar do pequeno Braima e ao mesmo tempo reconstrói o seu abrigo enquanto o Adão enfermeiro (trolha em Almargem do Bispo) estampa cimento nas paredes térreas e o Barbosa faz nova porta.

Para quem combateu neste sector, o mês de Novembro ficou associado a emboscadas à companhia do Xime, a ataques a Mansambo e ao Saltinho, uma flagelação feroz que ia tirando Demba Taco do mapa. Embora privados dos rigores do jejum, os soldados comparecem aos ofícios das seis a das nove da noite. Cheio de projectos, escrevo noutra carta:

Nunca dei um tamanho agrado ao tempo e à vida como agora.

Sinto que a minha visão do cristianismo evolui inexoravelmente e sem retorno e leio Jean Guitton:

Ensina-me a imaginar o futuro sem me desolar, com a ideia de que ele não seja como eu o imagino - ensina-me a unificar a lentidão e a pressa, a serenidade e o fervor, o zelo e a paz. E sobretudo, enche tu mesmo, Senhor, o vazio das minhas obras.

Meu alferes, nunca vi uma coisa assim...


Demba, o filho de 6 anos de Malã Soncó, está atacado de tracoma, o David Payne tenta um tratamento assíduo que expurgue as infecções. Hoje Ieró Baldé (conhecido na gíria por Nova Lamego), o meu guarda costas, pregou-me um grande susto. Notei-o arredio e confuso a dizer que já não sabia se devia casar, estava cheio de febre e doiam-lhe as partes. Pedi para ir falar com o Adão. Arrumava papéis e facturas quando o Adão me entrou aos repelões com Nova Lamego pelo braço:
- Meu alferes, nunca vi uma coisa destas, juro que nunca vi. Eh pá baixa as calças.

Ieró, com o olhar apontado para o tecto mostrou-nos o seu cancro mole, um sexo purulento. Propus-lhe que fosse a Bambadinca com urgência, que adiasse o casamento, preparei uma carta para o David Payne pedindo-lhe mais um gesto de desvelo, a juntar a muitos mais.

Esta tarde convidei Lânsana Soncó para beber chá e ouvirmos música. Lembro-me perfeitamente: Mr Nice, por Cliff Richard. Escrevi aos meus soldados da CCAÇ 2402 que ia pedir autorização para ir visitar a Có, onde eles também sofrem aflições. A todos aqueles que partiram para férias e que vão chegar até 15 de Outubro levam a incumbência de trazer vitualhas natalícias: fritos, figos, ameixas e outra fruta cristalizada, tudo aquilo que sirva para adornar o nosso Natal em Missirá. A todo em Lisboa peço ajuda, nada me foi recusado.


Cardoso Pires e Anrdé Gide em Missirá

Amanhã regresso a Chicri. Pretendo continuar a fazer pressão, vou patrulhar em Sinchã Corubal, descer o rio de Ganturandi, até S. Belchior. Tenho o corpo moído e releeio O Delfim, obra prima absoluta. Creio que já vos disse que tudo não passa de uma metáfora nesta obra: o caçador é o disfarce do narrador, liga tudo, apresenta os locais e os personagens. A Gafeira e a Lagoa são Portugal e quem tenha dúvidas escute o que diz o autor:

Lagoa, para a gente daqui, quer dizer coração, refúgio da abundância. Odre. Ilha. Ilha de água cercada de terra pro todos os lados e por espingardas de lei. Mas ilha, odre, coroa de fumos ou constelação de aves, é a partir dela que uma comunidade de camponeses-operários, mede o universo; não a partir da fábrica onde trabalha, nem da horta que cultiva nas horas livres. Daí que os gafeirenses lhe conheçam tão bem os ciclos, as estações, os animais que as frequentam e as armadilhas de que dispõem- as dela e as dos guardas (páginas 129 e 130 desta edição de Outubro de 1968, que folheio com veneração pelo bem que me fez e por ser a última recordação da biblioteca devorada pelo fogo).

Obra prima absoluta pelo retrato em agonia do marialvismo, em sintonia com o fim do poder agrícola; pela trama de mistério que acompanha o desmoronamento dos Palma Bravo, o fim da Maria das Mercês e a morte de Domingos; uma lagoa que hiberna e que espera como todo o país que vive adormecido. A literatura portuguesa mudou com esta obra, é um anúncio de liberdade, de modernidade no estilo e na forma, uma trombeta que anuncia os novos poderes políticos depois da queda dos valores que o engenheiro Palma Bravo personificava. O Delfim é o momento exemplar antes das portas abertas pelo 25 de Abril.

Folheio ainda, a chamar o sono, uma outra obra prima convocada, Sinfonia Pastoral, por André Gide. Para quem leu Os Moedeiros Falsos, esta novela é surpreendente. Gide que era descrente e cosmopolita fala de um pastor suíço com vida familiar completamene estabilizada que se apaixona por uma jovem cega. O que era inadmissível para um espírito puritano torna-se viável, a ponto de uma paixão cega lançar uma família na perturbação e o pastor na solidão absoluta, tudo isto descrito numa narrativa ultra-romântica, cerebral mas igualmente falando do inquietante silêncio de Deus, já paradigmático para a sociedade em que Gide viveu.

Adormeço e amanhã será o último adolescente da minha vida. Amanhã em Chicri vou conhecer a cor da morte. Juro que não tenho coragem em contar.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 5 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1341: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (23): Alah Mariu Mansô (Deus é todo poderoso, em mandinga)

(2) O Agrupamento 2957, com sede em Bafatá, abarcava toda a Zona Leste, sendo constituído por cinco sectores. O de Bambadinca era o L1. Este agrupamento, comandado pelo Coronel Hélio Felgas, deu origem mais tarde ao CAOP 2.Sobre a figura deste oficial superior, que se reformou como brigadeiro, há vários posts no nosso blogue:

24 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIX: O Hélio Felgas do nosso tempo (A. Marques Lopes)

23 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCVIII: Antologia (27): depoimento do brigadeiro Hélio Felgas (1): os aquartelamentos

25 de Novembro de 20065 > Guiné 63/74 - CCCXII: Antologia (28): depoimento de Hélio Felgas (2): as emboscadas

29 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXIII: Antologia (29): depoimento de Hélio Felgas (3): os ataques aos acampamentos do IN

9 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLIII: Antologia (32): depoimento de Hélio Felgas (4): "Ou se faz a guerra ou se acaba com ela"

O coronel Hélio Fellgas comandou a Op Lança Afiada bem como a retirada de Madina do Boé:

Sobre a Op Lança Afiada, vd posts:

14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas

15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli

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