domingo, 16 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P963: Antologia (50): Português, língua africana, com muitas (ciber)dúvidas (Luís Graça)

O português, a língua portuguesa, pode (e deve) ser uma janela de oportunidades para todos os seus falantes e para todos os povos cujos Estados o(a) têm como língua oficial... Não confundir este recurso (essencial) - a língua como elemento estruturador da identidade e da cultura de um ou mais povos que a história pôs em contacto, aproximou, modelou - com um instrumento de dominação e exploração... Se um guineense, angolano ou moçambicano já não vê a língua portuguesa como a língua oficial de uma potência colonial ou até um instrumento de dominação de uma dada cultura, é bom que os portugueses, alguns portugueses, tomem consciência de que o português já não lhes pertence, tem uma dinâmica própria, uma dinâmica universal, é também património de outros povos... Falar bem e escrever melhor o português são duas coisas essenciais para todos nós, para o futuro dos nossos povos... Adicionalmente, é um ponto de honra da nossa tertúlia e dos seus membros...

Foto: Parede exterior de uma casa, pintada com os símbolos e as cores da bandeira portuguesa... por ocasião do Campeonato Mundial de Futebo dee 2006. Local: Lourinhã, Bairro de Santa Catarina; data: Julho de 2006.

Fotógrafo: © Luís Graça (2006)


Agora que acabou (felizmente!) o Campeonato Mundial de Futebol de 2006 e o nosso coração pôde finalmente repusar em paz, no sítio do costume, deixámos de falar futebolês e voltámos a preocupar-nos com as mil e umas outras coisas de que também é feita a vida... A começar pela língua (materna e/ou oficial) de cada um de nós...

Selecionei e vou aqui reproduzir - com a devida vénia aos respectivos autores e fontes -, dois textos, a propósito da importância estratégica do português, num mundo global, permitindo a comunicação, por exemplo neste blogue, entre guineenses e portugueses que passaram por uma experiência comum que foi a guerra de 1963/74, conduzindo à independência da República da Guiné-Bissau... Mas também sobre as dúvidas (incluindo as ciberdúvidas) sobre o que se tem feito no domínio das políticas da língua por parte da CPLP, em geral, e de cada um dos membros da CPLP, em particular...

Justamente, amanhã, em Bissau começa mais um encontro oficial da CPLP, dos oito países da CPLP, numa organização que teve o apoio (político, logístico e financeiro) de parceiros tão inesperados como a China e a Líbia... Do português se ouvirá falar, de certo, nestes próximos dias e em português se entenderão, em Bissau, os representantes dos países da lusofonia...

Embora modestamente, o nosso blogue pretende, também ele, ser em português um traço de união entre os nossos povos...

1. CPL QuÊ?
editorial Nuno Pacheco
Público 16 de Julho de 2006

Por estes dias, reúnem-se em São Petersburgo os mais ricos, vulgo G8; e em Bissau reúnem-se noutra cimeira alguns pobres (uns mais que outros, evidentemente) sob a sigla CPLP. São também oito e, ao longo de uma década de voluntária união, alinhada em quatro consoantes de difícil pronúncia, pouco mais conseguiram do que a fama, simpática, de bons mediadores em conflitos. Nos seus conflitos, diga-se. No mundo, as tais letras pouco pesam. Falta-lhes "visibilidade", lamentam-se os seus líderes. Na verdade faltam-lhe outras coisas: mais empenhamento colectivo nos objectivos há muito traçados, mais capacidade de execução prática, mais acção e menos retórica.

Amanhã, em Bissau, a tal cimeira que reúne chefes de Estado e outros governantes de Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste, decorre num cenário de algum "luxo" visual: como relatava ontem a agência Lusa, "as ruas foram limpas, as paredes pintadas, os buracos nas estradas tapados e até um hotel de cinco estrelas foi construído em tempo recorde para acolher os cerca de 400 participantes, entre delegações e jornalistas". Num país que tem vivido mergulhado em permanentes conflitos políticos e militares e apresenta ainda hoje um dos piores índices de pobreza do mundo, vão circular também doze limusinas de luxo com "chauffeur" e 18 motorizadas, emprestadas pela Líbia a fim de servirem de transporte aos participantes na cimeira. Sob este artificial e fugaz fausto, a CPLP bem pode encontrar meios eficazes de sair da sua semi-sonolência e rumar a territórios onde pode, de facto, ser útil. Assim o queiram os seus membros. Pode dizer-se que, na VI cimeira da sua primeira década de vida (haverá outras? Deixarão algum lastro na história?), a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa só pode aspirar a um balanço magramente satisfatório. Montou uma máquina burocrática que se aprimorou em diplomacias e salamaleques de ocasião mas se mostrou fraca ou quase inútil para levar a bom termo dois dos objectivos primordiais a que propôs na sua génese: a projecção da língua portuguesa e a cooperação no desenvolvimento.

Num comentário colocado no site Ciberdúvidas, a propósito do futuro da língua portuguesa no mundo, há uma síntese exemplar assinada por José Manuel Matias: "A expansão do Português no mundo surgirá naturalmente, quanto mais ciência se fizer em língua portuguesa, quanto mais cultura for criada em língua portuguesa, quanto mais arte for criada em língua portuguesa e quando os países integrantes da CPLP se afirmarem nas relações económicas internacionais. Estes factores serão essenciais para que falantes de outras línguas necessitem e queiram aprender a falar Português." Se a nível da projecção económica as dificuldades se avizinham maiores, já em termos da criação ou investigação há um caminho que pode e deve ser incentivado. Isto cuidando, sempre, de respeitar as outras línguas ou dialectos no espaço onde também (embora não exclusivamente, é bom não esquecer) se fala o português. Quanto à cooperação no desenvolvimento, só os mais ricos de entre os tais oito pobres poderão acentuar incentivos e práticas recomendáveis e úteis. Pode ser que as tais consoantes de difícil pronúncia passem, até, a soar melodiosas com o tempo.


2. Português, língua africana *
José Manuel Matias**
Ciberdúvidas da Língua Portuguesa

Os países de língua oficial portuguesa constituem uma base da maior importância para a expansão do português em África. A opção pela língua de Camões foi tomada pelos movimentos independentistas ainda no decurso da luta de libertação e resultou do reconhecimento de que a sua utilização concorreria eficazmente para consolidar as fronteiras políticas e culturais dos futuros Estados, contribuindo também para fortalecer a independência e unidade nacional.

Naturalmente que nessa decisão pesaram os exemplos dos processos de descolonização no continente africano, mas, igualmente, a contribuição da língua na construção da unidade do Brasil. O fundador do PAIGC, Amílcar Cabral, sintetizou a relevância da língua portuguesa, ao afirmar que «o português é uma das melhores coisas que os portugueses nos deixaram».

O potencial da nossa língua em África é extremamente significativo, sobretudo no hemisfério sul. Além dos PALOP, cuja população crescerá, segundo as estimativas da ONU, para 58 milhões em 2025 e para 83 milhões em 2050, regista-se uma crescente procura da aprendizagem do português nos diversos sistemas de ensino de países que integram a SADC, com particular destaque para a África do Sul, Namíbia e Zimbábue. Idêntico movimento se verifica em vários Estados da UEMOA e CEDEAO, assumindo especial relevância os casos do Senegal, da Costa do Marfim e do Gabão.

Procurarei, de seguida, sintetizar algumas reflexões que permitam deduzir a importância do português para os países africanos de língua oficial portuguesa, no limiar do séc. XXI:

A Língua Portuguesa como elemento estruturante das identidades nacionais

O Estado africano foi criado durante a implantação do colonialismo europeu que, na sua génese, não teve em consideração as identidades africanas. Assim, o clássico modelo de nação, ambicionada pelas soberanias ocidentais, foi adoptado pelos povos africanos que se tornaram independentes no processo de descolonização da última metade do século XX.

Surgiram, assim, Estados formados pela integração de grupos com identidades culturais e linguísticas muito diferenciadas. Neste contexto histórico, político e cultural, pela sua capacidade de endogenizar povos linguisticamente vários, a língua portuguesa é um elemento substancial da construção das identidades nacionais.

Por outro lado, a afirmação e assimilação do português em espaços africanos com fronteiras estatais que separaram uma mesma identidade linguística – fa(c)to muito comum em Angola, na Guiné-Bissau e em Moçambique – opera um processo de diferenciação de comunicação linguística em relação à do outro Estado que é, em si, um factor de identidade nacional. Muitos intelectuais africanos dos países da CPLP afirmam que o português «exprime a construção das nacionalidades.

Neste contexto de contingência histórica, a língua portuguesa em África (principalmente em Angola e Moçambique, onde a geografia não forjou nenhum crioulo) não é um instrumento neutro, um contigente meio de comunicação entre os africanos, mas a expressão da sua afirmação nacional. Em suma é um factor de apaziguamento político e social.

A Língua Portuguesa e o desenvolvimento econó[ô]mico

Nas sociedades contemporâneas o desenvolvimento económico dos Estados está intimamente associado aos avanços da ciência e da tecnologia. O Produto Interno Bruto depende muito dos índices de investigação científica. Nos países africanos membros da CPLP a forma mais imediata de acesso ao conhecimento é através da língua portuguesa, língua do sistema educativo.

Por outro lado, nestes países, o domínio da língua portuguesa é fundamental como elemento estruturante do próprio Estado, pois o português é a língua da administração, e uma administração pública eficaz é outro fa(c)tor essencial do desenvolvimento econó[ô]mico, tanto mais que, nestes países, o seu tecido empresarial ainda se encontra em processo de formação histórica. O escasso domínio da língua da administração provoca, em certas circunstâncias, uma certa impotência do Estado para solucionar problemas quotidianos.

A Língua Portuguesa como afirmação de cidadania
O domínio da língua portuguesa é igualmente uma afirmação de cidadania e de democratização das sociedades africanas. O fraco domínio da língua da administração dificulta a comunicação entre estas populações e o Estado e com as elites políticas, marginalizando-as do desenvolvimento econó[ô]mico e da participação política e cívica.

O domínio da língua portuguesa é, assim, fa(c)tor imprescindível de resgate dos diversos espaços e linguagens, para que toda a população se afirme como cidadãos sujeitos responsáveis pela sua posição nas sociedades.

O espaço do português em África
Nas últimas décadas, assistiu-se a uma expansão exponencial do português nos países africanos de língua oficial portuguesa com a possível excepção da Guiné-Bissau, embora seja difícil estabelecer quantitativos exa(c)tos de falantes de português.

Dados do Recenseamento Geral da População de 1997 de Moçambique (Ministério da Educação) indicam que, numa população de doze milhões de habitantes (população com mais de cinco anos de idade), cerca de 6,4 por cento fala o português como língua materna, em zonas urbanas, e 1,2 por cento em zonas rurais. Assim, possivelmente mais de quatro por cento dos moçambicanos terão o português como língua materna. Ainda segundo este mesmo recenseamento, cerca de 40 por cento da população fala o português como segunda língua, havendo uma taxa de cerca de 59,9 por cento de analfabetismo. Poderemos admitir que alguns milhões de moçambicanos não conseguem comunicar em português.

Em relação a Angola, o sítio www.ethnologue.com estima que a percentagem de população que tem o português como língua materna seja muito superior à de Moçambique, possivelmente o dobro. Este fenó[ô]meno resulta de décadas de guerra civil que transformaram a cidade de Luanda numa megametrópole constituída pelas muitas nações angolanas que, para comunicar entre si, tiveram de se socorrer do português. Este país com uma taxa de 55,2 por cento de analfabetismo, tal como Moçambique, terá alguns milhões de habitantes que não conseguem comunicar em português.

Segundo o mesmo sítio na Internet, somente 11 por cento da população da Guiné-Bissau fala o português; e sobre Cabo Verde e São Tomé e Príncipe apontam para percentagens de cerca de 70 por cento de populações bilingues (têm o crioulo como língua materna e o português como segunda língua).

Dizem que um pessimista é um optimista bem informado. Eu não queria carregar excessivamente na nota negativa, quero apenas sublinhar que, com estes dados, torna-se necessário maior investimento na difusão do português em África, designadamente na Guiné-Bissau. Estes dados evidenciam uma realidade: a língua portuguesa em África ainda não ultrapassou as fronteiras da cidade; é um meio de comunicação essencialmente urbano; não conquistou as comunidades rurais.

Já em Angola, em Moçambique e na Guiné-Bissau, para as comunidades do interior a língua portuguesa é-lhes estranha, pois os seus processos históricos foram outros. Contudo, para a constituição do Estado-Nação formado, como diz o sociólogo catalão Manuel Castells, por «nós de uma rede de Poder mais abrangente», para um Estado-Nação, dentro do qual as comunidades rurais se possam afirmar plenas da sua identidade, é necessário o domínio do português. A língua portuguesa ajudará estes países a caminhar para um tempo exclusivamente seu, num processo de reconstrução da sua própria identidade

A expansão do português para o mundo rural destes países, porém, não poderá corresponder à extinção das línguas africanas. Com a morte de uma língua, morre uma criação humana, uma forma particular de exprimir uma concepção do mundo, um modo de expressar uma relação com a natureza, uma tradição oral, uma poesia.

Para que este fenó[ô]meno não ocorra é necessário a adopção de Didácticas que assumam uma relação de diálogo autêntica entre as diferentes línguas, de tal modo que se pressuponha a não existência de uma língua com estatuto privilegiado. As sociedades africanas estão assim perante o desafio de desenhar e construir relações de igualdade entre as suas línguas incluindo a portuguesa como componentes essenciais do seu património cultural.

Trata-se de um desafio não somente linguístico, mas sobretudo cultural. Assim se exprimiu recentemente Mia Couto:

«A língua portuguesa tem de romper com o estatuto de oficialidade para se tornar uma língua de expressão plena, de tradução da intimidade. Os que pensam que isso só é possível se se agride a africanidade estão cativos de uma atitude estética. Afinal é preciso acreditar que os africanos, ao adoptarem um língua europeia, não ficam em posição de inferioridade, a sua cultura originária fica até mais forte.»

(comunicação lida no Congresso Bienal da Língua Portuguesa na CPLP, em Viseu, dias 19, 20 e 21 de Abril do corrente ano de 2004)

* Organização do Instituto Piaget de Portugal

** Vice-presidente da Sociedade da Língua Portuguesa e co-coordenador editoral do Ciberdúvidas.

2004-04-23

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