domingo, 4 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P843: Memórias do Rio Cacheu (Manuel Lema Santos)

Texto do nosso tertuliano Manuel Lema Santos , ex-1º Tenente da Reserva Naval, 1965/72, Guiné 1966/68 - NRP Orion.

Caro Marques Lopes (1):

Nos posts que tenho efectuado tenho sido bastante parco em explicações, mas esse aspecto tem alguns motivos relevantes:

Ao longo dos anos de conflito na Guiné, quando se estabelece um comparativo global de condições de vida nas unidades - humanas, sociais, psicológicas, conforto e até de risco considero, em consciência, haver claro pendor favorável aos ramos da Marinha e da Força Aérea, embora possa haver casos pontuais de sinal contrário. Estou a lembrar-me de algumas LDM, LDP ou FZE.

No Exército teria muito a ver, também, com factores meramente fortuitos como a unidade para que cada militar era nomeado (diria quase saída em sorteio), a sua localização, enquadramento na área, importância estratégica, etc. Mais não me alongo por desconhecimento.

A consideração e conhecimento do que acima digo relativamente a alguns aquartelamentos de topo de gama como por exemplo Madina do Boé, Guileje, Aldeia Formosa (falando apenas no corredor Sul) e tantos outros a nomear, transporta-me a alguma prudente contenção no relato de proezas heróicas, sobretudo porque o respeito devido aos que lá ficaram, de ambos os lados, me condiciona prioritariamente.

Outro aspecto é muito pessoal e tem a ver com a memória de minha mãe que, quando o meu pai faleceu, tinha três dos quatro filhos em teatros de guerra e apenas o mais novo estava presente para lhe proporcionar algum conforto. Não creio que até hoje tenha sido evocado de maneira minimamente digna o contributo de cada mãe portuguesa, tantas vezes com tão pesada retribuição.

Pela minha parte, que fique claro que, à época e nesse contexto histórico, voltaria a efectuar o mesmo percurso ao serviço do país onde nasci, no cumprimento de um dever de cidadania.

Talvez sem tanta expressão, a minha irmã casada com um oficial da FA em Angola mas, pormenor adicional interessante e controverso, é que tanto eu como o meu irmão estávamos na Guiné, simultaneamente. Eu na Marinha, de 1966-1968 e o meu irmão, como alferes médico, no Exército, de 1967 a 1969, no Batalhão 1933, das célebres Companhias 1790, 1791 e 1792.

Deixo as conjecturas para quem as quiser fazer mas estávamos ambos presentes no convívio da cidade universitária, aquando da greve da fome de 17 estudantes em 1962 - fui ter com o meu irmão para ver como estava aquilo e aproveitar a boleia de carro com ele para casa...o que já não consegui, pelo que a seguir digo.

Pela calada do noite, os cerca de 1500 estudantes presentes (entre os quais um ex-presidente incluído!) foram brindados com guarda especial, seguida de visita guiada pela PIDE e PSP, às estâncias turísticas de Caxias e quartel da polícia de choque na Parede (já extinto). Durante um dia e apenas para identificação, justificou-se na época. A esta distância no tempo, ocorre-me que o episódio até teve algo de ridiculamente cómico/trágico.

Não quero deixar de te agradecer os pormenores a que vou acrescentar alguns que podem ser-te interessantes:

- Em 28 de Julho de 1968 estava presente no Cacheu a LFG Orion que permaneceu lá de 25 a 30 desse mês mas eu já tinha zarpado. Concluí a minha comissão, com regresso a 12 de Maio;

- Não era normal efectuarmos qualquer disparo, mesmo de reconhecimento, abaixo da Ponta de S. Vicente. Para montante e quando referes o Ingoré estamos, para nós, a falar das zonas de Maca, Canja e Barro onde já efectuávamos a navegação atentos, vigilantes, em estado de prontidão bordadas (uma peça guarnecida);

- Claro que tínhamos em atenção o facto de haver aquartelamentos próximos e apenas efectuaríamos fogo se fôssemos atacados. Para nós, isso era rígido nessa zona. Ainda mais para montante de Barro passávamos a postos de combate, normalmente até Farim e nas zonas críticas especialmente referenciadas, como Porto Coco, Jagali e Tancroal fazíamos, embora nem sempre, fogo de reconhecimento e protecção;

- Em Tancroal, no Cacheu, em 14 Janeiro de 1968 as LFG tiveram o mais violento ataque. No caso a LFG Lira - sorte minha porque substituiu a LFG Orion que acabou por não sair de Bissau por avaria do motor de estibordo à descolagem - efectuava a escolta à LDG Alfange que transportava para Bissau o Batalhão estacionado em Farim (penso que aí conseguem referenciá-lo com facilidade pela data). Foi atingida na ponte e no rufo da casa das máquinas com granadas de RPG 3 (2) com 2 mortos e 7 feridos, entre os quais o imediato, meu camarada, que ficou surdo de um ouvido. Com um destacamento de fuzileiros a bordo...

- Provavelmente ter-te-ás cruzado, vagamente ou não, com o meu irmão pois entre Junho de 1968 e Maio de 1969 esteve, como médico, na companhia estacionada no Ingoré. Mais ainda julgo que terá uma vez ido a Barro ao correio ... Tenho bastantes fotos cedidas por ele que publicarei caso ele não veja inconveniente e que vão desde o Ramadão até fotos da Messe, Parada, arredores do Ingoré, etc.;

- Tenho bastantes documentos e fotos que terei prazer em ir expondo mas gosto de efectuar a articulação lógica com factos directamente relacionados que permitam correctas interpretações das situações que relato e são mesmo muitas.

Quando começo a puxar os fios do novelo alastro até me puxarem as orelhas! Puxem e com força.

Um abraço de amizade,
Manuel Lema Santos

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Nota de L.G.

(1) Vd. post anterior, nº 841.

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