quinta-feira, 8 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P858: Memórias de Mansabá (1): Periquito vai no mato: de Bissau a Mansabá, passando por Safim, Nhacra, Mansoa, Cutia e Mamboncó (Carlos Vinhal)




Guiné > Região do Oio > Mansabá > (i) Vista aérea do aquartelamento; (ii) CART 2732 (Mansabá, 1970/72)> 1970 > 3.º Pelotão , secção do Fur Mil Vinhal (primeira fila, à direita, ladeado pelo seu amigo Ornelas).

© Carlos Vinhal (2006)


Texto do Carlos Vinhal (ex-furrel miliciano, CART 2732, Mansabá, 1970/72):

21 de Abril de 1970: A ida para o mato da CART 2732

Após a chegada à Guiné (1), aqueles primeiros dias nos Adidos era uma experiência traumática. Quer quiséssemos quer não, era inevitável o contacto com os apanhados ou cacimbados, tanto faz, que por lá deambulavam. Quem não se lembra deles a contarem aquelas estórias que para nós, periquitos, parecia pura invenção, pois aquilo que narravam não podia ter acontecido e muito menos iria acontecer connosco. Era demais para a nossa compreensão. Tentávamos imaginar como seria o aquartelamento que nos esperava, mas não seria tão mau como eles pintavam. Aquilo com certeza era só para meter medo.

O certo é que o inevitável dia de irmos para o mato chegava sempre. Manhã cedo, chegaram as tropas de Mansoa acompanhadas de várias viaturas civis para nos levarem a nós e aos nossos pertences até Mansoa.


Guiné > 1965/66 > A famosa jangada que atravessava o Rio Mansoa em João Landim, ligando Bissau com a região do Cacheu

© Virgínio Briote (2005)

Dados os últimos conselhos e recomendações, era tempo de nos pormos a caminho. De Bissau até Safim era tudo muito bonito. Muitos civis mais ou menos despreocupados que vendiam ou compravam e, nós perguntávamos se aquilo já era o mato:
- Calma que a procissão ainda vai no adro!, diziam-nos.

Seguiu-se Nhacra e a sua característica ponte. A partir dali só grandes extensões de plantações de arroz, pastorícia e umas quantas tabancas isoladas ao longo da estrada. Alguns homens amassavam barro molhado e palha com os pés que, enformado e seco ao sol, dava uns resistentes blocos para construção das moranças. Lá ao longe as grandes árvores africanas. Coisa linda para quem só conhecia pinheiros e eucaliptos. A estrada, toda alcatroada, permitia uma velocidade aceitável e, ao longe por efeitos do calor e da refracção da luz, mais parecia um rio que se elevava e desaparecia conforme o relevo do terreno.

Decorridos cerca de sessenta quilómetros acercámo-nos de Mansoa. Passada a ponte entrámos na povoação que constituiu uma agradável surpresa. Será já isto o mato? Como era de esperar, muita tropa, mas pasme-se, muita gente branca. Mais tarde soubemos que eram libaneses que ali tinham os seus negócios de comércio. Tratava-se de uma localidade com alguma importância e que tinha tudo o que era essencial. Lá, ficámos só o tempo suficiente para sermos entregues à CCAÇ 2403 que nos havia de levar dali até ao nosso destino.

O aspecto desses militares não abonava nada a seu favor. As fardas cujo camuflado era um pouco confuso pois não se sabia se o amarelo tinha esverdeado ou se o verde tinha amarelado com o tempo. Quem usava divisas tinha-as em tão mau estado que descortinar os postos era complicado. Aqueles olhares algo vagos entre o deixa andar e seja o que Deus quiser, punha-nos de certo modo ainda mais nervosos do que já estávamos:
- Nós também iríamos ficar assim? Nós somos diferentes, pois então.

Agora sim iríamos entrar na zona de guerra a sério:
- Muita atenção que todos os cuidados a partir daqui serão poucos… Bala na câmara e olhos bem abertos.

Começámos a sentir, apesar do calor, um frio no estômago e um aperto no coração para não dizer noutro sítio onde nem um feijão entrava:
- Vamos dar-lhes a conhecer os locais perigosos e os seus nomes… Se houver alguma emboscada, atirem-se para o chão, rebolem para as bermas e deixem-nos actuar.
- Será que nos vão atrasar o almoço, caso haja alguém que ainda tenha apetite?

Seria quase meio-dia quando começámos a última etapa. Quase a meio do caminho, havia à face da estrada um destacamento de aspecto miserável numa pequena tabanca chamada Cutia, cuja guarnição militar era composta por alguns homens cujo único passatempo era ver passar as colunas de e para Mansabá. A sua principal missão era proteger aquela pequena comunidade. Lá nos saudaram e desejaram boa estadia e a melhor das sortes.

Uns quilómetros à frente deparou-se-nos um local lindíssimo pela sua vegetação, Mamboncó, que tinha tanto de bela como de perigosa:
- Aqui é preciso muito cuidado, pois este local é muito mal frequentado e logo acontecem maus encontros.

Um pouco mais à frente a Pedreira, local que anunciava o fim da jornada:
- Cuidado aqui também, nunca se sabe onde o inimigo nos espera.

Mais uns quilómetros e eis Mansabá. Uma larga avenida nos conduzia até à Porta de Armas, nome pomposo demais para uma abertura no arame farpado, onde estava um militar de sentinela. Ao longo a população saudava-nos amistosamente.
- Mas, aqui no meio desta gente não haverá simpatizantes dos turras? Pareces bruxo - Eu perguntava e os meus botões militares respondiam. Da parte de dentro os cartazes da praxe:
- Lisboa 5.000 Km;
- Bissau 100Km;,
- Bem-vindos, Periquitos!, , etc, etc.

A parada principal que ficava em frente à Porta de Armas era confinada pelo Bar e Casernas dos Furriéis, pelo Bar dos Oficiais e pela Oficina Auto. Era de terra desagregada mais parecendo areia e transmitia aos pés, mesmo através das botas de lona, um calor intenso. O cheiro que pairava no ar era o típico de África, para nós novidade. Aqui iríamos viver 22 longos meses, mas ainda não sabíamos.

Com isto tudo eram 13 horas e, quando nos dispúnhamos a atacar a ração de combate, veio o convite:
- Qual ração qual quê!- Tínhamos uma óptima refeição composta de sopa, batatas fritas, ovos estrelados, fiambre e salsichas. A acompanhar uma bazooka fresquinha e, no fim café mijoca e whisky do mais barato, claro. Tudo oferta da casa, mais propriamente da CCAÇ 2403. Pudera!... Não éramos nós os seus substitutos?

Depois do almoço e de algum repouso, fomos conhecer as nossas instalações. A mim tocou-me um quarto sem porta, numa caserna também sem porta, atolado de camas com as malas a ficarem no corredor… Que não havia problemas, podíamos deixar tudo à vontade que ninguém roubava nada…
- Mas... não estávamos já no mato? Os turras não podiam entrar ali durante a noite para nos roubar? E aqueles civis todos que por ali deambulavam não eram perigosos? Como se sabia se eles eram dos bons ou dos maus? Como era que nós periquitos os havíamos de distinguir?

Estas interrogações eram demasiadas para obter resposta dos velhinhos que olhavam para nós com o desdém próprio de quem já tem a cátedra na matéria.

Aceitámos um convite dos nossos anfitriões para darmos uma volta e conhecermos o aquartelamento e povoação. As primeiras impressões foram as melhores. Razoáveis instalações, água potável de um furo e poucos mosquitos. Quando os velhinhos fossem embora e nós ocupássemos as suas posições, ficaríamos bem instalados.

A povoação era grande e tinha comércio, uma filial da Casa Gouveia, Mesquita, Enfermaria Civil, Escola e Chefe de Posto, representante máximo da autoridade civil. As moranças desenvolviam-se essencialmente ao longo da Estrada de acesso ao quartel, de um lado e do outro e, na estrada para Norte que ia em direcção a Farim. Agrupavam-se conforme as suas etnias predominantes, Mandingas e Fulas. Havia arame farpado a envolver toda a povoação. Por sua vez o quartel tinha a sua própria cercadura de arame farpado.

A população vivia principalmente da cultura do arroz na zona húmida a sul e da cultura da mancarra na zona seca a norte. Eram, como na generalidade das populações do interior da Guiné, pobres e muito dependentes do que os militares lhes davam. Viviam da troca de víveres entre eles. Alimentavam-se praticamente só de arroz, algum peixe da bolanha e nenhuma carne. Os miúdos na hora da refeição recolhiam os restos dos militares em recipientes engendrados por eles, que podia ser por exemplo uma lata de tinta adaptada para o efeito. Algumas mulheres lavam a roupa da tropa o que lhes conferia o único meio de terem dinheiro vivo. Os homens eram principalmente guias, milícias ou componentes do Pel Caç Nat 57. Claro que alguns nada faziam, vivendo do trabalho das mulheres.

Cerca das 17 horas, já nós nos encontrávamos na Messe, ocorreu um ataque ao aquartelamento e povoação, com morteiro e armas ligeiras. Os velhinhos correram para as suas posições de defesa e mandaram-nos para um abrigo existente junto da Messe, onde estivemos até os ânimos serenarem. Quando tudo voltou ao normal verificou-se a existência de 16 feridos na população, assistidos prontamente nas Enfermarias civil e militar:
- Como estão a ver, vocês são já famosos e tiveram a recepção devida por parte dos nossos amigos.

O nosso baptismo de fogo não demorou muito e o que mais nos impressionou foi a cadência de fogo das célebres costureirinhas, quem não se lembra delas?!. Se não matassem, pelo menos desmoralizavam.

Depois de jantar e de muito dizer e ouvir, vencidos pelo cansaço, dormimos com um olho fechado e outro virado para a entrada do quarto, não fosse algum turra sorrateiramente entrar por ali e roubar as nossa malas. Preocupações de periquito.

Carlos Vinhal
_________

Notas de L.G.

( 1 ) Vd. post de 18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXI: Breve historial da CART 2732 (Mansabá, 1970/72) (Carlos Vinhal)

(...) "A CART2732 foi constituída em 23 de Fevereiro de 1970, tendo como Unidade Mobilizadora a BAG 2, sita no Pico de S. Martinho, no Funchal, Ilha da Madeira (...).

"A maior parte do seu pessoal era originário da Ilha da Madeira, com excepção dos Oficiais, Sargentos e Praças Especialistas.

"Em 7 de Abril de 1970 a CART2732 recebeu o seu Estandarte. No dia 13 de Abril realizou-se no Cais do Porto do Funchal a cerimónia de despedida da Companhia(...).

"A CART 2732, sob o comando interino do Alf Mil Art Manuel Casal, embarcou nesse mesmo dia, cerca das 12H00, no navio Ana Mafalda, que largou pouco depois com destino à Guiné (...). Desembarcou no cais de Bissau pelas 16H00 do dia 17 de Abril de 1970, ficando alojada em tendas de campanha no Depósito de Adidos.

"No dia 20 de Abril realizou-se a parada de apresentação da Companhia ao Comandante-Chefe do CTI da Guiné, General António de Spínola.

"Na manhã do dia seguinte, seguiu para Mansabá [entre Mansoa e Farim, na região do Oio], onde chegou cerca das 13H00 para render a CCAÇ 2403. Neste mesmo dia, Mansabá foi flagelada pelo IN com morteiro 82 e armas ligeiras, causando 16 feridos na população. Assim estava consumado o baptismo de fogo" (...).

2 comentários:

Hilario disse...

Caro Luis Graça
Permita-me passar a tratá-lo diga-me como entrar na Tabanca e lá estarei com todo o prazer.
Vou comunicar com outros elementos da CCaç 2403 para virem ter connosco.
Um forte abraço
Hilario Peixeiro

Carlos Vinhal disse...

Caro Cap (?) Hilário Peixeiro
Por favor contacte-nos para um destes endereços.
luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com
carlos.vinhal@gmail.com
magalhaesribeiro04@gmail.com

Teremos muito gosto em recebê-lo na nossa Caserna Virtual.

Um abraço de
Carlos Vinhal
Mansabá, 1970/72