segunda-feira, 28 de novembro de 2005

Guiné 63/74 - P298: Brá, SPM 0418 (1): as minhas memórias de Cuntima (Virgínio Briote)


Amigos & camaradas:

Temos notícias do VB, o nosso camarada dos comandos velhinhos de 1965/66... Ele diz-nos que "o Fora-Nada-Nada está imparável!"... e junta "algumas páginas das minhas memórias em Cuntima". Sempre com aquela discrição, serenidade e sabedoria dos homens que sabem tirar lições da sua experiência de vida...

O Virgínio Briote, em Biarritz (2002)

© Virgínio Briote (2005)

É um privilégio termos, na nossa tertúlia, gente como ele que tem talento literário, que sabe comunicar ideias, emoções, sentimentos, contar pequenas estórias, recriar ambientes onde nos reconhecemos, à distância de trinta e tal anos... Não só só ele, como o João Tunes (que é um conhecido blogador, com garra, crítico e mordaz), como o A. Marques Lopes (que belíssima peça a da bolanha de Sinchã Jobel!), o João Varanda, o David Guimarães, o Humberto Reis, o Vitor Junqueira ou o Afonso Sousa, só para citar alguns ex-camaradas de armas que trocaram a G-3 pela caneta ou pelo teclado do computador, ou que são os mais assíduos comunicadores da nossa tertúlia... Mas é do VB que hoje quero falar para dizer que ele é uma revelação: todas as vezes que vai ao baú (expedido de Brá , SPM 0418), saca de lá uma peça que é de antologia!

É destes presentes de Natal que a nossa tertúlia precisa. Esta prosa dá gozo publicar e ler... Grande Virgínio Briote! Que o teu exemplo inspire outros camaradas, menos afoitos às coisas das letras...

Há tempos nós publicámos aqui [vd post de 19 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIV: Ansumane, caçador de crocodilhos (conto tradicional)] um belíssimo texto do VB, e ele respondeu-nos, com reconhecimento e humildade:

"Fiquei sensibilizado com a publicação do conto do Ansumane. Pareceu-me até que está muito melhor do que aquele que escrevi há anos. De resto, a minha prática de escrita em quase 40 anos de actividade profissional resumiu-se invariavelmente a relatórios comerciais, problemas, oportunidades, fraquezas, forças. Relatórios para multinacionais, sabes do que estou a falar, nada de margem para poesias"...

Eu sei (ou suspeito) que há para aí muito mais gente com jeito para a escrita... O que se passa é que alguns de nós somos mais envergonhados... Aproxima-se o Natal de 2005: a melhor prenda que a gente pode oferecer-se uns aos outros sãos as nossas estórias, mais curtas ou compridas, com mais pica ou menos pica, mais tristes ou mais alegres, mais poéticas ou mais divertidas, com mais ficção ou mais história... Vale tudo!... Deixem soltar o verbo!... E fico/ficamos à espera dessas prendas!

Luís Graça
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1. EM CUNTIMA

A festa não era para ele, aquela gente toda na pista de aterragem festejava a chegada da avioneta. Não demorou muito tempo a perceber aquele ar de agitação e da romaria em volta do piloto e da meia dúzia de caixas com uísque, cerveja e tabaco espalhados pelo chão. E os sacos do correio, todos à volta, a pressa de um daqueles militares, a fúria em tirar para fora dos sacos maços e maços de cartas, algumas pelo chão, outros a apanhá-las. Carlos Correia, Manuel Silva, ó Tomé, as mãos estendidas, pronto, meu sargento!

Gil Duarte? Olhe, seja bem-vindo a Cuntima! Um gajo de mão estendida, de calções e camisa de caqui, com um esboço de pêra e bigode, o comandante da companhia, capitão Galo. Estes são os seus camaradas, o alferes Adair, mais conhecido aqui por Didi, o alferes Ribeiro, aquele ali é o doutor Francisco Lourenço, um açoriano da Terceira. Adair, hoje já tem que fazer, trate de lhe mostrar o local onde vai ficar, os aposentos do hotel, a cidade, a casa de banho, mostre-lhe tudo!

Cuntima era uma rua, uma recta de 200 ou 300 metros, a estrada de terra a atravessá-la, entre a saída para Jumbembem e Farim e a entrada da fronteira com o Senegal. Casas de um lado e doutro, pintadas com a cor de muitos sóis em cima, casitas de adobe atrás, da população nativa.

No lado nascente, em frente ao antigo celeiro, que agora servia de camarata do pelotão do Gil, ficava a casa do comando, um quarto para o capitão, outro para a estação de rádio e uma saleta que servia de posto de socorros e de capela quando havia capelão, e uma arrumação com beliches, onde estacionavam três ou quatro soldados. Duas casas depois, a messe, em tempos mais calmos moradia de alguém importante na terra. Era aqui que se encontravam para as refeições os alferes da companhia, o capitão Galo, o médico e o 1º sargento. À entrada, à frente do bar, o Magrinho servia cerveja, uísque, leite condensado, água, por esta ordem conforme a existência, e a seguir, o que havia no frigorífico.

No primeiro jantar em Cuntima, ficou logo a conhecer a história deles e do batalhão. Do capitão não, que se retirou cedo.

O Adair era mais brasileiro que português, criança ainda fora com os pais para o Rio de Janeiro. Questões relacionadas com heranças forçaram-no a vir a Portugal, a Vila da Feira. Não havia forma de fugir, tinha que ser! E pronto, foi assim, acabou-se-me a Gávea, Copacabana, Ipanema, o Leblon, o Leme!

Ó Didi, estás em Cuntima, uma beleza de terra também, enfim, não tem praias, mas tem bolanhas, palmeiras, bajudas, calor, que queres mais, o Ribeiro, um tipo pequeno, olhos vivos, muito negros, com ar de indiano, à gargalhada.

Dali para a frente, as conversas entre eles eram sempre as mesmas, só umas pequenas variações, um acrescento aqui ou ali. Sempre à volta do mesmo, os meses que faltavam para o regresso. Fosse qual fosse o princípio, terminava sempre na Rocha Conde de Óbidos e no encontro com a namorada, mulher, filhos, os pais, os amigos, a rua, o quiosque…

Guiné Portuguesa? Deixa-me rir! Nem penses, esta é uma guerra perdida! Não tenhas ilusões, amigo, isto não é nosso, nunca foi, o Didi ansioso por passar a ideia. Quando vires a tralha a cair-te em cima, nessa altura sim, vais começar a pensar no buraco em que te meteram. E toma nota, os gajos em Lisboa continuam na vida deles, a engordarem com este negócio, a mercadoria somos nós! Daqui a uns tempos falamos, quando estiveres mais habituado a estes calores…

O Coronel insistia em ordens de saída para o mato, patrulhamentos, emboscadas, vigilância das picadas, capinagem, o diabo a sete. Saíam, é certo, mas via-se-lhes na cara a má vontade, as pernas contrariadas, a arrastarem-se em coluna por um, muito chegados uns aos outros, como se assim ficassem mais protegidos. Os alferes e os furriéis já não tinham ânimo nem vontade para imporem as regras de segurança. Já tinham passado por muito. O Como, pá, o Como! Os dois feridos que tivemos mal desembarcámos! E aquela história, lembras-te Ribeiro, e mais um episódio a sair aos bochechos. Ao fim de uns dias, o Gil era um veterano de guerra, esteve no Como aqueles dias todos, os turras a chateá-lo a toda a hora.

Ao jantar, à luz do petromax (1), a presença do capitão Galo impunha um pouco de ordem nas conversas à mesa. Era o único ali que tinha acesso aos relatórios da situação militar em toda a província. Com um ar confidencial, punha-os vagamente em dia com o que se passava nos outros pontos da Guiné, Oio, Morés, Tite, Cantanhez, Buba, Guilege, Gadamael, Cacine, Cameconde…Ataques, minas, baixas.

Numa daquelas noites, ao levantarem-se da mesa, Gil viu o capitão fazer-lhe um sinal. Venha daí, vamos dar uma volta até ao posto de rádio. Uma noite linda, não? Um espanto, estas noites de África!

Porta fechada, viu o capitão estender um mapa junto à luz do petromax. As referências bem assinaladas com marcadores grossos a tinta vermelha. A fronteira, Cuntima aqui, Jumbembem, Farim a seguir, aqui em baixo, está a ver? Emboscada aqui, entre Faquina Fula e Faquina Mandinga, o dedo apontado para um ponto do mapa. Sim, sim, esta madrugada, neste trilho entre as 6 e as 6 e 30. Preste atenção, levante-a ao meio-dia, nem mais um minuto. Fale com o Furriel Poças, ele trata da logística. Boa noite.

A caminho do celeiro, Faquina Fula e Faquina Mandinga misturavam-se na cabeça com os restos da cerveja que bebera em Bissau. Pôs o Poças ao corrente da missão e pediu-lhe que fosse ele a comandar. Era a sua 1ª saída para o mato, até aí tinham sido só treinos em Santa Margarida e Mafra. Deixe estar, meu alferes, vai correr tudo bem, fique descansado.

Na cama, nada de leituras que a lanterna estava sem pilhas. Num rádio, muito baixo, Bécaud cantava Et maintenant, música árabe de outro, ressonava-se por ali fora. Faquina Fula, Faquina Mandinga, a cabeça sempre a rodar, até adormecer.

Quando se pôs a pé, a cabeça voltou a rodar, ao ritmo daqueles dias. Na rua, noite ainda escura, cheirava a café quente, tomava-se o pequeno-almoço, pão fresco com chouriço, marmelada.

Puseram-se a andar, ainda não eram cinco. Armas pousadas nos ombros, mãos a segurarem os canos, coronhas para trás, como quem leva um cajado. Parecia uma romaria a S. Bento da Porta Aberta, um restolho enorme, tanto barulho com os pés. Não se pode andar com menos barulho, Poças, o pessoal não pode fazer levantar os pés em vez de os arrastar? Os olhos pequeninos do furriel para ele, quê? Como? É, poder podem…

Tomava pela primeira vez contacto com a mata, as árvores, os ruídos, ansioso por dar atenção a tudo. Espevitou ainda mais com a floresta a acordar. São macacos-cães a ladrar, quando estivermos perto deles deixam de se ouvir. Falta pouco, é para aqueles lados, o caminho é depois daquela bolanha, ali em frente.

Aí para as 7, estavam deitados, G3 em posição, escondidos na mata, abrigados em arbustos dispersos pelo capim, à espera que os turras passassem.

Horas a passarem e turras nem vê-los, o silêncio cortado de vez em quando por um ou outro ronco de alguém a ressonar, o sol bem alto a queimar e moscas grandes, peludas, a pousarem neles, sem se ouvirem.

O Poças aproximou-se, apontou para o relógio, quase meio-dia. Podemos levantar a emboscada, já não aparecem, vamos? Curvado no trilho, percorreu-o com os olhos de uma ponta a outra. Viam-se sinais de sandálias de plástico e de rodas de bicicletas. Tinham passado aqui, não havia muito tempo, disse um milícia nativo.

Este é um caminho que utilizam para introduzirem armas, comida, sei lá que mais! Só que passam aqui a outras horas, claro. E se continuasse aqui até eles passarem? Agora não, que as ordens são outras.


2. PESSOAL AOS SEUS LUGARES

Dentro do celeiro, pelo meio dos beliches, orquestra a sono solto, madrugada ainda a meio. Portão semiaberto, o céu a brilhar de pontinhos. Noites como aqui, com tanta luz, parece dia! A casa do capitão Galo em frente, aí a uns 20 metros, os alfas rómios da casa do rádio a ouvirem-se, aroma a café a vir de lá. Uma novela no quarto de banho do capitão, Capricho ou parecida! Na volta, outra vez o céu, bocados de estrelas a caírem.

As matas em frente, escuras, misteriosas, quando se lembrarão eles de vir até cá? Se soubessem como era fácil, todos a dormir agora, nem precisavam de atacar de longe, bastava chegarem-se, sorrateiros, escondidos pelo matagal, espiar o movimento das sentinelas, evitar os petromaxes, colados ao chão, devagar a caminho do celeiro, a curta distância, 10 metros chegava. Dedos no gatilho, com vontade, entrar, uma chacina nos tugas (2). Se não tivessem medo também. Mas algum dia vão perdê-lo.

De novo na cama, a vontade de dormir a ir-se, as recordações a virem. O comboio da linha de Sintra, a chegada à Amadora nas horas de ponta, às centenas a saírem, todos com pressa, a desaparecerem nas ruas, depois nas casas, as luzes a acenderem-se, o vento a dar, as praias de Carcavelos, de Oeiras, a areia do Guincho pelo ar, por aí acima até ao Porto, à estação de S. Bento, o passeio das Cardosas, a Avenida dos Aliados, os Clérigos, o 6 (3) a subir para os Leões, o Hospital de S. António, a Aníbal Cunha, a Carvalhosa, o ardina a apregoar olhó Popular Diário, a subida da Oliveira Monteiro até ao Carvalhido, as ruas, os quiosques. A circunvalação, a via Norte, Mindelo, Modivas, sempre a subir até Vila do Conde, terra linda, a Póvoa do Varzim, os banhistas com os sacos ás costas, toalhas coloridas debaixo dos braços, a estrada para Viana, Aver-o-Mar, o cheiro da casa dos frangos, tão bons não havia, a Apúlia por fim. O sossego dos fins das tardes dos Setembros da praia dos sargaceiros, as marés-cheias por volta das 7, ondas enormes, certinhas como um compasso, os mergulhos com o André, o Eurico, o Beleza. O regresso a casa, bicicleta nos caminhos pelo meio das latadas das uvas americanas, a secar ao vento, a chegada a casa, o Sol a pôr-se, a mãe à espera, a estas horas só, o irmão pequeno em férias, a cozinha com os fumos da sopa.

Nem o mar se vê daqui, os jornais da metrópole, de há duas semanas, a rodarem entre todos, a Bola, o Eusébio, o Coluna, o José Augusto, o Pedroto, o Vicente, irmão do Matateu… O Costa Pereira a defender fora da área de cabeça, em mergulho, no estádio do Braga, nunca vira uma defesa daquelas! Os títulos a vermelho do Jornal de Notícias, o Comércio do Porto com o título a gótico.

Como é que ela vai reagir à minha carta? Que ideia a dele, pedir-lhe que o considerasse agora mais que um amigo, estivera com ela mais de duas horas da última vez, não lhe dissera nada, nem um sinal lhe dera! Tão longe, tanto tempo à frente, tão nova ainda, tanta vontade de ir aos bailaricos das festas da queima, em casa das amigas, nas festas familiares. Que absurdo! Que ousadia também! O amor a dar-lhe tão súbito, tão fulminante, talvez por estar longe, ou quem sabe, só uma correspondência que sempre lhe daria jeito, uma madrinha de guerra talvez, com notícias diferentes da metrópole.

Uma rajada comprida vinda de muito longe entrou-lhe pelos ouvidos dentro. Olhos mais que arregalados, o salto de gato da cama. Queria gritar outra coisa, saiu-lhe pessoal aos seus lugares, lembrou-se logo do cobrador das camionetas do Marinho (4) em Braga, nada que se parecesse com um grito de guerra. Se calhar, por isso ninguém saiu, só ele. Em voo pelo buraco aberto na parede das traseiras, a pancada na cabeça, um estrondo enorme, estrelas a brilhar mais que as do céu. Finalmente cá fora, a mão na cabeça, o sangue a escorrer, pronto, fui atingido, logo à primeira!

Um silêncio, ninguém cá fora para o socorrer, só a sentinela a chegar-se. Pareceu-me ver umas luzes suspeitas ali da mata, mandei para lá uma rajada! Alarme falso, afinal deviam ser pirilampos! Tem sangue na cabeça, deixe ver, o meu alferes deve ter batido com a cabeça na parede, ainda não está calhado com o buraco, é o que é.

Manhã cedo, nativos da zona e outros vindos do Senegal em bicha para a consulta, o médico, açoriano da Terceira, a atendê-los, cheio de paciência para um, ora abre a boca, diz aaah, outra vez, aaah, o enfermeiro mão no frasco enorme, comprimidos, drageias, cápsulas, todas as cores da paleta, dá-lhe duas dessas, outra dessa cor, amanhã se não estiveres melhor vai ao feiticeiro. O que foi isso na testa, Gil?


3. A ESTRADA PARA FARIM

Viaturas prontas, sacos de areia nos lugares da frente para o condutor e acompanhante se houvesse voluntário. Os militares, oito a dez, mais os nativos com paus, sacos aos ombros, galinhas, porcos, bidões vazios, tudo a monte nas caixas das Mercedes e GMC (4). A coluna tinha-se posto em marcha de Cuntima para Farim, com uma paragem em Jumbembem para cumprimentos e uma cerveja fresca. Cerca de 30 e tal quilómetros em pouco mais de 3 horas, com impedimentos menores.

À entrada de Farim, o furriel Poças descrevera os procedimentos habituais. Largar o pessoal nativo logo à entrada, arrancar para o centro da povoação, toda ela um grande quartel, casas civis rodeadas de instalações militares com arame farpado à volta, e depois como manda a cavalaria, dispor as viaturas em linha, militares dentro delas em sentido, bolsos apertados, apear-se, dirigir-se para o posto de comando, peito para fora, barriga para dentro.

Dá licença, meu Coronel, apresenta-se o alferes Gil Duarte com a coluna de reabastecimentos para Cuntima. Mande seguir aos seus destinos, encarregue o sargento mais antigo, o nosso alferes fica aqui, vai almoçar connosco. E como vão as coisas por Cuntima? Quando foi a última vez que saíram para o mato? Para onde? O que aconteceu? A que horas? Quanto tempo lá estiveram? Quando foi a última vez que o capitão saiu com vocês? Quando? Com quem? Nem dava tempo a engolir!

Apresentou-se aos alferes, capitães e majores, todos com cara de pouco amigos, 17 ou 18 meses de comissão nas trombas, deu as voltas todas, durante a tarde inteirou-se dos carregamentos, teria que ficar a noite, os combustíveis vindos de Bissau estavam ainda a ser descarregados e conferidos. Uma volta pela povoação, pouca coisa para ver, uma lata de anchovas e uma cerveja numa esplanada.

Fica no quarto do Ramiro Medalha, lá tem sempre vaga, dissera-lhe o capitão Risco. No meio do silêncio que já se sentia àquela hora, um chinfrim enorme, do quarto que lhe indicara o capitão. Dormir lá?

O Ramiro? Excesso, em tudo! Intelecto vigoroso, ironia cortante, discurso como um autoclismo, muita cerveja, todas as noites até cair para o lado, ele e quem tivesse o azar ou a sorte de estar nas proximidades. E suor, como se acabasse de sair do chuveiro. Tudo nota vinte, uma força da natureza, exclamavam os que com ele privavam.

Nascera com sorte, de boas famílias como então se dizia, latifúndio registado nos Alentejos, espigara rodeado de mimos, criadas para todas as dependências da casa e descontado o exagero, para muitos serviços também, excepto a Anica que o vira nascer e lhe dera a mama. Mal dera pela passagem pelo liceu, anos e cadeiras a jacto. Registada na caderneta escolar ficou a suspensão decretada pelo reitor, apesar do respeito reverencial pela família, sanção imposta pelo pai que, nessas coisas primava pelo exemplo. No decorrer de um campeonato que metia fita métrica, a jovem professora de inglês apanhou-o a medir o instrumento, numa cadeira lá para trás de uma turma com 31 rapazes. Corada até nos cabelos loiros, o Russo a contar, não sabia bem o que era aquilo que estava em cima da fita. Decidira suspender a aula e chamar o reitor, uma medida demasiado drástica no entender de muitos alunos e de alguns professores. E a aula de inglês daquele dia acabou mesmo ali. Parece ter sido este o facto mais marcante da passagem, aliás brilhante em termos de aproveitamento escolar, do Ramiro pelo liceu. O pai, advogado, da situação ainda a somar, despachou-o com uma criada, para uma casa que tinham em Lisboa, ali para os lados do Príncipe Real, naqueles anos ainda um sítio muito calmo. Nas recomendações iniciais que o pai lhe fizera, a importância em assistir às aulas dos profs dos direitos todos, sem esquecer claro, a brilhante cabeça do Professor M. Catano, uma inteligência de agora e do futuro, que ele, Ramiro, deveria ter em conta se quisesse encarreirar.

As aulas, como era de prever, passaram depressa, mal deu por elas, as necessárias para medir o pulso dos profs, pedidos de esclarecimento contínuos, tudo entendido até à próxima aula, daí a uns meses. Em cinco anos a licenciatura na mão que era o que o pai queria. A tropa, à espreita, mal acabou o curso, vestiu-lhe um fato zuarte (6), que ele, como outros, nunca vira nem em sonhos e despachou-o para a escola mais perto de casa, no caso a Escola Prática de Cavalaria em Santarém, onde o Ramiro deu abundantes provas de como montar a sério.

No cais da Rocha Conde de Óbidos estavam todos, a mãe, as avós de preto, as criadas que couberam nos dois carros, todas com lenços nas mãos, as lágrimas a escorrerem, e o pai claro, comovido, uma oportunidade única na tua vida, a defesa da Pátria, os valores da civilização, disseram os que assistiram.

Acordou na Guiné sem se lembrar bem de todos os episódios da viagem, salvo uma conversa que fora obrigado a ter no barco, com o Coronel, conversa que não lhe correra lá muito bem. O Coronel, militar encarniçado, homem direito e competente, discursara-lhe na cara os valores da Pátria, do Exército, da Cavalaria, até a família nomeara!

Há três dias em Bissau, novo episódio, desta vez com a participação da Polícia Militar. O Coronel declarou-se incompetente para aquele caso particular, desistiu. Delegou na figura do major Amor, um major pequenino, magrinho, bigode fino, exemplar na bota alta, com falta de peso para todo o serviço militar quanto mais para meter nos eixos o alferes Ramiro! Que estivesse descansado o Coronel, o assunto ficaria bem entregue…

O Ramiro continuou o seu percurso, sempre ao lado do batalhão, cervejas até cair para o lado, ele e os compinchas, às vezes com as cadeiras, as mesas, as garrafas vazias, empregados, patrões, polícia militar, o que estivesse na frente. Assim, um oportunista daqueles que aparecem sempre nomeou-o Ramiro das medalhas, outro mais abrangente, Medalha com letra grande para abarcar todas. Dali em diante passou a apresentar-se Ramiro Medalha.

Os quatro alferes que partilhavam o enorme salão que lhes servia de quarto estavam a começar mais uma noitada, eram para aí 9 da noite, os dois frigoríficos a abarrotarem de líquidos, garrafas já vazias pelo chão, lençóis desalinhados, sumaúma a cair de pára-quedas, camisas desabotoadas até baixo, o Medalha só com umas cuecas, mas até ao joelho.

Sou o Gil de Cuntima, posso?

Mal tinha acabado de adormecer, acordou, a cama molhada, bêbado de cheiro a cerveja, o Medalha com sabão na cara, ó maçarico dum raio, a coluna está lá fora à tua espera! A coluna estava diferente, as viaturas atestadas de farinha, vinho do Cartaxo em garrafões, leite condensado e outros líquidos, cunhetes com munições, marmelada em caixotes, latões com chouriço e outros enchidos, novos pretos com outros sacos, outras galinhas, porcos diferentes, uma ninhada acabada de ser parida. Ainda não tinha percebido bem este movimento dos nativos, vêm uns para cá, vão outros para lá, mas adiante para o posto de comando, outra vez viaturas em linha, procedimentos idênticos aos da chegada.

Iam a andar bem, mais devagar, claro, até que atingiram a curva da morte, uma história que se contava em todos os lados ter-se-ia passado ali. De um momento para o outro sentiu-se empurrado para a berma da picada, uma fuzilaria tão grande que nem nos exercícios de tiro da Carregueira. Deu por ele deitado, a G3 em posição, com o dedo no gatilho. Olhou em frente, a bolanha (7) a perder de vista, saltou para o lado errado! Deixa lá ver, deve ser do outro lado, a fuzilaria em bom ritmo, pensou duas vezes, mais uma, aí foi, agachado, quase colado ao chão como lhe ensinaram nas matas de Mafra, um ziguezague até à outra margem da estrada, outra vez a G3 em posição, olhou em frente, tudo capinado, um tronco aqui, outro além, montículos de baga-baga (8) a nascer. Então, onde estão os turras?

Alguns soldados de pé, gargalhadas nervosas, o Furriel Poças, não é nada, alto ao fogo, não é nada, parem essa merda, porra!

O Quadradão na caixa da viatura da frente, atento a todos os movimentos, terá visto uma vara de javalis a atravessar a picada. Mas que grande reabastecimento, deve ter pensado, o dedo fácil no gatilho, as balas a bater nas rodas das viaturas lá de trás e a resposta concludente, como ainda se ouvia.

Quase tudo normalizado, rodas para substituir e o soldado Canário não ouvia nem via nada, nem queria, só a G3, as mãos no carregador encravado, a aflição na cara, não sai, encravou-se!

© Virgínio Briote (2005)
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(1) Candeeiro a petróleo
(2) Designação pejorativa das NT
(3) Eléctrico
(4) Empresa de Viação Auto-Motora
(5) Camiões militares da General Motors, da 2ª Guerra Guerra
(6) Fato-macaco, grosso, esverdeado, que era distribuído aos cadetes
(7) Ou bolenha: extensões de água, aproveitadas para cultivo de arroz
(8) Formigueiros erguidos em altura (da formiga Baga-Baga)

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