domingo, 26 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P571: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - III (e última) Parte

III (e última) parte do texto do Leopoldo Amado, historiador guineense e membro da nossa tertúlia (publicado igualmente no blogue Lamparam II, em post de 21 de Fevereiro de 2006):

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Destaque para o último parágrafo deste importante e oportuno texto, cujo leitura e análise se recomendam aos membros da nossa tertúlia:

" (...) Para lá da obrigação que temos de preservar e partilhar os legados da nossa História comum, é natural e compreensível que subsistam – porventura, subsistirão sempre –, perspectivas interpretativas dissonantes, estas últimas, talvez decorrentes dos novos paradigmas que actualmente consubstanciam o devir das ex-colónias (hoje, países independentes que procuram legitimamente um lugar no contexto africano e no concerto das Nações) e de antiga potência administrante (hoje, um país que se pretende moderno, com uma democracia consolidada e que, legitimamente, aspira a um lugar igualmente digno no contexto europeu e no mundo)".
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Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - III (e última) Parte (*)

Reportando-nos agora ao Pindjiguiti enquanto tal, acontecimento ocorrido na sequência da greve dos trabalhadores do cais de Bissau (Pindjiguiti), a 3 de Agosto de 1959, não nos parece nem relevante, nem curial e nem sensato, atiçar uma estéril polémica acerca do número de trabalhadores mortos ou feridos.

Infelizmente, certamente porque nunca atribuí importância acrescida a questão do número de mortes, não fotocopiei e nem guardei as referências (cotas) de um ou dois relatórios circunstâncias feito então pela PSP que cheguei de manusear e ler nos Arquivos da PIDE/DGS, na Torre do Tombo. No entanto, da leitura desse relatório, fiquei com uma vaga ideia de que os números de mortos aí descritos roçam a casa dos vinte e poucos, não atingindo assim os 50 que tradicionalmente a historiografia oficial do PAIGC assinala. Porém, não se podendo negar a ninguém o interesse em apurar exactamente o número de mortos e feridos de Pindjiguiti, em que ficamos então? No quantitativo que nos é sugerido pela historiografia oficial do PAIGC, do brilhante depoimento de Mário Dias ou da suposição numérica que eu próprio introduzi?

Nos trilhos da procura da verdade, abstendo-nos sempre de emitir qualquer juízo de valor, convenhamo-nos de que persistem ainda questões pertinentes e legítimas a colocar, as quais, entre inúmeras outras plausíveis, podíamos assim tentar alinhavar:

(i) Mário Dias apenas refere-se ao quantitativo dos mortos contados localmente, não se referindo ou ignorando os que eventualmente vieram a morrer na sequência dos ferimentos registados?

(ii) Mário Dias refere-se aos mortos contabilizados na sua presença ou ao quantitativo aferido pela versão que lhe teria chegado ao conhecimento?

(iii) O quantitativo de mortos que alude a historiografia do PAIGC será um caso típico de propaganda?

(iv) Mesmo supondo que o relatório a que me refiro (a existente nos Arquivos da PIDE/DGS) situa, de facto, a ordem de grandezas na casa do vinte e poucos mortos, será que o(s) quantitativo(s) ali estampado(s) correspondem na realidade à verdade dos factos?

Como quer que seja, para lá da veracidade ou não desses números e sem iludirmos com a possibilidade imediatista de virmos a depararmo-mos de forma mágica com toda a verdade, importa sobretudo tomar as declarações dos contendores com cautelas redobradas, seja pela via da confrontação de entrevistas e depoimentos realizados ou a realizar (inclusive com o máximo de sobreviventes ainda vivos e testemunhos presenciais possíveis), seja pela via da prova de autenticidade heurística aplicada ao fenómeno, através de uma aturada investigação que privilegie a confrontação cruzada do teor da documentação disponível com o das entrevistas ou de testemunhos presenciais.

Acresce ainda, já o referimos, a necessidade de adoptarmos uma postura de humildade perante as naturais dúvidas metódicas que imensos aspectos e episódio relativos à guerra colonial versus guerra colonial suscitam, em virtude de ser um acontecimento recente que se reporta-se ao campo da chamada História imediata, que, por isso mesmo, ainda não criou, naturalmente, a necessária estandardização historiográfica susceptível de o conferir um maior grau de sistematização e visibilidade, aliás, razão porque nos seus meandros abundam “zonas cinzentas” cujo grau de verosimilhança ou de distorção, têm ou podem ter diversas e prováveis explicações que vão desde a necessidade de incrementar a investigação que melhore o estado actual dos conhecimentos sobre a matéria, simples desconhecimento metódico, motivações de natureza política, segredo e/ou interesse de Estado, razões de índole “propagandística” ou de deliberada falsificação, tout court.

Os poucos exemplos que a seguir daremos, muitos deles conhecidos do grande público, são ilustrativos do quanto se disse. Nos finais de 1970 em que aludia a 2600 baixas nas forças do PAIGC durante os anos de 1969 e 1970, assim repartidas:

1969 (1038)

Mortos......................614
Feridos.....................259
Capturados..............165
Total.......................1038

1970

Mortos......................895
Feridos.....................449
Capturados................86
Desertores...............132
Total.......................1562


Vê-se claramente que estas estatísticas obedeciam a outros desígnios de propaganda ou da guerra, pois de forma nenhuma podem corresponder a verdade dos factos, na medida em que um exér­cito de guerrilha em que o contingente máximo seria de 5 000, tinha perdido, em dois anos de guerra, 2600 combatentes, sem que a luta tivesse diminuído de intensidade, antes pelo contrário. Isto não pre­cisa de comentários.

To­mando em conta os relatórios se­cretos do Estado-Maior português, as forças do PAIGC sofreram entre 1963 e 1966 as seguintes perdas, «entre outras perdas»:

1963
Mortos......................1 497
Feridos........................240
Capturados.................287
Total........................2 006

1964
Mortos.................1 589
Feridos...................448
Capturados.........1 492
Total.....................3592

1965
Mortos.................1 153
Feridos...................397
Capturados.........1 761
Total.....................3311

1966
Mortos................1 125
Feridos..................256
Capturados...........700
Total....................2081

Como não possuímos dados re­ferentes a 1967 e 1968, iremos con­siderar, para estes anos, a média dos anos anteriores. Assim, teríamos, para cada um deles:

Mortos ................1 336
Feridos ..................335
Capturados ........1 010
Total.....................2681

O que totalizaria, compreen­dendo as pretensas perdas em 1969 e 1970, um total de 18. 889 perdas entre os efectivos do PAIGC no decurso dos 8 anos de luta armada. Se considerarmos as ditas «outras perdas», podemos arredondar este número para 20.000.

Mesmo o observador mais distraí­do ou o menos favorável à causa da libertação por que o PAIGC dizia bater-se, con­cluirá que estes números são a melhor propaganda. Na realidade, numa guerra como que decorreu na Guiné entre 1963 e 1974, e nas con­dições concretas da Guiné, um movimento de libertação que tenha sofrido 20.000 perdas e que conti­nuava com sucesso o combate contra forças numérica e materialmente bem superiores, realizaria um feito singular, senão um milagre.

Na altura da publicação desses números de nada serviu uma entrevista do Governador Militar de Bissau à Televisão portuguesa, na qual afirmou: “No caso particular da Guiné, dos seus 550 mil habitantes, um número que não atinge os 80 000 abandonou o ter­ritório nacional ou encontra-se re­fugiado no mato».

Ora, sabe-se que, segundo os números apre­sentados pela ONU na altura, cerca de 60 mil habitantes da Guiné estavam refugiados, só no Senegal. E como 80.000 menos 60000 é igual a 20.000, devemos concluir que, segundo os números oficiais dos balanços portugueses, secretos ou tornados públicos, eles teriam já matado, ferido ou capturado todas as pessoas que, na Guiné, esta­riam refugiadas na floresta.

Um outro exemplo que ilustra o quanto se disse, prende-se com a espectaculosidade com que os serviços de informação e propaganda do PAIGC (sem dúvida, de longe o melhor e com maior audiência africana e internacional de todos movimentos de libertação das ex-colónias portuguesas) reivindicou em Julho de 1970 o derrube de um helicóptero que transportava uma importante delegação parlamentar portuguesa na Guiné, quando, na verdade, o aparelho não teria resistido a um forte tornado que acabou por vitimar todos os seus ocupantes.

Aliás, bastaria uma varredura comparativa dos Comunicados de Guerra do PAIGC ou os relatórios escuta das emissões radiofundidas do PAIGC (existentes no Arquivo da PIDE/DGS) com os informes militares do Exército Português na Guiné (Intrep’s, Sitrep, Supintrep’s, etc.,) para darmos conta que a propaganda entre os contendores desencadeava frequentemente uma verdadeira atmosfera guerra de comunicados e que tanto de um lado como doutro, porque compreendiam justamente que a propaganda era uma importantíssima dimensão da guerra, faziam tudo para que os mesmos obedecessem a estratégias militares, mas igualmente a desígnios político-diplomáticos, para além da acção psicossocial.

De resto, esses comunicados tinham também um denominador comum: não raras vezes, eram elaborados com base numa torrente de factos cuja verosimilhança mantinha uma relação de base com o real acontecido, mas apenas como ponto de partida para a partir daí ampliar-se ou amputar-se de forma mitigada os desenvolvimentos ipso factu provenientes do teatro das operações, obviamente, com artifícios e/ou subterfúgios que reforçam a propensão de confundir desde o mais neutral, céptico ou atento observador.

Com efeito, à montante do ciclo fechado da guerra colonial versus guerra de libertação, não é mais possível obliterar-se o direito que assiste a todos de qualificar este ou aquele episódio como um embuste político ou militar ou uma monstruosa mentira, apesar de termos de reconhecer que, do ponto de vista estritamente da investigação histórica, ganhar-se-ia qualitativamente muito mais em procurar indagar as fontes disponíveis e tentar compreender e se possível interpretar as pretensas ou as aludidas distorções, oficiais ou oficiosas que sejam, ao invés de sobre elas se tecer juízos de valor que só aparentemente se nos apresentam como axiomas, quando frequentemente ressentem-se de uma assaz descontextualização factual, nas sua imbricadas conexões e bifurcações.

À distância dos anos da guerra, confidenciou-me um ex-elemento dos Serviços de Informação e Propaganda do PAIGC das circunstâncias em que foi mais ou menos redigido o Comunicado de Guerra que reivindicou para o PAIGC o derrube do helicóptero que então vitimou os deputados portugueses que nele viajavam. Com efeito, disse-me ele que quando abordou Amílcar Cabral, indagando-o se apenas devia no Comunicado noticiar a morte na Guiné de uma importante delegação parlamentar portuguesa, este respondeu-o: “Olha, a verdade é que, de facto, nada tivemos que ver com o sucedido, mas estamos em guerra. E em guerra, acontecimentos desses não caem do céu sem que dele tiremos os dividendos possíveis”.

Assim, pois, o PAIGC elaborou o Comunicado a que se deu a maior difusão internacional. Quanto a real dimensão do sucedido, não obstante os desmentidos vários das autoridades militares portuguesas, os mesmo não colheram provimento nos areópagos internacionais da altura, tanto mais que o PAIGC já tinha granjeado enorme prestígio em matéria de organização político-militar e contava já, no seu palmarés, inclusivamente, com o derrube confirmado de algumas importantes aeronaves da FAP (Força Aérea Portuguesa).

Mas voltemos ao Pindjiguiti, afinal, objecto principal do comentário que nos propusemos escrever, e que já vai longe, à propósito do texto de Mário Dias. Em primeiro lugar, ocorre-nos rebater a ideia redutora de que Pindjiguiti teria apenas sido uma mera reivindicação laboral cujos contornos escapou ao controle das autoridades que, em consequência, viram-se na obrigação e na contingência de usar da força. Se por um lado demostramos já que à jusante do processo libertário guineense Pindjiguiti circunscreve-se como um elo importante na cadeia de acontecimentos directa ou indirectamente a ele relacionados, pelo que não é e nem pode ser tomado como um acontecimento isolado, pontual ou circunstancial, por outro, ocorre questionar, como normalmente se faz em situações de tumultos, se na decorrência de Pindjiguiti teria havido, de facto, real necessidade de uso da força das armas por parte das autoridades coloniais? Por outras palavras, será que a resposta das autoridades coloniais teria sido proporcional à gravidade e a suposta violência gerada pelos grevistas?

Porém, se relativamente ao enquadramento histórico de Pindjiguiti nos posicionamos inequivocamente do lado da tese que aponta para a necessidade de sua contextualização histórica, já em relação as circunstâncias guindaram esta mera ou complexa contenda laboral que, estranhamente, apenas se saldou em mortos num dos lados da contenda, em lugar de aqui e acolá conjecturar com base em juízos de valor, preferimos por agora manter uma postura de dúvida metódica e aguardar serenamente que se faça mais luz sobre o estado actual dos conhecimentos sobre a problemática, se assim o podemos chamar, na media em que, muito para além das prováveis ou reais lacunas existentes na historiografia de um e outro lado, é iniludível do nosso lado a convicção segundo a qual Pindjiguiti representou e representa (com paralelismo português talvez similar ao alcance simbólico que engendrou o sequestro do “Santa Maria” por Henrique Galvão), com a toda a sua carga simbólica, um importante factor de consciencialização e um ponto de viragem decisivo no processo libertário da Guiné-Bissau.

Esta interpretação e esta percepção, independentemente da forma como foi depois objecto de tratamento por parte da historiografia oficial do PAIGC, teve-a avant la lettre Amílcar Cabral, com a clarividência e a capacidade peculiares de antever as situações que sempre o caracterizaram.

Quando a XVª Assembleia Geral das Nações Unidas, na sua reunião plenária de 14 de Dezembro de 1960, aprovou a resolução 1514, mediante a qual estabelecia os princípios para a concessão da independência aos territórios sob domínio colonial e proclamava solenemente “a necessidade de eliminar, rápida e incondicionalmente, o colonia­lismo em todas as suas formas e manifestações”, Amílcar Cabral e os nacionalistas das ex-colónias reunidos à sua volta (primeiro na CEI (Casa dos Estudantes do Império) e depois no Centro de Estudos Africanos e no MAC, convieram em 192 da necessidade de uma acção espectacular com vista a chamar à atenção da comunidade internacional sobre a situação das colónias portuguesas, particularmente os de África.

Nesse sentido, Amílcar Cabral e Mário de Andrade deslocaram-se várias vezes a Londres entre 1959 e 1960, pelo que datam dessa época as primeiras denúncias internacionais do colonialismo português, os quais foram sobretudo feitas pelo escritor e africanista britânico Basil Davidson, secundados também com conferências de imprensa que aqui e acolá Abel Djassi (pseudónimo de Amílcar Cabral) e Mário de Andrade foram dando em Londres e que acabaram por servir de antecâmara a grande conferência de imprensa que os nacionalistas das colónias portuguesas realizaram depois em Dezembro de 1960.

Assim, escolhida a cidade de Londres, por razões óbvias, obtido o apoio de certos círculos hostis ao colonialismo português e redigido em língua inglesa uma brochura que Amílcar Cabral intitulou Facts About Portugal's African Colonies, o caso que agora nos interessa, realizou-se uma concorrida conferência de imprensa apresentada por parte de cada um dos representantes das colónias portuguesas, versando todos eles sobre a situação das mesmas, dando ênfase ao massacres,(pelo PAI: Amílcar Cabral e Aristides Pereira, pelo MPLA: Mário de Andrade, Viriato da Cruz e Américo Boa Vida e pela Goa League: João Cabral) (29).

É nessa brochura da autoria Amílcar Cabral faz no plano internacional a primeira denúncia de Pindjiguiti, de resto, texto esse que apresentou como o primeiro relatório perante o Conselho especial da ONU em Junho de 1962 e a 12 de Dezembro de 1962, desta feita, quando prestou declarações perante a 4ª Comissão da ONU.

Tratava-se, claro está, de conquistar a adesão, desavisada ou não, dos círculos londrinos e da comunidade internacional, pelo que não se difícil aferir-se ou excluir a hipótese de que a descrição desses massacres teriam sido ou não alvos de excessivo empolamento, tanto mais que no intróito do Facts About Portugal's African Colonies Amílcar Cabral foi incisivo ao espelhar os objectivos subjacentes: “ (...) é preciso conhecer e dar a conhecer os objectivos do inimigo para melhor o combater – tarefa que urge realizar não só junto dos militantes directamente engajados, como junto da opinião africana e internacional, ainda mal informada e muitas vezes iludida pela ideologia colonial portuguesa (...)”.

Porém, é importante referir-se que as denúncias internacionais de Pindjiguiti e que – catalisaram em medida considerável a sua interiorização e longevidade no imaginário colectivo guineense – foram posteriores ao “Memorandum” e “Nota ao Governo Português” endereçados por Amílcar Cabral ao Governo português, o que demonstra que desde cedo o PAI optou sempre por enquadrar e mesmo legitimar o seu substracto ideológico, pelo menos em termos de enunciado, identificando-a com os princípios da legalidade internacional, mormente com o postulado das Nações Unidas e dos Direitos Humanos.

No fundo, o objectivo que Amílcar Cabral perseguia perante o silêncio das autoridades coloniais portuguesas era a obtenção da legalidade e atmosfera internacionais propícias ao desencadeamento da guerra, segundo o postulado que ele próprio definiu como “supremo recurso”, e que acabou de certa maneira por se incorporar no Direito Internacional, ou seja, o direito de recurso a todos os meios possíveis, inclusivamente os violentos, para erradicar o colonialismo. Aliás, não foi por acaso que no dia 25 de Junho de 1962, foi atacado a vila de Catió (destruição da jangada de Bedanda e cortes de fios telefónicos e estradas com abatises), marcando-se do lado do PAIGC à passagem a acção armada, pois a luta armada em só começaria no ano seguinte como ataque ao quartel de Tite, a 23 de Janeiro de 1963.

Daí que, para além das denúncias de caracter económico, político ou humanitário, Amílcar Cabral tivesse também apelado no Facts About Portugal's African Colonies “(...)para todas as forças democráticas e progressistas do mundo, para os povos e para os Governos anti-colonialistas, para as organizações sindicais, da juventude, das mulheres e dos estudantes, para as organizações jurídicas internacionais e, em particular, para os Governos dos países africanos e asiáticos, para que um auxílio concreto e imediato seja concedido ao nosso povo em todos os planos, com vista à libertação dos patriotas presos e ao desenvolvimento da nossa luta de libertação nacional. (...)”. Em particular, renovava “ (...) o seu veemente apelo às Nações Unidas para que, em defesa do seu próprio prestígio aos olhos do mundo, se decidam a tomar, sem demora, medidas eficazes para acabar com os crimes dos colonialistas portugueses no nosso país e obrigar o Governo de Salazar a respeitar o direito do nosso povo à autodeterminação e à independência nacional. (...)”.

Ora, para lá do provável ou mesmo real empolamento de Pindjiguiti ou da justeza ou não das formas e conceitos, sempre discutíveis, sobre a forma como Pindjiguiti foi etiquetado (contenda laboral, massacre ou carnificina) ou ainda do quantitativo de mortes que se saldou na decorrência do acontecimento enquanto tal, temos para nós que o que se afigura importante é o reconhecimento da importância e o alcance históricos que o mesmo teve, à jusante e à montante da guerra colonial/guerra de libertação, no contexto do processo libertário do povo guineense.

Aliás, não foi por acaso que depois de Pindjiguiti o PAIGC logrou atingir uma assinalável mobilização que permitiu o desencadeamento da luta armada de libertação. Também, não foi por acaso que no decorrer da guerra colonial/ guerra de libertação, invariavelmente, o PAIGC normalmente assinalava a efeméride com ataques simultâneos a várias localidades, inclusivamente os centros urbanos, sobretudo a partir de 1968.

Não foi igualmente por acaso que em 1962, os vários partidos e movimentos de libertação que pululavam em Dakar e Conakry (mais contra o PAIGC do que contra o colonialismo português) decidiram criar a 3 de Agosto desse mesmo uma frente de luta, a FLING. Por fim, não também por acaso que Spínola, por ironia do destino, mas com objectivos claramente à vista, procedeu, no âmbito da sua política da “Guiné Melhor”, a 3 de Agosto de 1969, a uma espectacular libertação de cerca de uma centena de prisioneiros políticos, dos quais Rafael Barbosa, Ex-Presidente do PAIGC, bem como todos os que se encontravam na colónia penal de Tarrafal em Cabo Verde, e no Forte de Roçadas, em Angola, em pleno deserto de Moçamedes.

Para fechar este texto – que inicialmente apenas tinha o propósito de tecer um comentário em torno do texto de Mário Dias ­ –, mas que acabou por se alongar demasiadamente, pois comporta(va) a preocupação de subsidiariamente ir dando vazão ao repto lançado por Luís Graça no sentido de trazer à colação elementos disponíveis dos Arquivos. Como dizia, para fechar este texto, direi apenas que, mesmo não subscrevendo algumas ideias expressas por Mário Dias, as quais não obstante procurei rebater com a devida lisura e respectiva contra-argumentação de que me fui valendo, tanto na minha tese de doutoramento como em outras investigações, afirmo e reitero a importância de que se reveste o texto de Mário Dias, de resto, uma contribuição extraordinária para o actual estado do conhecimento sobre a matéria, na justa medida em que, muito para além da importância narrativa e historiográfica que encerra, voluntária ou involuntariamente, quebra o tabú de abordagem sobre um passado recente (a guerra colonial/guerra de libertação) com o qual, talvez por razões compreensíveis e atinentes a uma lenta e demorada catarse ainda não reconciliou com o mesmo os actores passivos dessa mesma guerra, mas também por se afigurar como mais um testemunho presencial, privilegiado, é certo, a juntar-se a muito poucos existentes (30).

Pese embora as normais diferenças de leitura do événementiel, fundado este último em distintas interpretações que se nos opõe relativamente a interpretação do mesmo sujeito histórico (o que é salutar), e ainda as naturais reservas que me suscitaram o importante testemunho presencial de Mário Dias (tanto mais que parte do mesmo reporta-se a uma situação de retransmissão do que lhe foi transmitido (a chamada e imprescindível Oral History tem dessas armadilhas) e porque também, estranhamente, não se referiu a presença no cais de Pindjiguiti, de soldados africanos Domingos Ramos (seu conhecido) e outros como o Constantino Teixeira, vulgo Tchutchú Axon – futuros comandantes da guerrilha do PAIGC (31), do meu lado não restam dúvidas relativamente a preocupações ou motivações que a ambos move – e nisso estamos conversados! –: alertar para a necessidade de uma cada vez maior necessidade de desmistificação e clarificação das naturais “zonas cinzentas” (as “meias-verdades ou mesmo “inverdades”, certamente existentes) que ainda conspurcam a novíssima abordagem histórica da guerra colonial/guerra de libertação, em ordem à reposição, tanto quanto possível, da(s) verdade(s) histórica(s) a que legitimamente todos aspiram e, a não menos importante constatação, no sentido em que ninguém é detentor de toda a verdade histórica sobre a guerra colonial/guerra de libertação e qualquer que ela(s) seja(m), não pode(m), pelo menos por agora, não pode pretender ser única e nem axiomática, tanto mais que, para lá da obrigação que temos de preservar e partilhar os legados da nossa História comum, é natural e compreensível que subsistam – porventura, subsistirão sempre, perspectivas interpretativas dissonantes, estas últimas, talvez decorrentes dos novos paradigmas que actualmente consubstanciam o devir das ex-colónias (hoje, países independentes que procuram legitimamente um lugar no contexto africano e no concerto das Nações) e de antiga potência administrante (hoje, um país que se pretende moderno, com uma democracia consolidada e que, legitimamente, aspira a um lugar igualmente digno no contexto europeu e no mundo).

Leopoldo Amado
Fevereiro de 2005
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Notas do autor:


(29) Marcelino dos Santos estava no grupo mas não participou

(30) Ocorrem-me presentemente apenas os testemunhos presenciais de Upadai Gomes, ex-marinheiro sobrevivente de Pindjiguiti, entretanto já falecido, e de Carlos Correia, ex-Primeiro-Ministro da Guiné-Bissau, que presenciou os acontecimentos a partir das imediações e cercanias do cais de Pindjiguiti) os quais, salvo o erro, foram publicados, há pelo menos dez ou mais anos, no Jornal “Nô Pintcha”, em jeito de evocação histórica da efeméride (3 de Agosto é feriado nacional na Guiné-Bissau

(31) Entrevista de Rafael Barbosa a Leopoldo Amado.

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(*) Vd posts anteriores:

25 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXXVII: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - II Parte

22 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXV: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - I Parte

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