segunda-feira, 4 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1337: O campo de concentração da Ilha das Galinhas (João Tunes)

Guiné > Região de Tombali > Catió > Mato Farroba > Abril de 1970 > Em primeiro plano, o ex-Alf Mil Transmissões e hoje nosso estimado camarada João Tunes .


Foto: © João Tunes (2005). Direitos reservados.


Mensagem do João Tunes, já enviada a toda a tertúlia.

Sobre os Outros
por João Tunes

Caro Luís e restantes camaradas,


Como era incontornável, o nosso blogue, cada vez mais rico e recheado de facetas mais encadeadas, assenta sobretudo na visão da guerra de um dos lados, o das NT. Não podia ser de outra forma. Mas, julgo eu, sobretudo a esta distância no tempo, não entenderemos o que passámos e lá estivemos a fazer, sem compreender o outro lado, o lado do IN. Só numa compreensão abrangente das duas metades, é que, nós e os guineenses, podemos ter a percepção da epopeia daquele drama comum e que nos ficou a unir.

Infelizmente, da parte do PAIGC, há uma exiguidade de produção histórica e tratamento documental e testemunhal sobre a sua luta. A par do facto terrível de que a grande maioria dos antigos combatentes do PAIGC ou morreu ou para lá caminha proximamente sem deixar lavrados os seus imprescindíveis relatos e testemunhos (é muito curto o horizonte de vida na Guiné).

Esperemos que a saída à luz do dia, e em breve, da tese académica do nosso amigo tertuliano Leopoldo Amado compense uma parte das lacunas que nos atrapalham a visão larga da memória da guerra na Guiné (1).

Entretanto, aproveitando para o divulgar e recomendar, saiu um livro importante da Dalila Cabrita Mateus (*) em que ela apresenta um conjunto de depoimentos recolhidos e verificados junto dos prisioneiros africanos no período da guerra colonial. Julgo até que este livro é de leitura impositiva pois possibilita, coisa rara, que se oiçam vozes do sofrimento daqueles que
combatemos e nos combateram. O que é útil a vários níveis - permite-nos relativizar os nossos sofrimentos enquanto combatentes coloniais; traz à luz do dia uma bestialidade escondida no tratamento da pessoa humana que era o lastro do suporte ao nosso combate e sobrevivência. Sem aquilo, sem aquela PIDE, poucos de nós estaríamos aqui a escrever e a contar.

Uma parcela importante do livro de Dalila Cabrita Mateus é composta de entrevistas com prisioneiros da segunda fase de funcionamento do Campo de Concentração do Tarrafal (Ilha de Santiago - Cabo Verde). Como se sabe, o Campo (também conhecido como Campo da Morte Lenta) funcionou entre 1936 e 1954 para prisioneiros políticos portugueses e o seu encerramento deveu-se ao escândalo internacional devido à demasiada semelhança com os campos nazis.

Após o declarar da guerra em Angola, o então Ministro do Ultramar Adriano Moreira (o mesmíssimo académico hoje celebrado como o grande visionário geoestratégico do desígnio português no mundo), firmou despacho legislativo para que o Campo do Tarrafal fosse reaberto para os prisioneiros capturados nas colónias. Esta medida coincidiu com o fim dos julgamentos, em Tribunal Militar, dos prisioneiros africanos. A partir de então, os prisioneiros passaram a ser dispensados de julgamento e, depois de interrogados e torturados, era-lhes fixada administrativamente (pelos Governadores sob proposta da PIDE) residência por tempo indeterminado num dos campos de concentração existentes em África.

No que respeita à Guiné, os prisioneiros que não eram liquidados pelas NT e pela PIDE, passaram a ir para a ilha das Galinhas (Bijagós-Guiné) (2) ou para o Tarrafal. Neste Campo,
além de alguns caboverdianos, estiveram, até 1974, muitos prisioneiros angolanos mas o grosso do número foram guineenses (várias centenas). E uma norma imposta era a proibição de qualquer contacto entre os prisioneiros das várias nacionalidades. Mas, os prisioneiros guineenses não só perfaziam a maior percentagem como estavam sujeitos a piores condições relativas (3).

Primeiro, ao contrário da maioria dos angolanos, não recebiam ajuda dos seus familiares (em géneros, em dinheiro, em correio). Segundo, cúmulo do sadismo administrativo, a alimentação dos presos fornecida no Campo era diferente pela razão que o orçamento era diferenciado consoante a origem. Uma regra estabelecia que eram os governos das províncias que custeavam a alimentação dos presos e enquanto o Governo Provincial de Angola dotava de 20$00 os
cofres do campo para a alimentação diária de cada prisioneiro angolano, Spínola atribuía apenas 5$00. O que levava a que, na alimentação dada a cada prisioneiro guineense, se gastasse um quarto do custo havido com cada angolano!

Imagine-se o resultado pois não havia suplementos alimentares por falta de apoios familiares. Foram inúmeras as mortes por doença entre os prisioneiros guineenses, nomeadamente por défice vitamínico que conduziu a várias mortes por escorbuto (!). E como não eram permitidos quaisquer contactos entre prisioneiros angolanos e guineenses, obviamente que a solidariedade inter-africana não tinha meios para se verificar.

Naquelas terríveis e ainda pouco conhecidas condições, compreende-se o desânimo e o desespero de grande parte dos prisioneiros guineenses. E como a PIDE nem ali dormia, entende-se também que ela tenha conseguido trabalhar um grupo de combatentes aprisionados no Tarrafal para os levar á traição dos seus e colaborado com a formação do grupo libertado que se reinfiltrou no PAIGC e levou a cabo o assassinato de Amílcar Cabral em 1973 (3).

Depois da PIDE reduzir aqueles homens à miséria humana ainda encontrou matéria-prima para que alguns dos miseráveis se prestassem a reproduzir a miséria.


Abraços para todos os camaradas.

João Tunes

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(*) - Memórias do Colonialismo e da Guerra, Dalila Cabrita Mateus, Ed. ASA . Sobre este livro, coloquei post no meu blogue > Água Lisa (6) > 27 de Novembro de 2006 > A África e Nós
Cópia da capa do livro de Dalila Cabrita Mateus > Memórias do Colonialismo e da Guerra. Porto: Edições ASA. 2006. Colecção: Arquivos Históricos. 672 pp. Preço: 24,00 € (com IVA).


Fonte: © Edições ASA (2006) (com a devida vénia...).


(...) "Neste quadro, assume um relevo extraordinário o trabalho da Professora Doutora Dalila Cabrita Mateus, do ISCTE, que tem vindo, desde há vários anos, a debruçar-se sobre a guerra colonial no período 1961-1974 e que culminou numa monumental tese de doutoramento sobre o tema após aturadas investigações nos arquivos e na recolha de testemunhos orais em Portugal e em África. Desta tese, a Editora Terramar já havia publicado a síntese do corpo principal (**) incidindo sobre a acção da PIDE nas colónias africanas.

"A Editora ASA acaba agora de editar (***) um complemento de enorme valor testemunhal e que são os depoimentos orais que a investigadora recolheu, aferiu e cruzou junto de portugueses e africanos que foram protagonistas, nos vários cenários coloniais, do drama do conflito-estertor do colonialismo português, esse banho de sangue com que quisemos selar o fim da presença portuguesa em África, na teimosia de contrariar os ventos da história.

"Significativamente, os depoimentos recolhidos por Dalila Mateus entre 1999 e 2001 e sistematizados neste segundo livro, são quase todos acompanhados de uma nota em que se refere os falecimentos da maior parte dos depoentes antes da edição do livro. O que demonstra que essa recolha, para além dos seus valores próprios e impressivos, foi salva à tira, ou seja, mais uns poucos anos passados e testemunhos únicos e riquíssimos perdiam-se na poeira das leis da vida.

"Para um português, não deixa de ser inovador e perturbador ouvir as vozes das elites dos africanos que nos sofreram em África. Dando-nos uma dimensão mais profunda à nossa vergonha necessária. E obrigando-nos, até, a relativizar o nosso próprio quadro europeu de sofrimento da ditadura e do consequente preço pelo alcance da democracia. E o único consolo que resta, no quadro abrangente do regime ditatorial, é que a brutalidade estremada utilizada no cenário colonial (basta comparar as práticas da PIDE na metrópole e nas colónias, lá mais brutal para os prisioneiros que cá, lá mais apoiada que cá pela população branca) acabou por ser a pá de cal deitada no caixão da ditadura.

"Vem aí o Natal, época de prendas. Para os outros e para nós. As minhas sugestões ficam aqui. Porque não há melhor oferta que a de nos ajudarmos a entender. E essa obra de entendimento (do eu, de nós, dos outros), ideia minha, é mister sobretudo dos poetas e dos historiadores. Sem uns e outros, seremos apenas, por muito bem que cantemos, pássaros à janela (para sair ou entrar)" (...).

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(**) –A PIDE/DGS na Guerra Colonial (1961-1974), Dalila Cabrita Mateus, Ed. Terramar. 2004.

(**) – Memórias do Colonialismo e da Guerra, Dalila Cabrita Mateus, Ed. ASA. 2006.


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Notas de L.G.:

(1) Há vários posts do Leopoldo Amado no nosso blogue. Vd., por exemplo, posts de:


22 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXV: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - I Parte

25 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXXVI: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - II Parte


(2) Ilha das Galinhas: fica situada a sudoeste da Ilha de Bolama, separada desta pelo Canal de Bolama. Por lá passaram muitos dirigentes e militantes do PAIGC, incluindo um dos seus fundadores, Rafael Barbsa:

(...) "Ora, para lá do provável ou mesmo real empolamento de Pindjiguiti e da justeza ou não das formas e conceitos, sempre discutíveis, sobre a forma como Pindjiguiti foi etiquetado (contenda laboral, massacre ou carnificina) ou ainda do quantitativo de mortes que se saldou na decorrência do acontecimento enquanto tal, temos para nós que o que se afigura importante é o reconhecimento da importância e o alcance históricos que o mesmo teve, à jusante e à montante da guerra colonial/guerra de libertação, no contexto do processo libertário do povo guineense.

"Aliás, não foi por acaso que depois de Pindjiguiti o PAIGC logrou atingir uma assinalável mobilização que permitiu o desencadeamento da luta armada de libertação. Também, não foi por acaso que no decorrer da guerra colonial/ guerra de libertação, invariavelmente, o PAIGC normalmente assinalava a efeméride com ataques simultâneos a várias localidades, inclusivamente os centros urbanos, sobretudo a partir de 1968.

"Não foi igualmente por acaso que em 1962, os vários partidos e movimentos de libertação que pululavam em Dakar e Conakry (mais contra o PAIGC do que contra o colonialismo português) decidiram criar a 3 de Agosto desse mesmo ano uma frente de luta, a FLING.
"Por fim, não foi também por acaso que Spínola, por ironia do destino, mas com objectivos claramente à vista, procedeu, no âmbito da sua política da Guiné Melhor, a 3 de Agosto de 1969, a uma espectacular libertação de cerca de uma centena de prisioneiros políticos guineenses, dos quais Rafael Barbosa, ex-Presidente do PAIGC, bem como todos os que se encontravam na colónia penal d da Ilha das Galinhas, da Colónia Penal de Tarrafal em Cabo Verde e os que se encontrvam no Forte de Roçadas, em Angola, em pleno deserto de Moçamedes" (...).

(3) Vd. blogue de Leopoldo Amado, Lamparam II > 14 de Maio de 2006 > Simbólica de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau



Fonte: Guiné-Bissau Contributo (blogue de Didinho)


Também José Carlos Schwarz (que não tem qualquer parentesco com o nosso Pepito) esteve desterrado na Ilha das Galinhas.O pioneiro da moderna música da Guiné-Bissau - poeta, músico, compositor e intérprete - nasceu na capital em 6 de Dezembro de 1949. Fez os seus estudos em Bissau e Dacar. Preso político, foi deportado para a Ilha das Galinhas. Após a independência, foi director do Departamento de Arte e Cultura do Comissariado da Juventude e Desportos e encarregado de negócios da Guiné-Bissau em Cuba. Foi, de resto, aqui que encontrou a morte, num dedsastre de aviação, ocorrido a 27 de Maio de 1977 .

1 comentário:

Anónimo disse...

Foi em 1962 que pela primeira vez ouvi falar na Ilha das Galinhas. Vivia eu em S.Vicente com a minha familia quando nos "apareceu" la em casa a minha tia Mafalda e os meus primos Julinho e Izalita. Achei estranho o meu tio, Agnelo Macedo, nao ter vindo com eles. Soube depois, atravez das conversas dos mais crescidos, que o meu tio tinha sido preso pela PIDE e levado para a Ilha das Galinhas.Na altura,ele era o Chefe de Posto em Mansoa. Alguns comerciantes tinha a pratica de comprar barato e vender caro aos nativos da Guine. Compravam ao desbarato, muitas vezes abaixo dos "precos oficiais" o que levou o meu tio a tomar algumas medidas que nao agradaram aos comerciantes, e em particular a um tal Rendeiro, sediado em Mansaba e com muitos conhecidos nu aparatus da governacao colonial.O Rendeiro acusou o meu tio de perseguir os brancos, falar mal do Salazar e receber em casa "individuos suspeitos". Baseado na acusacao do Rendeiro, o meu tio foi preso e levado para a Ilha das Galinhas onde passou seis meses. Foi transferido para Mocambique onde continuou a trabalhar para os servicos administrativos da entao Provincia Ultramarina.

Jose J. Macedo, Tenete FZE
DFE 21, Guine Bissau 73-74