sexta-feira, 2 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P311: E de súbito uma explosão (Luís Graça)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970: Da esquerda para a direita, os ex-furriéis milicianos Marques e Henriques da CCAÇ 12 (1969/71), em amena conversa ou talvez disputando amigavelmente o "lugar do morto" (que era ao lado do condutor).

Os dois foram vítimas, juntamente com as suas secções (do 4º Grupo de Combate), da explosão de uma mina anti-carro na GMC em que seguiam (Estrada de Nhabijões-Bambadinca, a 13 de Janeiro de 1971, a um mês e meio da sua rendição individual.

O Marques sofreu politraumatismos que o puseram à beira da morte. Saído do coma, ao fim de duas semanas e meia, tinha uma perna gangrenada... A sua recuperação foi lenta e difícil, tendo conhecido o longo calvário dos hospitais militares (Bissau e depois Lisboa). É hoje mais um DFA (deficiente das forças armadas), além de conhecido comerciante na cidade de Cascais (1).

© Luís Graça (2005).


Excertos do Diário de Um Tuga (ex-furriel miliciano Henriques, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

13 de Janeiro de 1971.

E de súbito uma explosão. O sol dos trópicos desintegra-se. O céu torna-se bronze incandescente. O mamute de três toneladas dá um urro de morte ao ser projectado sob a lava do vulcão. E depois, silêncio... Era uma hora e meia da tarde quando o meu relógio parou, na estrada de Nhabijões-Bambadinca…

A viatura vai despenhar-se num abismo imaginário. Volatizar-se como uma aeronave ao reentrar na atmosfera. Sou projectado ao lado do condutor, batendo violentamente com a cabeça na chapa do tejadilho e depois com a testa e os joelhos na parte da frente. Consigo equilibrar-me mas não vejo nada. Há uma espessa nuvem de pó que me envolve, exalando um forte cheiro a enxofre. Ainda consigo pensar: o ar está rarefeito e eu vou sufocar dentro desta maldita cabina.

Foi então que se produziu um curto-circuito no meu cérebro, como se eu tivesse sido electrocutado. Fiquei rigidamente colado ao assento, a G3 estranhamente entrelaçada nas minhas pernas, e a vaga sensação de que a massa encefálica me tinha saltado da caixa craniana. O olhar vidrado de quem mergulhou nas profundezas da terra. O gélido terror de quem entra num mundo desconhecido.

Nunca saberei ao certo quantos segundos se passaram, mas houve um solução de continuidade (essa fracção de tempo em que a consciência esteve bloqueada) até compreender que a velha GMC tinha accionada uma mina. Outra mina, meu Deus!, e instintivamente agarro-me àquela carcaça de mamute, mal refeito da surpresa de estar vivo.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Finete, regulado do Cuor > 1969 ou 1970: Destacamento de milícias e aldeia em autodefesa de Finete (na margem direita do Gerba Estreito, entre Bambadinca e Missirá)

Na foto, o furriel miliciano Henriques e dois dos soldados africanos da CCAÇ 12, do 4º Grupo de Combate, o Soldado Arvorado (mais tarde promovido a 1º cabo) Samba Só e o Soldado Umarú Baldé, o puto, apontador de morteiro 60 (na foto, de pé, fumando o seu inseparável cachimbo; na época teria 16 anos).

© Luís Graça (2005)


Quando salto para o chão, o que se me depara como espectáculo são os destroços duma batalha: há corpos por todo o lado, juntamente com espingardas, cantis, canos de bazuca e de morteiro, granadas, bocados de chapa e de borracha, numa profusão indescritível. Corpos que gemem, que gritam, ou que talvez já sejam cadáveres.
- Mortos! Tudo mortos, mi furiele! – grita-me o Umaru, o puto, como lhe chamamos (e o que é ele, de resto, senão uma criança violentada pela guerra que aos dezasseis ou dezassete anos trocou a mauser das milícias pelo morteiro 60 de uma companhia de carne para canhão!?), os braços abertos, o pânico estampado no seu belo rosto de efebo de fula, filho de régulo. A primeira vez porventura que o via sem o seu inseparável pequeno cachimbo, que ele, fumador inveterado, usava para lhe dar o ar de homem grande.


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Bissorã> Estrada Bissorã-Olossato > Elemento da CCAÇ 13 levantando uma mina

Segundo o nosso camarada Carlos Fortunato, na sua página dedicada à CCAÇ 13 - Os Leões Negros, trata-se de "uma mina anti-pessoal/anti-carro (as minas exclusivamente anti-pessoal eram muito mais pequenas e a sua explosão provocava normalmente a perda de um pé)".

Pelo contrário, esta, com uma carga de cerca de 5 kgs de TNT, "se detonasse o que restaria do infeliz, caberia numa caixa de fósforos, e a sua explosão colocaria uma viatura em cima de uma árvore"...

Foi "detectada por um elemento da população que quase a fez detonar". Como se pode ver na foto, a mina está montada numa caixa de madeira e utiliza um sistema de detonação em que parte dos componentes é feita em plástico. A madeira permitia "fazer minas de custo mais baixo e com maior facilidade", embora com o risco de "apodrecer se ficar na terra muito tempo". Tinha ainda "a vantagem de ser mais difícil de encontrar pelos detectores de metal (o exercito português tinha poucos detectores de metal, o seu detector era um ferro afiado que se espetava no chão com cuidado, se batesse em algo sólido era provavelmente uma mina)" (...). "Provavelmente tratava-se de uma anti-carro S 47/53, de origem russa".

© Carlos Fortunato (2005).
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O primeiro ferido que reconheço é o transmissões, todo encolhido junto à viatura destruída, numa atitude instintiva de defesa, e sob forte estado de choque. Abeiro-me depois do comandante da 1ª secção, meu companheiro de quarto, o Marques, mas ele já não reage à minha voz nem às bofetadas que lhe dou no rosto.

Aparentemente não tem qualquer fractura exposta mas de um dos ouvidos corre-lhe um fio de sangue. Procuro desesperadamente os sinais de que ainda está vivo: a sua respiração é cada vez mais fraca e não é sem um calafrio que tacteio este pulso que se me escapa.

Trágica ironia a de mais este banal episódio de guerra: minutos antes, ao subirmos para a viatura, havíamos disputado amigavelmente o "lugar do morto".
- Vais tu, vou eu, vais tu, vou eu!...

Acabei por ir eu ao lado do condutor. Mas daquela vez, e para sorte minha, a mina rebentaria sob o um dos rodado duplos traseiros da GMC, embora do meu lado. O condutor tinha acabado de fazer a inversão de marcha, para regressarmos ao quartel. Outra puta de mina, não detectada pelos nossos picadores, fora accionada, na berma da estrada, às portas do reordenamento de Nhabijões, a escassos metros da anterior.

Estávamos de piquete, quando duas horas antes uma viatura nossa que ia buscar, a Bambadinca, o almoço para o pessoal afecto aos trabalhos de reordenamento, accionara uma mina. O nosso condutor, o Soares, teve morte imediata. O Furriel Fernandes ficou gravemente ferido. O alferes sapador Moreira e outro militar da CCS do BART 2 ficaram também feridos… O Moreira, ao que parece, com gravidade (2).

Mas só agora reparo no velho Tenon, no Ussumane, no Sherifo, mesmo ao meu lado, a meus pés, sem darem acordo de si. E ainda no Quecuta, no Cherno e no Samba, nosso bazuqueiro, arrastando-se penosamente sobre os membros superiores, como lagartos cortados ao meio.

As duas secções que seguiam atrás, na GMC, tinham sido projectadas pela vulcão de trotil, como se fossem cachos de bananas. Se o rebentamente da mina fosse seguido de emboscada, então seria um massacre. Eu era o único que tinha uma arma na mão, sem bala na câmara, como de costume, mas desta vez inoperacional, devido ao choque sofrido… E, de facto, não deixo de sentir um arrepio ao imaginar-me sob a mira certeira dos RPG e sob o matraquear das costureirinhas e das kalash.

Felizmente, tínhamos acabado de fazer o reconhecimento das imediações, detectando o trilho dos elementos da guerrilha que, durante a noite, tinham vindo pôr as minas assassinas… Esse trilho, mais fresco, acabava por confundir-se com os trilhos usados pela população de Nhabijões que, como é sabido, não morre de amores por nós…

É possível, entretanto, que haja mais minas pela estrada fora, mas não posso perder mais um segundo. Ainda hesito em mandar picar ou não o terreno, mais alguns metros em redor, mas não posso perder mais um segundo, para logo seguir de imediato para o heliporto de Bambadinca com os feridos mais graves. Foram pedidas várias evacuações Ypsilon, via rádio.

Talvez mais até do que a solidariedade entre camaradas de guerra e a minha amizade pelo Marques, o que me parece mover é o sentimento do absurdo da morte, do absurdo desta guerra, a raiva contra esta guerra. É uma corrida louca, esta, na fronteira indefinida que separa a vida da morte na estrada de Nhabijões, no primeiro Unimog que me apareceu à mão, e que leva um carregamento de feridos. Três deles estão em estado de coma e têm como destino outro inferno: o hospital de Bissau, a incerteza do desfecho da luta entre a vida e a morte aos vinte e poucos anos...

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(1) Vd. post de 23 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971)

(2) Trata-se do mesmo Luís Moreira, que é membro da nossa tertúlia. O ex-alferes miliciano sapador da CCS do BART 2817, é hoje professor de matemática do ensino secundário, "à beira da reforma".

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