sábado, 18 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P538: Estórias avulsas: Teresa: amores e desamores (Virgínio Briote)


Luís,
Envio-te em anexo uma pequena história que faz parte das minhas memórias.
Se vires que ela se enquadra no tema, publica-a.
Um abraço,
vb


VB:
Esta é já (ou pode vir a ser) uma das mais belas novelas sobre o amor em tempo de guerra (colonial)... Vem confirmar o teu já suspeitado talento de escritor... Que garra, que (con)tensão, que ritmo!... É um privilégio, para mim e para os demais tertulianos, podermos ler esta tua mininovela em primeira mão !
LG


1. TERESA. TERESA SÓ!

Sempre em festa, a casa da Dora era uma animação quase todas as noites. Gente conhecida, quase todos da grande família cabo-verdiana da Guiné, amigas e amigos que chegavam, de Santo Antão, de Santiago, S. Vicente. Novidades, a loja que abriu, a Dona que morreu finalmente com 94, coisas assim. Duas estudantes repartiam-lhe as despesas, pagavam-lhe os quartos, mais alguns pesos para a manutenção da casa, os outros trocados, nunca o soube como os arranjavam, nem nunca quis saber.

A Dora era só um conhecimento, mais nada. Um dia, atacada com paludismo, viu o Gil entrar pela casa dentro, com médico, medicamentos e comida. A partir daí, o conhecido que aparecia às vezes, sempre sem avisar, passou a ser um amigo chegado, daqueles que estão sempre à beira, sem outro interesse que se visse. Amizade, só isso. Como se fossem irmãos muito chegados, a Dora confiava-lhe segredos, mesmo alguns que se calhar não devia, mandava-lhe recados para Brá, convidava-o para pequenos convívios com os amigos, quase todos cabo-verdianos de Bissau. Para aquela festa, tinha-lhe dito que o iria apresentar a uma pessoa de quem ele iria gostar.

Conheceram-se em Bissau numa pequena festa em casa da Dora. Viu-a logo, mal entrou. Uma cabo-verdiana linda, a pele morena clara, desenhada sobre o magro, à volta dos 20.

Trocaram as palavras do costume quando a Dora, olhar cúmplice para eles, os mostrou um ao outro.

Teresa. Teresa quê, que não ouvi? Teresa só. Olhos grandes, claros, esverdeados. Que bem que ficavam com aquela pele! Voz doce, ar curioso. Algo esquiva e desinteressada, virou-lhe logo as costas e cada um foi para seu lado. Ouviram músicas, mexeram os braços e as pernas, conversaram com este e aquele até se fazerem horas.

Quando descia as escadas, ela chamou-o, ar atrevido, pareceu-lhe até demais. Mas já vai, tão cedo, nem se despediu, os outros não nos deram oportunidade de falar um pouco mais, uma pena, não foi? Voltamo-nos a encontrar? Um dia, disse-lhe ela, vemo-nos por aí, não? Afinal, Bissau não é assim tão grande… Se é meu desejo? Saiu a desconversar, meio desconsolado.

Dias depois, sentado no Bento, viu-a passar. Os olhares dos outros chamaram-lhe a atenção. Todos se viraram, não era fácil passar despercebida. Parecia-lhe mais alta. Os olhos com um verde mais magnífico ainda, levemente sombreados, cabelo liso preto, a cobrir as orelhas, elegante com um vestido sem mangas, azul-escuro pintalgado de bolinhas branca, a balançar acima dos joelhos, sandália preta de meio tacão. Como se tivessem combinado, dirigiram-se um para o outro, cumprimentaram-se com alguma cerimónia.

Sentados, os olhares dos outros em cima, vamos andar, por aí fora? Meteram-se no carro, uma volta pelas ruas, por aí não, é a minha casa. Saíram da cidade, para os lados da Sacor, estacionaram de frente para o Sol, a desaparecer no Geba.

O rádio a passar Capri , c’est fini (1), ela a cantarolar baixo, até começar a falar. Quem és tu? Sou este que está aqui! Mas quem és tu, porque estás aqui? Como? Porque estás aqui comigo? Sabes lá, que resposta! Vamo-nos embora, então! A conversa assim, até encontrar o fio.

Esta guerra, os desencontros, as pessoas para um lado e para outro, muita gente deslocada das suas casas, todos a virem para Bissau, muita tropa também, demasiada até, onde é que isto vai parar. Assim, de um momento para o outro.

Depois mais suave, as origens, as famílias, os amigos, os interesses. Estava a concluir o 7º no liceu de Bissau, os pais eram de Cabo Verde, queria tirar Medicina em Lisboa, estava com As vinhas da Ira nas mãos, tinha acabado um livro de Hervé Bazin. Só ódio, queres que to empreste? Porquê, se é só ódio? Pode ser interessante para ti, como sabes que não gostas sem o ler? Vou trazê-lo. Ficou assim marcado o próximo encontro.

O que estava ali a fazer, perguntou-se. Como se tivesse adivinhado ela adiantou que gostava de olhar para ele. Que gostava de estar, de o conhecer. Mas quem és tu, fala!
A noite a cair como cai em África, noite num momento. Temos que ir, não é? Deixou-a à porta da Sé, junto à rua dela. O grupo dele saía na madrugada seguinte, para o norte.

No regresso procurou-a. Os olhos, grandes na mesma, pareciam de cor diferente, o rosto mais fechado, o que se passa, algum problema?

Uma semana, esperara este tempo todo, começou ela, parecia que tinha fogo. Porque não disseste nada, Gil Duarte? Saíste para o mato, não? Para onde foste? Para Norte, para o Oio, não? O que fizeram? A fama que vocês têm, Duarte!

Olha-me de frente, Duarte, assim não, olha-me nos olhos, assim! O que sou para ti, ora diz? Porque me foges com os olhos? Séria, os olhos a entrarem por ele dentro, porque andas atrás de mim? Duarte, não falas? Responde, porque não falas? Gosto que me contes tudo! Gil! Encostada a ele, tão baixo que mal a ouviu, vamos sentar-nos antes no jardim? Estamos mais á vontade, a mamã não está, se ela aparecer apresento-ta, qual é o mal?

Que gostava, mas agora não. E logo? Os papás ficam no varandim a apanhar o fresco, até ás 11, depois vão-se deitar. Gil, que é que te deu, não falas? Tens namorada na metrópole, todos vocês têm, sei muito bem, como é ela? A boniteza não é só na cara, sabias? Não gostas de mim? Então que estás aqui a fazer?

Duarte, que estás aqui a fazer na Guiné, que estão vocês todos aqui a fazer, a desinquietar-nos? O que vocês fizeram na Associação Comercial (*), orgulhas-te disso? Que vergonha, entrarem sem serem convidados, estragarem a nossa festa! A causar-nos sofrimento, a matar pessoas, a ocupar a nossa terra, a impedir o nosso povo de ser livre, é isso?

Estás a olhar assim para mim porquê? Achas que não temos cabeça para pensar, que só somos corpo para vocês gozarem? Porque nunca te vejo fardado, porque será, tens vergonha de vestir a farda? Aliás odeio fardas, nunca me esperes fardado à porta do liceu, ouviste?

Vens logo à noite? Quando os papás se vão deitar fico sempre um bocado à janela. Saiu dali atordoado, sem saber o que fazer. Uma mulher diferente!


2. NOS ANOS DA DORA

Do portão viu a Dora ao cimo das escadas. Ambiente animado, pessoal a dançar cá fora, para aí uma dúzia de pares, gente cabo-verdiana, colados uns aos outros, aquele jeito deles, os corpos no ritmo das mornas e coladeras.

Então, bem aparecido, zangado comigo? Porquê, Dora, a consciência pesa-te?
Não lembro de nada, mas sempre pode ter acontecido alguma coisa de que me não tenha dado conta, não é?

Que não deve ter ocorrido nada, que se recorde, os olhos dele pelo baile, a Teresa a dançar, a um metro bem medido do parceiro cabo-verdiano, a saia do vestido bem acima dos joelhos, o decote a mostrar. Mal os olhos se cruzaram, ela encostou-se ao parceiro, a cara para o outro lado.

Que não, não havia problema nenhum, estivera fora, andava ocupado, aos fins dos dias não tinha vontade de sair, só isso, mais nada.

Só isso, de certeza? Anda comigo, a Dora a levá-lo para o meio dos dançarinos, mexe o corpo assim, juntinho.

Passa-se alguma coisa contigo, Gil, alguma coisa que eu não saiba? O que é que tu não sabes, Dora? Porque andas tão afastado agora, tão cheio de cerimónias, anda aí qualquer coisa e tu não queres contar. Não sabes do que estou a falar, ora, estás a desconversar, especialidade tua.

Dora, estão a chamar-te, dali, olhos na Teresa, colada ao par.

Despediram-se da Dora, isso agora vai, olhar maroto para as mãos deles. Tinham dançado uma e outra vez até ao fim da noite, quase só os dois no fim, tão colados que os outros até reparavam. Desceram a rua de Santa Luzia, mãos entrelaçadas, a fazerem cócegas um ao outro, a rirem-se por ali abaixo.

À porta dos pais dela, os rebentamentos que ouviam há horas soavam mais fortes. O que será? Jabadadas (2) , menina, chega-te para cá, para onde vais, Teresa? Tenho medo, não posso, encosta-te então, não te sentes mais abrigada assim, mas não é das explosões que tenho medo, então de que é?

Uma mão na perna, a subir, ai, aí não, Gil! Respirações atrapalhadas, afastados, um momento que não acabava, a olharem um para o outro, uma sirene bem perto, a Teresa lançada outra vez, os lábios a rasparem-se, o gosto da boca dela, a mão dele nos seios, aqui não, anda, não podemos ficar aqui, mão amarrada à dele, que malucos, que é que nós estamos a fazer, Gil?

Na espreguiçadeira onde se recostava a ler e a sonhar nas tardes quentes de Bissau, ansiosa, não sabia o que queria, a mão dele fazia-lhe comichão no joelho, ria-se das cócegas e do nervoso. A mão em cima da dele, parecia-lhe que a acalmava. As duas mãos juntas, a subirem por ela acima, não posso, Gil, tem cuidado, miminhos só, não me faças mais nada!

Não ando a fazer nada com ela, não pretendo nada da Teresa, só passar uns momentos entretido! Não sei é se me vou aguentar assim, não sei não! Se calhar é melhor ir procurar a Matilde. E a Clara, onde andará aquele amor? Ah, Clara, Clara!

Esta história com a Teresa pode dar chatices, pode trazer-te problemas! Como vai ser o próximo lance? O 14-04 com o pára-brisas no capô, vento na cara, a falar sozinho, até Brá.


3. QUE TERESA!

Naquele fim de tarde, quando descia a rua devagar em direcção à Sé, viu o pai da Teresa, de calção, a tratar da relva e das flores. Aliás, viram-se um ao outro ao mesmo tempo, que chatice, ele a desviar os olhos para as montras da Ultramarina, o pai mais demorado, endireitou-se, sacho na mão, se calhar é aquele o gajo que anda atrás da Tesa.

Acabada a missa da tarde, Teresa, véu dobrado na mão, braço na mãe, desceu as escadas. Iam começar a subida da rua para casa quando o viu. E agora, que faço?

A mãe conhece-o de vista, já o viu da janela mais que uma vez, está a par, uma tardinha perguntou-lhe até quem era. Sei lá, mãe, um militar qualquer, como hei-de saber, queres que lhe pergunte o nome, porque está a passar na rua? Que atrevida que estás, Tesa, julgas que tenho os olhos fechados? E se nós mudássemos a conversa, mãe?

Uns tempos mais tarde vira a Tesa a falar com aquele moço moreno, alto e magro, de farda amarela clara, junto a um jeep. Quando a viu voltar a correr, com a roupa do ténis, fizera-se desentendida, descera para o jardim, para a beira dela, calada com o livro na mão. Sentira-a ausente naqueles instantes, rodeara-a, falara-lhe da carta da tia de Santo Antão a dizer que vinha passar um mês com eles. A Tesa ausente, desinteressada, ah sim, quando?

Aliás, o Vasco já reparara, a nossa filha está diferente, claro meu amor, já tem 19 anos! Não é disso que eu estou a falar, Benilde, acho-a diferente, o comportamento dela! Porque dizes isso, nunca dei por nada! Vai para o quarto cedo, anda a pé às vezes à noite, já a vi junto à janela da sala mais que uma vez! Ora Vasco, sempre assim foi, são raparigas novas, aconteceu connosco, já não te lembras? Não Benilde, cuidado, a Tesa é muito nova, abre-me esses olhos!

Tesa, e as tuas aulas como vão? Ora mãe, que te deu agora? Tentou evitar até não poder mais, a mãe Benilde a cercá-la, sim conheço-o, tem mal, mãe? Que não, filha, desde que me contes tudo, desde que tenhas cuidado, sabes como são, militares longe das famílias, saudosos das namoradas, estão aqui de passagem, só querem divertir-se, tu sabes bem o que aconteceu à Lurdes com aquele alferes dos comandos também, até a chegaste a avisar, já te esqueceste? Tinha sido assim, a conversa ficara neste ponto, um dia que calhe, eu apresento-to, pronto.

De braço dado com a mãe, mudou de passeio e subiram a rua, a mãe a beliscá-la, a olhar para as montras como quem não quer a coisa, até ficarem frente a frente.
A mãe Benilde, o Gil Duarte, um amigo, as mãos estendidas.

Sentámo-nos no varandim, com sumo de laranja e ananás, feito na ocasião pela Mabilde, a nossa criada de Cabo Verde. Conversávamos e calávamo-nos ao mesmo tempo, até teve graça. Os meus estudos, as disciplinas de Física e Matemática, os meus professores, o ambiente que se vive em Lisboa, as tias, as irmãs do papá, que vivem lá em Benfica.

Foi pouco tempo, para aí 1 hora, a mamã a lamentar, que pena o teu pai não estar aqui para o conhecer, naqueles fins de tarde andava a tratar do jardim, depois ainda ia ao escritório, ficaria para mais tarde, também se estavam a fazer horas, o Gil a dizer que tinha que ir. A minha mãe portou-se impecável, um amor mesmo, desci com ele as escadas, ainda ficámos um pouco na brincadeira, a rirmo-nos. Combinámos encontrarmo-nos lá mais para a noitinha, quando todos estivessem deitados.

A mamã ficou muito bem impressionada contigo, sabes? Gostou de ti, acha-te simpático, é verdade, não te rias, tu simpático, vê lá! Que pareces atinado, muito correcto. Depende dos dias e dos momentos, também acho, agora simpático, como as aparências enganam, se ela te conhecesse melhor!

Gosto de estar contigo, nem sei bem porquê. E no entanto, há tanta coisa entre nós a separar-nos. O quê? Esta guerra, por exemplo!

Nem entendo como te envolveste assim, numa força tão agressiva, porque foste para lá?
Porque é que toda a gente pergunta isso? Sei lá porquê, talvez o fascínio pela guerra, não sei! Soldados com as caras sujas, o sangue nas fardas rasgadas, as imagens da destruição, os heróis lavados com as fardas novas, os emblemas a reluzirem, os tambores a rufarem, o clarim a tocar aos mortos, o frio pela espinha, os jeeps, os camiões, as lagartas dos carros de assalto, o nó que sinto na garganta, não sei, Teresa, sei lá!

E não sentes uma ponta de remorso pelo que andas a fazer, não entendes a luta deste povo? É um assunto de que não queres falar? Nem sequer te interessa? E em ti, tens pensado na guerra em que andas envolvido, de arma na mão? Porque é que não fizeste como tantos outros, levar uma vida mais resguardada, mais sossegada, até no teu interesse? Tens pensado no futuro ou é também um assunto que não te interessa?

Claro que estamos a fazer tropelias, não o devíamos fazer, não é para isso que estamos aqui. Lutamos pelo gosto da luta. Gosto disto, desta adrenalina toda. O único problema é ficarmos mutilados, se morrermos, nem damos por ela. Mas odeio a guerra, esta ou qualquer outra. Aliás, não há dia nenhum que não combata contra a minha própria guerra. E não quero morrer, nem quero que os outros morram. Mas, por mim, não vamos perdê-la. Mas é um assunto pessoal, muito íntimo, Teresa.Para as outras conversas és íntimo comigo, porque é que esta é diferente, tens outras vidas de que não queres falar comigo? Para mim tens? Alguém te obriga a estar aqui comigo ou alguma vez te obriguei?

A consciência pesa-te aí dentro, no teu íntimo, Gil, e por mais que digas que não, estás traumatizado e mais, se pudesses, fugias daqui. As minhas aulas vão andando, obrigada, não desconverses!

Quando vai ser, não sabemos. Já estivemos mais longe. Eu era muito menina, andava para aí no 3º ano, quando tudo começou a sério. Até 63, tirando o caso do Pidjiguiti, ao que ouço dizer, era só conversa. Nem me lembro de alguma vez ter ouvido falar a sério em independência. Independência, só a vossa, com o rei Afonso Henriques, que bateu na mãe dele, aprendeste também? E também em 1640 e tal, outra vez Portugal a dizer aos reis de Espanha que mandassem na terra deles, não foi?
A partir de 1963, a história aqui passou a escrever-se de outra forma. Foi pena, mas para trás, se formos a ver tem sido sempre assim, não se consegue quase nada a bem, é pena, mas é assim.

Não estava era à espera de vir a ter esta conversa contigo hoje. Sempre pensei que um dia viria a falar deste assunto com alguém que estivesse do outro lado, assim, tão frontalmente como estamos a fazer agora, mas nunca me ocorreu que viesse a ser contigo! Mas também é bom que assim seja, temos interesses comuns, interessamo-nos um pelo outro, somos capazes de ter uma conversa destas assim, sem recriminações, sem zangas, não achas? És capaz de me dizer, se estivesses deste lado, o que fazias, alistavas-te no partido?

Olha, Gil, acho que não vai ser já, vai demorar ainda uns anos, mas tenho a certeza que a nossa bandeira vai subir no mastro do palácio, lá em cima na praça, e quem sabe, nós os dois no meio do povo, a vê-la ao vento, diz lá, eras capaz de ir comigo?

O barulho dos ramos das árvores e um mocho ou uma coruja lá para trás, dos lados do cemitério, os dois sentados há que tempos, na espreguiçadeira que mal dava para um.


4. QUE ESTOU AQUI A FAZER?

“Temos que ser nós a pô-los daqui para fora, esta terra é nossa, não nos faltam apoios, é todo o mundo a dar-nos razão! Desde meados deste século, os colonialistas têm sido corridos de todo o lado, ficaram os portugueses e porquê, camaradas? Porque de todos os impérios, o deles é o mais atrasado, não só economicamente como também em termos culturais. Uma taxa de alfabetização baixíssima, um país inculto, atrasado, governado por um grupo de lacaios em nome dos interesses de meia dúzia de famílias. Por isso dizemos e insistimos, somos aliados do povo português na mesma luta contra o colonialismo e contra o fascismo. Mas esta situação, camaradas não duvidem, está a mudar e ainda vai ser no nosso tempo e vamos ser nós que vamos acabar com o colonialismo na nossa terra. Temos amigos em todo o mundo, URSS, Suécia, China, Noruega, Cuba, toda a África, toda a Ásia, todo o mundo, amigos que nos ajudam com armas, comida, medicamentos, técnicos. Mas temos que ser nós, camaradas, nós é que temos que fazer o trabalho aqui na Guiné e em Cabo Verde, pô-los daqui para fora!”
O partido precisa de todos nós, cabo-verdianos e guineenses, não posso deixar de contribuir com a minha parte, Benilde, há muito que conheces o meu modo de pensar, esta terra é pobre mas é nossa.

Não sei não, Vasco. Estamos tão bem agora, a nossa vida não teve um começo fácil, demos uma volta tão grande na nossa vida, abandonámos a nossa terra, os nossos pais, e agora que a Teresa está tão bem nos estudos, todos os anos no quadro de honra, não sei que te diga, Vasco, temos levado uma vida tão sossegada, damo-nos bem com toda a gente, a nossa vida vai mudar tanto. Tenho medo, muito medo, Vasco!

Mas o partido necessita de todos, não viste o Aristides, com uma posição tão boa aqui, também abandonou tudo para ir com os camaradas. E tantos outros. Até agora tenho sido só simpatizante, uma vez ou outra colaboro quando me pedem, mas agora é a minha vez de participar mais activamente, não compreendes, Benilde?

Aqueles tempos calmos, com tempo para tudo, o sossego das tardes de Bissau estavam cada vez mais longe. Depois dos incidentes do Pidjiguiti (3), a vida nunca mais foi a mesma. Pide e mais pide, tropa todos os dias a chegar, incidentes em todo o lado, prisões durante a noite, a vida cada vez mais difícil. Benilde pensava muitas vezes em como era boa a vida na Praia, difícil a subsistência, mas o ambiente era outro, como era bom se o Vasco conseguisse ser colocado em Cabo Verde, na Praia ou no Mindelo. Chegou até a falar-lhe, mas ele não recebeu bem a ideia. Casaste comigo, as nossas vidas estão juntas para o melhor e para o pior.

Não te esqueças da Tesa, Vasco, lembra-te da nossa menina!

Benilde, a menina continua a estudar, se algo correr mal, voltas com ela para a Praia, para junto dos teus pais.

Teresa estava com 19 anos, vivia intensamente com a ansiedade própria da idade o que ouvia contar em casa e entre os amigos, as gloriosas lutas que se travavam nas matas contra a tropa colonialista, as tentativas de alfabetização das populações, nas escolas dispersas pelo mato, os progressos pela emancipação, o caminho irreversível para independência.

O relacionamento dela com aquele militar era motivo de reprovação dos amigos e do próprio pai. Coisas separadas, pai, não têm nada que ver, já não sou menina!

A mãe Benilde contou ao papá da tua visita, sabes? A princípio, ficou muito calado, continuou a comer, mas não ficou de muito boa cara, não. No fim de jantar, então falou, que ainda sou muito nova, que tenho muito tempo à frente. É mesmo a sério, virado para mim, que tudo indica que sim, não é? Quer conhecer-te, falar contigo quando te apetecer, claro, jantarmos todos, quando pode ser? Um dia quando, não pode ser amanhã?

A Teresa a querer saber novidades, a mandar recados pelo Alegre, chegara até a ir a casa do Sany. Paludismo forte, mas só, mais nada. Entrar em Brá não podia, não a deixaram, deixou recado, 2 abacaxis pequenos, um cartão, dois corações, uma seta neles, pingas da cor do sangue de saudades, um beijo imenso, maior que o embrulho, nem parecia dela.

Encontraram-se depois das febres. O jantar fica então para amanhã, 6ª feira, posso dizer à mamã? Mas espera, Teresa, jantar? Então, não ficou combinado, apresentar-te ao meu pai? Apresentar-me ao teu pai? Gil, as febres deitaram-te abaixo, precisas de te alimentar bem, recuperas num rápido! Mas, Teresa, apresentar-me ao teu pai, para quê?

Teresa no varandim, com aqueles olhos. A mãe como se fosse para a festa, música de morna, o salão grande, sente-se Gil, esteja à vontade, a Tesa faz-lhe companhia, vou ver as coisas, dá-lhe um sumo de ananás com pouco gelo, quer?

Sentia-se fraco, não lhe estava a apetecer nada estar ali, era bem melhor não ter vindo. Os dois sentados, ele a passar a vista pelo salão, a mesa ao canto, fotos antigas de outras terras, rostos desconhecidos, pau preto, a cadeira de palhinha, a luz suave filtrada pelos cortinados, o que estou eu aqui a fazer e os pais a entrar.

Ora viva, então, como, ah, senhor Gil, Gil quê, Gil Duarte, muito prazer, então? Sorriso sem palavras, cumprimentos, quer beber alguma coisa fresca, ah já está servido, então? Então nada, desta vez apeteceu-lhe mesmo responder.

Calor, hem, esta humidade não deixa a gente respirar, então? Então, como? Que vocês lá na metrópole tem um clima bem mais ameno, mais temperado, mas muito frio no Inverno. Acho que vocês nunca prepararam as vossas casas para o frio, se calhar porque estão lá só de passagem, não é, no regresso de todos os Brasis por onde andam, só param em Lisboa para descarregar o ouro, a prata, as madeiras, o sisal, café, cacau, tudo às toneladas, não é, gargalhada trocista. Assim! O pai da Teresa além de trabalhar nos escritórios da maior empresa colonialista, era também um humorista!

Talvez, nunca pensei nesse assunto, ainda não tive tempo. Na sua idade também não, pensava noutras coisas, não é, a Mabilde e um ajudante de travessas na mão, cadeiras a afastarem-se, então é melhor sentarmo-nos.

Galinha à cafreal, saladas, fruta por todo o lado, ananás, bananas, e para beber, cerveja, Casal Garcia, tinto do Dão, o que lhe apetece?

Então? De onde é o senhor Gil Duarte, o que faz na vida civil, os seus estudos, como vai a metrópole, o que dizem de lá, como vêem esta guerra, o Salazar está para durar? Não vai durar a vida toda não é, vem outro a seguir, já deve estar escolhido, claro, quem lhe parece que seja?

Que não estava a par, não fazia ideia. Mas esse assunto não é do seu interesse? Quando lá estive no mês passado, a estudantada andava toda alvoroçada, a guarda a cavalo em Coimbra, na rua da Sofia as lojas todas trancadas. Isto está um problema, senhor Duarte, não pode continuar assim, na vossa metrópole e aqui, a tendência é para agravar, a URSS, a China do Mao (4) , a própria América veja lá, a Suécia, a Noruega, o mundo todo, menos a Espanha do Franco, o vosso governo de portas fechadas em quase todos os países, agora até o Brasil, sabia? Servem-se da vossa juventude, quando regressam deixaram o melhor das vossas vidas, muitos deixam bocados deles aqui, outros nem regressam, não é?

O cafreal da galinha não passava, atravessado na garganta, não havia maneira de ir para baixo, sumo na mão, a da Teresa, a acalmá-lo, a brincar-lhe no joelho por baixo da mesa.

Que estava a par da agitação estudantil, que deveriam ter alguns motivos, mais outros da idade, adiante se veria.

E então, senhor Duarte, a Tesa o que é para si? A Tesa é muito boa menina, já reparou? Um bocado senhora do seu nariz, às vezes teimosa demais, muito boa estudante, até agora…

Como é que a conheceu? O senhor gosta mesmo dela?


5. MAIS DO QUE ESTAVA À ESPERA

Um interrogatório, perguntas atrás de perguntas. Depois, ofegante, braços cruzados, calada, a exigir respostas. O que é feito de ti, porque não tens aparecido, estás cansado de mim, já não tenho novidades para ti, vocês são todos iguais, espera, onde vais, toma nota do que te vou dizer, mas porque viras os olhos, já não me queres ver?
Olhos, uns olhos grandes, agora cinzentos de zangada, brilhantes, húmidos, ele quase esquecido de respirar, momentos de silêncio, tréguas.

Arrependimento a seguir. Coisas que mal a gente diz se arrepende logo, sabes bem como sou, tu também és assim, às vezes dizes coisas que não gostarias de dizer, não é? Mas diz-me, o que vês em mim, Gil?

Um feitio complicado numa figura agradável, Teresa. E o que conheces de mim que eu nem imagino? Não é possível continuarmos assim, Teresa, com esses modos não…
A força das mãos nos braços dele, os olhos molhados, a exigir-lhe silêncio agora, não digas nada de que te arrependas a seguir, pára um minuto só, pára! Pessoas a chegarem, a olharem para eles, os dois a olharem para o lado, como se não fosse nada com eles, os dedos dela a tapar-lhe a boca, a situação a alterar-se. Não posso, Teresa, já não tenho mais disposição para estar aqui contigo, boa noite!

Não se conseguia ver livre dela, só se desse escândalo, mãos dela no pescoço dele, não me deixes agora, sou tão tua amiga, deixa-me estar assim, só este bocadinho, as coisas que se dizem nestas alturas.

Como me podes fazer uma coisa destas, Gil, ele vencido, outra vez a história a andar para trás, tudo a correr tão bem para o fim, afinal nem tinha sido ele a desencadear as hostilidades e agora outra vez, tentativas para se descolar com meiguice, pior ainda, ela a arrastá-lo para o jardim, a empurrá-lo para a rede, em cima dele, vencido.

Isto está a ir longe demais, tens que parar já, é tempo para começares a pensar nos passos que vais dar para te saíres bem, magoá-la o menos possível, nada de choros, o que vai ser difícil, falar-lhe com calma, nem pensar em meiguices, alegar outros compromissos, cada um para o seu lado.

Passou pelo Bento, arranjou transporte para Brá, copo de água no bar da messe, desceu para o quarto, um bom banho e meteu-se na cama com os documentos que lhe deram na 2ª repartição.

“Cassaprica é o maior acampamento IN existente na área deste posto administrativo. Há um caminho bastante perigoso, porém muito importante, uma vez iludida a vigilância dos sentinelas, pois corta a retirada do IN para a república da Guiné-Conackry em caso de operação em Camissorã. Ainda o mesmo disse que em Bagadai perto de Cane Faque, estão a construir uma jangada de paus para transportar a Cane Faque e daí para Caule uma arma bastante pesada. Também informou que mais de metade dos elementos da guerrilha passou para Caule onde existe um acampamento e um pequeno estabelecimento. Que no entroncamento da estrada velha de Cacafal com a estrada de Cambeque, do lado esquerdo de quem vai para Cabo Nepo, junto a uma árvore grande, existe um abrigo onde o IN aguarda oportunidade de montar emboscada à tropa”.

Três folhas com os depoimentos de guerrilheiros apanhados. Tinham dito tudo o que sabiam e, nada de admirações, também coisas que só se lembraram quando lhe apertaram as unhas, a polícia dizia e assinava por baixo, localização dos acampamentos, disposição, nº de guerrilheiros em cada, armas, os nomes dos comissários políticos em alguns casos. Dentro de uma pasta, uma etiqueta na capa a classificá-los. Estivera a lê-los, o sono a chegar, enfiara-os na pasta e fechou o mosquiteiro.

No outro dia, no QG, quis dar andamento às informações que lhe tinham fornecido. Os documentos vistos outra vez um por um, notas ao lado, localização de guias, onde falar com eles, transportes, esboçar os planos de operações. Da 3ª rep ficaram de lhe dizer as melhores datas, meios, as horas das marés, as coisas do costume.

No VW preto de aluguer que lhe tinham entregue logo pela manhã em Brá, meteu a pequena pasta dentro do porta-documentos. Começou a descer para Bissau, um fim de tarde agradável, sentia-se bem sem saber porquê, nada que fazer agora, e se passasse pela casa da Teresa, para arrumar o assunto, era capaz de ser boa ideia, não?

A rua sem movimento àquela hora, viram-se logo, ela deitada na espreguiçadeira com os cadernos espalhados pela relva.

Era ele, nem parecia naquele carro, onde o arranjaste, apetece-me sair, levas-me a dar uma volta? É só um instante, arranjo-me depressa, não vou mudar de roupa, só pentear-me, um minuto, ele dentro do carro, à espera.

O pai dela a subir a rua, olhos a cruzarem-se, teve que sair do carro, senhor Duarte, então? Muito trabalho, senhor Vasco? O costume, vocês dão-nos muito que fazer, que bom não é senhor Vasco, é… é… de facto. Então o que diz àquela história da orelha, senhor Duarte? Que orelha? Então, olhos fixos nele, o caso do hotel Portugal! Não sabe? Toda a cidade sabe, um horror!

Um grupo de fuzos (5) ao passar na esplanada do hotel, um deles destacou-se, directo a uma mesa cheia de pessoas de cor, puxou pela orelha de um, facalhão na mão, zás, cortou-a, a correr pela rua abaixo, a rir-se, o ferido cheio de sangue atrás, dá-ma, dá a minha orelha! Não é para rir, senhor Duarte! Um horror! É verdade! Não acredita? Testemunhas é o que não falta!

Não sabias ainda? Sempre metido em Brá, como podes saber, a Teresa parecia que tinha acabado de tomar banho, toda fresca a chegar, a dar um beijo no papá. Isto está cada vez pior, senhor Duarte, cada vez pior! Para onde vão? Tenham cuidado, isto está a ficar de cortar à faca!

Como da primeira vez em que saíram sós, pouco movimento a esta hora, o carro devagar, mal se ouvia o motor, pelas ruas a descer para o porto, o quartel dos fuzileiros, a caminho da Sacor. Encostaram o carro, o Geba orgulhoso lá em baixo, a Teresa a chegar-se, ele a abrir a porta, a pé pela estrada uns metros até lá à frente, a olhar para o rio, deu a volta por dar, olhou para o carro, a Teresa com uns papeis na mão, quê?

Deu-lhes a pressa aos dois, ele a voar sem correr, ela atrapalhada a meter tudo de qualquer maneira no porta-documentos. A cara dela, ah, que cabeça, já me esquecia, tenho uma lembrança para ti, lembra-me depois quando chegarmos a casa, a propósito, quando voltamos a jantar todos juntos? Mal respirava, palavras atrás de palavras.

Mas para onde vamos? Porquê, Gil? Ainda agora chegámos, que pressa é essa, que te deu, não falas? Não estou a perceber nada, Gil, andas tão estranho ultimamente, o que se passa contigo?


6. PONTO FINAL?

Estás mesmo tramado, todo enrodilhado, e agora, como é que te vais livrar deste sarilho? Não tem outro nome, sarilho só, com letras grandes. Se tivesses procedido com ela como tens feito com outros conhecimentos, não estavas agora aqui a matutar, a cabeça ainda por cima a doer-te. Tens pouca corda na mão, é o que é, deste-lhe demais e a ti também. Problema chamado Teresa, não? Como te vais sair dele, quando te resolves?

A Teresa fora um simples conhecimento, no início só para passar o tempo. Engraçou com dela, os olhos primeiro que tudo, atraíram-no, meteram-lhe medo e como os meninos curiosos quis espreitar, ela mostrou-lhe outras coisas que tinha com ela. Uma mulher diferente das que tinha conhecido aqui, estas sim só para passar as mãos pelas redondezas todas e depois parágrafo.

Nem conseguiu viver debaixo do mesmo tecto com a Matilde! Adiantou-lhe um mês de renda para a ter numa casa, equipada com tudo, apenas para os intervalos das guerras, tomar uma chuveirada com ela, levá-la ainda molhada nos braços para o quarto, um banho outra vez, vou dar uma volta, hoje não posso ficar, tardes e noites seguidas, sempre assim.

Nem conseguiu dormir com ela uma noite inteira que fosse, no início ainda disse que tinha compromissos no quartel, um serviço qualquer para fazer, ela a desconfiar que fosse outro motivo, mas não. Estou habituado à minha almofada, trá-la então, à minha cama, trá-la também, traz tudo contigo, mas não me deixes só que não posso. E deixou-a sempre. Teve pena muitas vezes de a deixar, custava-lhe suportar os olhos dela. Chatices que arranjou e arrumou sempre, melhor ou pior. Porquê?

Matilde, é simples, gosto de ti, o teu rosto, o cabelo negro que te fica tão bem assim, o teu peito pequeno e tão bem feito, a tua barriga lisa, as tuas coxas redondas, as pernas como acho que nunca vi. A tua figura toda, mas acho que tu e eu queremos outras coisas que os dois não temos. Só isso, mais nada, Matilde! De modo que é melhor seguirmos cada um o seu destino, amigos para sempre, quando te apetecer outra coisa comigo, se verá, estás de acordo?

Sacana, porquê? Matilde, não posso ficar mais tempo, tenho que me ir embora! Fica aqui um mês de renda para te arranjares.

Não queres, deita-o pela janela fora, faz o que quiseres dele, não me interessa, esse dinheiro é teu, um beijo, Matilde, não dás? Os outros casos foram entretimento para dois, sem dinheiros nem nada!

A Teresa já não é só Teresa como se apresentou da primeira vez, agora tem um nome mais comprido, Teresa Problema, proporções com que nunca sonhaste.

Os olhos, o sorriso, a figura, o andar dela, só isso? Ou terão a ver mais com outras coisas de que não estavas à espera e muito menos aqui? O gosto pela leitura, de assuntos em que nem tu próprio estavas sensibilizado, nem ainda estás, a solidariedade, o interesse pela sociedade guineense. A cultura geral, invulgar para a idade dela.

E a disposição para te afrontar, para lutar contra ti, contigo, puxar por ti, lutar pelos ideais dela, do povo dela! Para te dizer na cara, com aqueles olhos magníficos, aquilo que ela achava no seu direito de dizer. Os teus olhos a fugirem, os ouvidos que não queriam ouvir, tu a disfarçares, com a mão nela, como quem diz, vamos mas é ao que interessa! Um merdas, um Rasas, nem sempre com cheiro a uísque azedo, mas um Rasas na mesma! A aproveitares-te da sensibilidade dela, a fazeres-te caro, de um momento para o outro, a invadi-la com as tuas mãos, ela a acreditar em ti! Miserável, Rasas de merda!

Nem tanto assim! Mas que chatice! O que fizeste com ela este tempo todo, o que fizeram os dois juntos, afinal? Nada do outro mundo, brincadeiras, uma vez ou outra mais ousadas, mas nada mais do que isso, sempre travaste as tuas incursões e as dela também, e bem te custou às vezes, ninguém imagina! De resto, das tuas mãos está inteira, ou quase, não te lembras de lhe deixar marcas irreparáveis, fisicamente falando, claro.

Então porquê esta atrapalhação toda, porque não vais falar com ela, directa nos olhos, assim, Teresa, temos que alterar a relação que temos vindo a manter, não temos razões suficientes para prolongá-la, devemos dar por terminado o nosso conhecimento, não, não te amo nem um pouco, apenas comecei contigo porque te achei graça, tu também, pelos vistos, este tempo passado diz-me que é melhor não continuarmos, e pronto! Já agora, Gil, continua Rasas até ao fim!

Os olhos dela não acreditavam, continuavam insistentes a furá-lo todo, para onde fores vou atrás, senão sei lá o que faço! Inscrevo-me nas forças combatentes do partido, hei-de encontrar-te, nem que seja de arma na mão! Quero ver como te defendes! O que se diz nestas ocasiões, as mãos amarradas aos braços dele, depois largou-os de uma vez, um metro para trás a tomar balanço.

Como quiseres, tu é que sabes, não tenho que me impor a ninguém, não preciso! Tenho amigos, não me vou perder a chorar por aí! Fui ingénua pela primeira vez, vou ser outra e outra vez ingénua, infelizmente para mim.

Enganei-me, pensei que os teus sentimentos eram verdadeiros, que podíamos fazer vida juntos, afinal… mas não tenhas remorsos, a culpa foi também minha. No fundo, pensando bem, é melhor assim.

Já te vais embora? Espera aí, ouve! Há tempos, quando estava a ler um livro, algo me fez pensar em ti, de uma forma diferente do costume. Pensei que fosse impressão minha, mas não, agora já sei porque me lembrei de ti naquele momento.

Afinal, és exactamente o que pareces, dentro de ti não há calor nenhum. Como o gelo, quando se quebra é só água fria por baixo. Só tens água fria por baixo, Gil. Queres ir-te embora, não queres? Vai então, vai!


7. NOTÍCIAS OUTRA VEZ

“Não estranhes esta carta, não te vou pedir nada! Estive a fazer exercícios de Trigonometria até ficar cansada, já estive na cama mas não consegui adormecer.
Há dias que ando a tentar escrever-te, a certa altura paro para reler e rasgo. Tem sido assim, folha atrás de folha, acho-as sem jeito. Nem sei se deveria escrever-te. Estou a fazê-lo para mim, como se estivesse a falar comigo. De resto o que temos para dizer que já não saibamos, não é? E, fico-me a pensar, será também que a gente quer mesmo saber um do outro?

Tenho sabido notícias tuas, de alguém que te vê todos os dias, até já te viu a tomar banho à noite na piscina do QG. Só mesmo tu! Por acaso, falou nos colegas dele e tu és um deles. Como isto é tão pequeno! E uma noite destas quando saía da explicação, quase que me encontravas, mais um minuto e ficávamos frente a frente. Também foi melhor assim, não é? Olha, acho que desta vez vou mesmo conseguir escrever-te. Mas não quero que te sintas obrigado a responder, fá-lo só se tiveres vontade, sem obrigação. Mas quero dizer-te Gil, que gostava muito das nossas conversas, às vezes lembro-me e fico não sei como…

A mamã Benilde está melhor agora, mas o papá acha que é melhor ela ir a Lisboa fazer exames, ela não quer, mas o papá insiste, até já escreveu para as tias em Benfica, elas dizem que tratam de tudo, para a gente ir, a mamã não quer, que não pode deixar a casa, diz que não deve ser nada, a humidade é muita, o tempo também não ajuda, não é? Diz que só vai se eu for com ela, eu só posso nas férias e este ano é muito complicado para mim.

Estou a ter explicações de álgebra e trigonometria, numa sala em frente ao Pintosinho, é uma turma pequena, só raparigas, somos 4. O professor é um militar que chegou, parece que há dois meses, um jovem com muito bom aspecto, muito inteligente, elas andam perdidas por ele, tu nem imaginas, ficam a passear na rua, para trás e para a frente, à espera que ele saia, ele não lhes liga nenhuma, nem as vê, boa noite, até depois de amanhã. Eu por acaso, não simpatizo muito com ele, isto é, acho-o giro, mas ele só fala em senos, co-senos e tangentes, sabes como são os matemáticos, além disso, não te rias, não gosto muito da colónia ou aftershave ou lá o que é que (desculpa isto ir tudo riscado, ia escrever o nome dele mas ele não quer que se saiba) ele usa. É às 2ªs, 4ªs e 6ªs, das 9 às 11 da noite, às vezes um pouco mais tarde, depende. Estou a gostar muito das aulas, acho que ele explica muito bem, tem muita lógica a ensinar, também quem é que vai para Matemática, não é, só quem tem feitio para os números, para a trigonometria, só de ver os exercícios do Palma Fernandes, é de desanimar! Mas estou a gostar muito e acho que vou conseguir fazer a cadeira logo à primeira.

E tu, tens trabalhado muito no bar da cantina? É lá que estás agora, não é? Tem-te corrido bem a vida? Quando vais embora? A semana passada encontrei a Dora na Ultramarina. Disse que deixaste de lá ir, eu também já não vou lá há muito tempo.
E pronto, desta vez foi mesmo a sério, amanhã vou ver se te mando esta carta. É tardíssimo, sabes que horas são, quase duas e não tenho sono nenhum! Um beijo da tua amiga e, podes acreditar, para sempre tua amiga,

Teresa Correia
Rua dos Rouxinóis, Vivenda Correia, nº 14, Bissau.
P.S. Gil, quero pedir-te desculpa da minha reacção, a conversa apanhou-me desprevenida, eu já desconfiava mas mesmo assim não contava que fosses tão bruto, desculpa se magoei a tua cara, mas também me magoaste muito, na cara não, mas cá dentro. Mesmo assim não te sintas obrigado a responder. Escreve-me só se te apetecer.
Bom, agora é mesmo, tchau!”



8. PONTO FINAL

Encontramo-nos então logo à noite, agora temos que ir a um funeral. Quem morreu? Uma aluna do Ramos, morreu de repente, o funeral é agora às 3, o Manaças contrariado. É pá, se não vens depressa já não vale a pena, o Ramos no jeep!

Chegou-se a um grupo, o Daniel no meio a contar a vida no Xitole. E se fosse até à cidade? E foi, por ali abaixo, o calor a apertar àquela hora, sem trânsito nenhum, uma viatura militar ou outra, o rádio a tocar Capri, c’est fini, o chato do locutor não se cansava de interromper.

Deu a volta à praça do Império, meteu-se a descer a avenida, em direcção ao cais, uma mancha de pessoas lá ao fundo, muitos carros, jeeps e outras viaturas militares à frente dele, a afrouxarem junto à Sé, deve ser o tal enterro.

Pessoas a saírem da igreja, muitos jovens, a Teresa também deve ir ali, as roupas dos padres, a carreta a andar com o caixão em cima, quatro pretos de camisa branca e calça preta ao lado, muitas pessoas atrás, senhoras de véu, rostos mais escuros, deve ser o choro, não quero ver mais, que ideia que tive, vir cá abaixo a esta hora! O cortejo a andar, a virar para a esquerda, para a rua da Teresa, em direcção ao cemitério para os lados da Amura. Não quero ver mais nada.

Meningite, um ataque fulminante, pá! Uma miúda de 20 anos, vê lá tu! Ninguém pode estar descansado, porra! Uma chatice, pá, a mãe desmaiou no cemitério, a comunidade cabo-verdiana toda em peso, até pides lá estavam, pessoal dos correios, muita gente mesmo, o pai é muito conhecido…

“Como foi? Só uma dor. Mamã, não sei o que tenho na cabeça, uma dor muito forte, um saridon que a Benilde costuma tomar para as dores dela, não passava, disse que tinha frio, devia ser paludismo, que é que havia de ser, começou a chorar, não aguentava as dores, quando o pai pegou nela ao colo, que não podia com a cabeça, ele mandou logo a Mabilde chamar o doutor que a conhecia desde menina, ele nem demorou muito.
Quando o médico entrou no quarto e a viu, disse que não devia ser paludismo, que o pescoço estava muito rígido, depois olha, quando deram por ela, estava já desmaiada. Ainda foram a correr para o hospital. Foi assim que o pai contou”. A Dora, a Mabilde e a Cesária inconsoláveis.

A missa foi num final de dia. Os pais da Teresa, a Mabilde, muita gente do Liceu, estudantes e professores, a Dora, a Matilde, a Cesária e alguns amigos cabo-verdianos mais chegados. À saída, cumprimentou os pais, a Mabilde, os amigos. Foi a última vez que os viu.

© Virgínio Briote (2006)
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(1) Canção romântica, em voga em 1965/66, de Hervé Villard: "Nous n'irons plus jamais, Où tu m'as dit je t'aime, Nous n'irons plus jamais, Comme les autres années, Nous n'irons plus jamais, Ce soir c'est plus la peine, Nous n'irons plus jamais, Comme les autres années. Capri, c'est fini, Et dire que c'était la ville, De mon premier amour, Capri, c'est fini, Je ne crois pas que j'y retournerai un jour" ...

(2) Rebentamentos das flagelações a Jabadá, aquartelamento das NT frente a Bissau.

(3) Greve dos estivadores no cais do Pidjiguiti, em 3 Agosto de 59, reprimida violentamente pela Polícia.

(4) Mao Tse Tung, na altura Presidente da China

(5) Fuzileiros
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Nota de L.G.

(*) Vd post de 13 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXVII: O 'baile dos comandos' na Associação Comercial

" (...) Na esplanada do Bento, a 5ª Rep, como também era conhecida , bebia cerveja com mancarra, num grupo de 5 ou 6 comandos e páras. Um terá dito que naquela noite, na Associação Comercial de Bissau, havia o baile dos finalistas do Liceu. Outro lembrou-se de perguntar se alguém recebera convite. Eu não, tu não, aquele também não…Ninguém se lembrou de nós, como pode ser? Queres ir? (...)"

Vd também post de 13 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXIII: O baile dos finalistas do Liceu de Bissau de 1965 (João Parreira)

"(...) Na manhã daquele dia para me descontrair tinha ido com alguns camaradas para Quinhamel, uma vez que estava com grandes projectos para aquela noite. Semanas antes tinha conhecido a Helena uma moça cabo-verdeana, que era o que se costuma dizer uma brasa e andava todo entusiasmado" (...).

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