quinta-feira, 7 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1057: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (8): Os meus novos amigos de Missirá

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > s/d > Um dos valentes soldados do Pel Caç Nat 52, e um dos novos amigos do Beja Santos.

Foto: © Beja Santos (2006)


Texto do Beja Santos, enviado em 25 de Agosto de 2006 :

Caro Luís, agora é que eu descobri que tenho episódios para contar entre Agosto de 68 e Setembro de 70, com as sequelas do meu regresso à Guiné em Janeiro de 90 e de Setembro a Dezembro de 91.

Espero cumprir cabalmente a missão que me propus. Para a semana enviar-te-ei novo sobrescrito com fotografias. Não tenho palavras para te agradecer os cuidados que vais pondo na minha prosa ilustrada. Procurarei corresponder a tais provas de estima. Como já te escrevi, ficarás fiel depositário de toda a minha documentação. Os aerogramas do Contra-Almirante Teixeira da Mota, se houver condições, poderiam vir a ser oferecidos a um departamento da Guiné, já que ele amou profundamente aquela terra. Espero termos vida bastante para encaminhar para os locais certos papelada que vai pertencer à História.



Os inolvidáveis encontros humanos, e a fala da razão e do coração: os meus novos amigos

por Beja Santos

Na minha primeira semana em Missirá (1), lembro-me de ter anotado numa folha:

"1- Os míudos precisam de aulas, temos que pôr uma escola a funcionar; 2- Não se pode comer desta maneira: os cozinheiros têm que ir estagiar a Bambadinca; 3- Importa calendarizar as obras de segurança do quartel: estacas e arame farpado, três fiadas novas; pedir metralhadoras modernas, já que não se vai a parte nenhuma com a Breda e a Dreyse; fazer casas de banho pois os militares vão permanentemente atrás da árvore..."

Quanto à escola, chamei o Zé Pereira, um papel de Bissau que tinha frequentado a missão católica. Era 1º Cabo, falava primorosamente, tinha mesmo uma encenação professoral. Disse-lhe:
- Zé, temos cerca de 40 crianças que sabem agricultura e que vão connosco com uma Mauser na mão até Bambadinca. Temos que as preparar para fazer exames de instrução primária. O que é que tu sugeres?.

O Zé lembrou-me que era militar e que não queria abandonar tal estatuto. Cortei rápido:

-Vamos fazer uma instalação para a escola, tu propões-me um professor, vou arranjar livros, cadernos e ardósias e toda a gente do pelotão de caçadores nativos e das mílicias de Missirá e Finete vai aprender a falar português.
Para quem não se recorda, o português era falado entre brancos, entre brancos e alguns guineenses como o Zé Pereira. Eu recorria sistematicamente a vários intérpretes: ao Zé, ao Domingos Silva (quando não estava bêbedo), ao Albino Mamadu Baldé, Comandante da Milícia de Missirá ( também conhecido por Samba, não me perguntei porquê), entre outros, visto ser interpelado em crioulo, mandinga e fula com a maior das naturalidades. Interpelado em quê? Para levar doentes ao posto médico; para fazer uma coluna a Finete para fazer sacos de arroz; para trazer géneros, equipamento militar e até petromaxes (mesmo com as promessas do Spínola, deixei Missirá sem electrificação).
A escola foi negociada com o régulo, acertou-se o horário das aulas, fui arranjar um professor ao Bambadincazinho (avisei os arranchados que iriam comer "um pouco menos bem", já que algum dinheiro seria destinado ao professor, o que ao princípio deu contestação, mas no mês seguinte foi aceite, quando passei a regatear mais comida na CCS [do BCAÇ 2852, com sede em Bambadincxa], episódio a não perder num dos próximos capítulos), o Zé e eu passámos a dar aulas à tropa, ao sabor dos tempos livres (o Luis Graça é capaz de descobrir uma fotografia alusiva).
Passando para a comida, o frango praticamente cru e o arroz espapaçado que o Doutor me atirou num prato de alumínio pelas 5 horas da tarde daquele dia 4 de Agosto de 1968 não me saem da memória. Passei a viver em levantamento de rancho espiritual. Nessa altura era o Cabo Veloso que exercia as funções de vagomestre, arroz num lado, caixa de folha de flandres com bacalhau noutro, caixas com leite achocolatado noutro e ainda hoje tenho um zumbido nos ouvidos com o barulho do frigorífico que trabalhava a petróleo.
O Doutor era o petit nom afectuoso de Quebá Sissé, um mandinga todo desengonçado que falava permanentemente a rir. Apercebi-me rapidamente que era uma violência falar de culinária com o Doutor. Comida para ele era bacalhau cozido com batatas. Quando lhe falei em assar, assegurou-me que era impossível pois ficava queimado... Havia o frango, as conservas (o famigerado pé de porco), as compras de porco de mato ou gazela, carnes que não me pareciam apetecíveis.
Levei o Quebá Sissé e o Umaru Baldé para Bambadinca, com uma proposta de estágio nas messes de oficiais, sargentos e praças. E o que era fome passou a fartura. Passou-se a fazer a ementa semanal com os dois cozinheiros a sugerirem canjas, pratos de peixe, bifes de vaca, empadões e até doces. Eu, que vinha traumatizado de ter sido gerente de messe nos Açores, onde obriguei a guarnição a comer ovos de toda a maneira, chicharro e atum, torci o nariz, fui cortando naquelas propostas que julgava pantagruélicas, e sentenciei:
-Estamos em guerra, o dinheiro é pouco, não há luxos, façam simples e saboroso.
Resta dizer que as instalações onde comíamos e a cozinha eram alfurjas, a que chamaríamos hoje espaço multiusos. Com efeito, mal se dava por fim a refeição, havia quem jogasse o loto a feijões, quem escrevesse aerogramas e ouvia rádio (ouvíamos o Manuel Alegre a partir de Argel, como se ouviam igualmente as canções do momento ou os grandes clássicos a pedido da tropa, tipo Adeus, Guiné ou Mãe, estás tão longe de mim). Foi à porta desta espelunca que nos fins de Setembro uma rajada de PPSH levou o telhado e o Teixeira das transmissões atirou-se para dentro de um bidão com restos de garrafas. Eu depois conto.

Quanto ao armamento, foi guerra que perdi para sempre. Tirando algumas HK21 e depois o morteiro 81, fiquei sempre reduzido a armamento pré-histórico. E, como se verá adiante, eu era credor de ter uma peça de artilharia para responder às sucessivas arremetidas do PAIGC.

Vou ganhar a batalha da higiene, pois claro. A engenharia de Bissau irá oferecer-nos um engenhoso mecanismo de 6 bidões que irão facilitar a limpeza de quem combate e patrulha diariamente Mato de Cão. A chegada deste mecanismo a Missirá é um episódio de gesta heróica. As amizades estreitam-se. A confiança estabelece-se. A autoridade surge espontaneamente. Nenhuma provação em tempo de guerra prescinde de valores e da sinceridade da relação humana. Naquele ponto do Cuor, estabeleciam-se misteriosas concordâncias entre o coração e a razão. Coisas que também se irão contar.
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Nota de L.G.:

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