terça-feira, 21 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1301: O cruzeiro das nossas vidas (4): Uíge, a viagem nº 127 (Victor Condeço, CCS/BART 1913)





Companhia Colonial de Navegação > TT Uíge > Viagem nº 127 (Bissau - Lisboa) > Bordo, 2 de Março de 1969 > Ementa do jantar e programa das distrações... Por curiosidade, a ementa desse dia era: Crème Conchita; Peixe au Meunier, Batata à Parmentier; Contre-Fillet à Maître d'Hôtel, Batata Boulanger, Alface; Bábás com Rhun; Fruta; Chá, Café...

Era caso para pensar que fomos para (e viemos de) a guerra, com chef de cuisine française atrás!... Enfim, não se pode dizer que a Pátria, através da Companhia Colonial de Navegação, não tratava bem de nós... E no programa social, não faltavam os jogos de salão, as sessões de cinema, o jantar de despedida!... Só faltou o baile de máscaras, nesta farsa carnavalesca!... Àparte isto, pergunto-me o que terão comido nessa noite os desgraçados das praças que iam no porão...

O serviço a bordo na viagem nº 127 do Uíge, nos princípios de Março de 1969, na classe turística (a dos sargentos!), era seguramente bem melhor que aquele a que iremos ter direito, no mesmo navio, dois anos depois, em Março de 1971: eu, o Tony Levezinho, o Humberto Reis, o Sousa, o Abel Rodrigues, o Fernandes e os demais camaradas (metropolitanos) da CCAÇ 12... A avaliar pelas ementas, os ladrões roubaram-nos as batatas à Parmentier e o fillet mignon a que tínhamos direito! (2) ...

Do programa social já não me lembro... Aliás, quando pus os pés no Uíge eu só queria esquecer a Guiné (3)... De qualquer modo, a degradação do serviço no Uíge era um sinal dos tempos: a guerra agravava-se, metade do Orçamento Geral do Estado ia para o esforço de guerra em três frentes, Portugal continuava cada vez mais isolado no seio da comunidade internacional, a Academia Militar estava às moscas, batiam-se recordes na saída da população portuguesa para o estrangeiro, o Uíge não chegava para as encomendas, e o cozinheiro francês deve ter esgotado o stock de batatas Boulanger, a pachorra e a imaginação...

A propósito dessa nossa viagem de regresso (tudo menos triunfal) a Penates, em 17 de Março de 1971, eu escrevi:

"Regressávamos da guerra, com a morte na alma e mazelas no corpo, num navio da marinha mercante da Companhia Colonial de Navegação (uma empresa, fundada em Angola em 1922, para assegurar os transportes marítimos das colónias portuguesas com a Metrópole, sendo o paqueteVera Cruz o seu navio mais emblemático, e que não teve tempo de fazer o branqueamento do seu nome, já que o termo colonial não era politicamente correcto no início dos anos 70...).

"Como se tudo continuasse como dantes e a vida corresse normalmente, contra os ventos da história (como então se dizia), nessa viagem de regresso à pátria servia-se a bordo, na classe turística (reservada aos sargentos) uma sopa de creme de marisco, seguido de um prato de peixe (Pescada à baiana) e um de carne (Lombo Estufado à Boulanger)... sem esquecer a sobremesa: a bela fruta da época, o bom café colonial, o inevitável cigarro a acompanhar um uísque velho, antes de mais uma noitada de lerpa ou de king" (3)... (LG)

Fotos e texto: © Vitor Condeço (2006)

Camarada Luís Graça,

Em primeiro lugar deixe-me cumprimentá-lo e elogiar o seu muito digno e meritório trabalho que tem conseguido levar por diante no blogue.

Ter já conseguido fazer deste blogue um referencial histórico de um período da história de Portugal, escrito pelas pessoas que fizeram essa própria história, não é obra fácil.

Que tenha a saúde, a disposição e a disponibilidade de tempo suficientes para poder continuar a sua obra e que não faltem as colaborações dos nossos camaradas e amigos da Guiné.

Sou assíduo frequentador desde Março de 2006, altura em que, procurando por mapas da Guiné, me deparei com este excelente sítio. Raro é o dia que o não visite, já li também a grande maioria dos postes mais antigos, onde recordei ou fiquei sabendo de acontecimentos que já não lembrava ou nunca soubera.

Já ando há tempos para lhe escrever, tem-me faltado a coragem mas, ao ler há dias o Post 1271 e hoje o 1296 sobre O cruzeiro das nossas vidas (1) , achei que devia contribuir com algo que este blogue teve a virtude de me ajudar a redescobrir a minha velha mala de porão que não era aberta há talvez trinta anos, e que foi-o de novo.

O material digitalizado que junto em anexo, pode ajudar a ilustrar esses mesmos cruzeiros e o Luís usará como lhe aprouver se neles reconhecer algum interesse.

Trata-se da ementa do primeiro jantar de regresso da Guiné a bordo do NM Uíge e do programa de distracções para os cinco dias previstos da viagem, que afinal acabaram por ser seis.

Os passageiros eram os militares dos BART 1913 e do BART 1914.

São portanto, recordações desse cruzeiro, iniciado a 26 de Abril de 1967, quando na Rocha do Conde Óbidos embarquei no Uíge com destino à Guiné.

Já tinha quase vinte meses de tropa, já nem contava de ser mobilizado, mas fui, infelizmente todo o pessoal do meu curso foi contemplado com um destes cruzeiros.

Sou um velho combatente (63 anos feitos ontem, dia 18 de Novembro), estou aposentado, meu nome é Victor Manuel da Silva Condeço, ex-Furriel Miliciano 00698264, do Serviço de Material – Mecânico de Armamento e, por isso mesmo, sem grandes histórias de guerra para contar. Este blogue teve a virtude de me despertar recordações, umas boas, outras menos boas, mas que nem por isso deixam de ser uma forma de reviver um passado de há quase quarenta anos.

Participei na Guerra da Guiné por obrigação, como aliás quase todos nós, desde 1 de Maio de 1967 a 3 de Março de 196, fazendo parte da CCS do BART 1913 que era constituído também pelas CART 1687 (Cachil e Cufar), CART 1688 (Bissau e Biambi) e CART 1689 (Fá, Catió, Cabedú e Canquelifá).

Estive na região do Tombali na Vila de Catió, Comando de Sector, pertencente ao Comando de Agrupamento de Sectores de Bolama. As unidades deste sector eram: Bedanda, Cabedú, Cachil (i), Cufar e o destacamento de Ganjola (i), por todas passei em serviço.

Desembarquei em Catió a 2 de Maio de 1967, os vinte e um meses de comissão foram aqui cumpridos, até 20 de Fevereiro de 1969, data em que regressei a Bissau.

Um abraço Luis, por hoje é tudo.
Victor Condeço


Comentário de L.G.:

Meu caro Victor:
Julgo que tu és o primeiro especialista mecânico de armamento que aparece por estas bandas. E não penses que é uma especialidade de 2ª classe: pelo contrário, se a G3 encrava ou se o canhão sem recuo não recua, estamos todos fritos... Humor à parte, nenhum de nós vem aqui exibir o seu cardápio de roncos, o seu currículo de horrores ou o seu estojo de cruzes de guerra... Todos estivemos lá, todos somos camaradas da Guiné... É isso que nos une. Sê, portanto, bem aparecido e, quando te der jeito, manda duas chapas tuas para a fotogaleria... A gente gosta de conhecer a cara dos camaradas e de os ouvir falar dos sítios fantásticos por onde andaram e da gente simples e boa, guineense, com quem conviveram... Fala-nos de Catió, e de como eram as coisas no teu tempo... A Catió que era gozada nos programas de rádio a fingir, para a plateia da caserna: E agora um disco pedido, pelo Embaló, que tem um primo em Catió!....

Um dia destes, encontramo-nos por aí, para dar um abraço uns aos outros e beber um copo... Obrigado, pela teus recuerdos da viagem nº 127 do Uíge, a caminho de casa, depois de mais de quarenta longos meses de tropa (120o e tal dias!!!)... Ah, e já agora, um abraço de parabéns do tamanho da nossa tertúlia pelos teus belos 63 anos! (LG)
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(i) Estes aquartelamentos foram desmantelados e abandonados pelas NT a meio do segundo semestre de 1968, em virtude da adopção de novas estratégias pelo então Brigadeiro Spínola, Comandante Chefe do CTI da Guiné (4).
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Nota de L.G.:

(1) Vd posts

21 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1300: O cruzeiro das nossas vidas (3): um submarino por baixo do TT Niassa (Pedro Lauret)

21 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1299: Antologia (54): Transporte de tropas, por via marítima e aérea (CD25A / UC)

19 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1296: O cruzeiro das nossas vidas (2): A Bem da História: a partida do Uíge (Paulo Raposo / Rui Felício, CCAÇ 2405)

12 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1271: O cruzeiro das nossas vidas (1): O meu Natal de 1971 a bordo do Niassa (Joaquim Mexia Alves)

(2) Vd. post de 9 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXV: Amigos para sempre (Tony Levezinho, CCAÇ 12)

(3) Vd. Blogue-Fora-Bada... e Vão Dois (Luís Graça) > post de 8 de Dezembro de 2005 > Blogantologia(s) II - (22): Esquecer a Guiné

(...)

Esquecer a Guiné... por uma noite!
O sabor a sangue e a merda
Que a vida aqui tem,
Aos vinte e três anos,
Já feitos.
A merda da Guiné.
A merda que te cobre o corpo e a alma.
É mais do que a merda toda
Das bolanhas, das lalas e do tarrafo.
Podes lavar-te todos os dias
Que essa merda
Nunca mais te sai.
Nunca mais te sairá do corpo e da alma.

(...)

(4) Em Ganjolá morreu um primo meu, o soldado José António Canoa Nogueira, natural da Lourinhã, em 1965. Já aqui transcrevi uma das suas últimas cartas: vd. post de 8 de Setembro de 2005 (Guiné 63/74 - CLXXXI: Antologia (18): Um domingo no mato, em Ganjolá ).

Sobre o destacamento do Cachil, diz o oficial da Armada Marques Pinto:

(...) Percorri várias vezes o Rio Cobade, frente á Ilha do Como, lá recebi o meu primeiro abonanço de morteirada, felizmente sem consequências para o pessoal embarcado e lá fiz algumas entregas logísticas para o infelizmente célebre e tão martirizado destacamento do Cachil, que segundo me contaram pessoalmente alguns soldados tinham de fazer escolta armada para percorrerem os 300 a 400 metros que os separavam da água" (...)

Vd. post de 29 Outubro 2006 > Guiné 63/74 - P1221: Lembranças de mais um marujo (Marques Pinto)

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