terça-feira, 18 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P968: Memórias de Mansabá (4): A morte do Alf Couto da CART 2732, dia 6 Outubro de 1970 (Carlos Vinhal)

Guiné > Zona Leste > Xitole > 1970 > A temida mina antipessoal PDM-6 (vd caixa aberta), reforçada com uma carga de trotil de 9 kg (as barras do lado direito). Detectada e levantada na estrada Bambadinca-Xitole pelo furriel de minas e armadilhas Guimarães da CART 2716. "Bem, ia uma GMC ao ar, isso sim!...".

Foto: © David J. Guimarães (2005)
Texto do Carlos Vinhal, ex-Fur Mil Art MA CART2732, Mansabá (1970/72)


Os fatídicos dias 5 e 6 de Outubro de 1970

O Aquartelamento [de Mansabá] tinha sido atacado na noite de 5 de Outubro. Deste ataque resultou a morte imediata de um soldado milícia e ferimentos ligeiros em alguns militares da nossa CART (1).

Na manhã seguinte havia que fazer o reconhecimento da zona envolvente, pois o IN esteve muito próximo e normalmente deixava pistas que, de alguma forma, serviam para recolher ensinamentos para futuros ataques. Além de tudo, por vezes, antes de retirar, o IN deixava armadilhas nos itinerários utilizados por nós e pela população. A acção de reconhecimento competia ao Pelotão de Piquete.

No dia 6 estava de Piquete o 4.º pelotão, cujo Comandante era o alferes Couto que tinha, como eu, o curso de Minas e Armadilhas. Do mesmo pelotão fazia ainda parte o Furriel Sousa, também com o curso de minas.

Por motivos óbvios toda a malta se tinha deitado muito tarde e descansado pouco, mas manhã cedo lá saiu o 4º pelotão para o mato, reforçado pelo meu, o 3.º, para proceder ao dito reconhecimento.

Decorrido algum tempo após a saída dos pelotões, ouviu-se no aquartelamento um estrondo e quase de seguida, pelo rádio, ouviram-se pedidos de socorro para evacuar um morto e um ferido, vítimas do rebentamento de uma mina antipessoal num carreiro no designado Alto de Bissorã. Saíram imediatamente algumas viaturas para trazerem os sinistrados.

Quando regressaram, traziam o cadáver do Alferes Couto. O ferido era o Alferes Bento, comandante do meu pelotão, que também tinha sido atingido ao tentar socorrer o seu camarada e amigo.

O Alferes Couto era um homem com cerca de trinta anos que tinha sido incorporado com aquela idade, quando era tripulante dum navio da Marinha Mercante. Não sabemos a razão de tão tardia ida para a tropa, nem vem ao caso. Sabíamos sim que ele era casado e pai de dois filhotes. Muito comunicativo, pouco adaptado aos cerimoniais militares, apreciava mais o convívio dos soldados do seu pelotão em detrimento dos seus colegas oficiais. Lembro-me de, durante o Curso de Minas na EPE, Casal do Pote, ele passar horas a jogar matraquilhos connosco no Bar dos Praças daquela Unidade. Era um homem simples e superior ao seu estatuto de oficial.

Como operacional na Guiné, julgo que o Alf Couto já tinha neutralizado e/ou levantado algumas minas antipessoais até que chegou o fatídico dia 6 de Outubro de 1970.

As minas PMD6 utilizadas na Guiné eram traiçoeiras e por vezes difíceis de manusear. Algumas com a humidade do solo, e porque eram de madeira, inchavam de tal modo que retirar a espoleta era uma autêntica lotaria. Não se sabe exactamente o que ele pretendia fazer, só se sabe que a determinada altura chamou o Alf Bento para lhe dar ajuda naquela mina. Quando este se dirigia para ele, deu-se a explosão que ainda o atingiu.


Guiné > Região do Oio > Mansabá > CART 2732 (1970/72) > Vista aérea do aquartelamento.

Foto: © Carlos Vinhal (2006)

Eu, que na altura não era operacional, estava na secretaria onde colaborava, no momento em que tudo aconteceu. Pude assim acompanhar junto do rádio o desenrolar dos acontecimentos.

Depois de removido o cadáver do Alf Couto e de o Alf Bento ter recolhido à enfermaria para posteriormnete ser transferido para o HM 241 [Hospital Militar de Bissau], havia que voltar ao local do incidente para continuar a neutralizar as outras minas detectadas.

Recebi então ordem do Comandante da Companhia para avançar e dar continuidade ao trabalho que ficou por acabar. Chegado ao local fatídico, estavam assinaladas duas minas antipessoais guardadas por alguns militares completamente consternados. Ao verem-me, desejaram-me as maiores felicidades.

Como se sabe, ao tempo as minas detectadas davam prémio pecuniário a quem as detectasse e a quem as levantasse, mas como o dinheiro não valia o risco de vida, eu tinha prometido a mim mesmo, durante o Curso, que jamais tentaria levantar alguma mina antipessoal, a menos que fosse impossível rebentá-la no local. Depois da morte do meu camarada Couto mais convencido fiquei de que tinha a razão pelo meu lado.

Assim, comecei por juntar às minas detectadas uns pedaços de TNT, que iriam ser accionados por detonadores pirotécnicos alimentados por cordão lento. Na altura ainda não dispunha de disparador eléctrico. Claro que isto exigiu que eu andasse por ali às voltas. Examinei tanto quanto pude o terreno por onde iria correr enquanto o cordão ardesse e um local para me proteger quando aquilo tudo explodisse. Pus o pessoal em bom recato, peguei fogo ao rastilho, corri e abriguei-me, esperando pelas explosões. Quando estas aconteceram, fui ao local ver o resultado e reparei que, em vez de duas crateras correspondentes às duas minas detectadas, tinha três. Na realidade não havia duas, mas sim três minas, sendo que a terceira não tinha sido detectada e eu não a pisei por mero acaso e sorte. Esta rebentou com as outras por simpatia.

Missão cumprida e retorno ao quartel onde o constrangimento era geral. Ainda estava fresco o cadáver dum camarada, que não veria crescer os dois flhos deixados em casa aos cuidados da mãe, há seis meses apenas. Tinha acontecido a nossa primeira baixa.

A partir deste dia passei a ser operacional quase a 100%, sem no entanto deixar de continuar a colaborar na Secretaria e mantendo a gerência dos bares como anteriormente.

Além disto fiquei com a responsabilidade das actividades relacionadas com as Minas na Companhia, porque o alferes substituto do camarada Couto não tinha o Curso de Minas e Armadilhas. Fiz muitas patrulhas em que o meu Pelotão não tomava parte, porque desde que o 1º ou o 2º Pelotões fossem passar em zonas minadas ou armadilhadas por nós, era exigida a minha presença.

O 4º Pelotão não precisava que eu os acompanhasse pois tinha o meu camarada Sousa numa das suas Secções. Embora houvesse relatórios de implantação das zonas armadilhadas, exigiam sempre a presença de um de nós para assegurar que ninguém da Companhia accionava as nossas armadilhas. Diga-se em abono da verdade que quando o meu pelotão saía e a minha presença era dispensável, eu era poupado. Chamada lei das compensações.

PS - Com especial dedicatória ao nosso camarada bloguista David Guimarães, meu contemporâneo no CTIG e companheiro mineiro.

Guiné-Bissau > Bissau > 2001 > O David Guimarães, na viagem de regresso à Guiné e ao seu Xitole onde foi furriel miliciano atirador, da CART 2716 (1970/1972), com a especialidade de minas e armadilhas (2)

Foto: © David J. Guimarães (2005)
_________

Nota de L.G.

(1) Vd. post de 18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXI: Breve historial da CART 2732 (Mansabá, 1970/72) (Carlos Vinhal)

(...) "É minha obrigação lembrar a memória daqueles que partiram do Funchal e que, por morrerem, não regressaram connosco. São eles:
- Alf. Mil.º Art.ª MA Couto que em 6 de Outubro de 1970 foi vítima do rebentamento de 1 mina A/P;
- Soldado Malcata que em 16 de Maio de 1971 faleceu por motivo de doença;
- Soldado Silvestre que em 17 de Maio de 1971 faleceu por motivo de acidente;
- Soldado Vieira que em 6 de Dezembro de 1971 foi morto numa emboscada;
- e, por fim, Soldado Barbosa que foi ferido na mesma emboscada, acabando por morrer no HM 241 em 17 de Dezembro de 1971" (...)

(2) Vd. posts de
23 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXV: Minas e armadilhas (David Guimarães)

3 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLI: A região do Xitole, por onde andou o Nino... (David Guimarães)

(...) Tocou-me a mim num belo dia. Eu é que ia a comandar o grupo (o Alferes estava de férias). E lá já bem perto de Jacarajá:

- Mina, mina, porra!... E agora!?

Tocou-me a mim: afinal eu é que era o artista. Em Tancos tinham-me ensinado a trabalhar com aquilo: "manga de cu piquinino", protecção feita, suores frios ao sol quente... Bem, lá consegui operar... Tínhamos que comer... Lá ficou o buraco feito e do chão extraí isso que envio em fotografia... Um Mina PMD-6, espoleta MUV, duas barras de trotil de 4 kg, mais aqueles dois calcinhos do mesmo material a 200 gr cada cada um, sendo que dentro da mina lá estavam os 400 gr habituais da carga base onde actuaria o detonador depois de accionada a espoleta...

- Ufa, que merda!... Já está! - e daqui a pouco lá vinha a coluna, o barulho daqueles motores e, à frente, a Daimler do [Alferes] Vacas de Carvalho....

Pronto, e lá ficamos o dia inteiro até que lá a coluna volta a passar, mas de regresso a Bambadinca. Nós, por nossa vez, lá regressamos ao quartel no Xitole.

Mais tarde lá me deram os 300 escudos (prémio por levantamento de material explosivo):

- Pronto, mais um dinheirinho para beber umas bazucas [cervejas] ...

Foi um dia de rotina, um pouco diferente - uma mina sempre é uma mina.....
(...)

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